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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A ideia do interesse nacional (2015) Paulo Roberto de Almeida (Instituto Millenium)

 A ideia do interesse nacional

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Publicado no site do Instituto Millenium, com um subtítulo agregado: “onde estamos?” (25/02/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/ideia-interesse-nacional/), em Mundorama (26/02/2015) e em Dom Total (26/02/2015); Reproduzido no blog Diplomatizzando (3/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/o-renascimento-da-politica-externa.html). Republicado no blog Diplomatizzando (27/02/2024; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/02/o-renascimento-da-politica-externa-no.html). Relação de Publicados n. 1164.



The Idea of National Interest é o título de um livro que o historiador americano
 Charles Beard publicou em 1934, em plena crise econômica dos Estados Unidos e no início do New Deal, programa de recuperação impulsionado pelo presidente Roosevelt. O livro, porém, não é conjuntural; ele não trata exclusivamente da realidade imediata do país, e sim faz uma reflexão histórica de longo prazo sobre a construção do projeto nacional pela vertente das relações exteriores. O subtítulo do livro é An Analytical Study in American Foreign Policy, e o primeiro capítulo trata dos “pivôs da diplomacia”, analisando, nos demais capítulos, a expansão territorial da nação, o seu crescimento econômico e comercial, ademais do impacto externo dos assuntos internos; o apêndice traz um balanço dos interesses americanos no exterior (capitais e investimentos diretos), embora a edição que consultei, publicada em 1966 por seu filho e por um assistente de pesquisa, procedeu a alguns cortes nas estatísticas da edição original e fez atualizações sobre os dados que Beard havia consolidado até o final dos anos 1920.

Beard foi o único acadêmico americano a ter exercido a presidência de duas associações profissionais diferentes: a American Historical Association e a American Political Science Association. Ele abre o seu livro citando um discurso do Secretário de Estado Charles Hughes, que trabalhou sob os presidentes Harding e Coolidge na primeira metade dos anos 1920, e que se pronunciou sobre o interesse nacional na política externa nestes termos: “As políticas externas não são elaboradas sobre a base de abstrações. Elas são o resultado de concepções práticas do interesse nacional que emergem a partir de alguns requerimentos imediatos ou de fundamentos essenciais, em perspectiva histórica. Quando mantidas por bastante tempo, essas concepções expressam as esperanças e os temores, os objetivos de segurança e de engrandecimento, que se tornaram dominantes na consciência nacional, transcendendo, assim, divisões partidárias e fazendo com que se atenuem as oposições que poderiam advir de certos grupos” (discurso na Filadélfia, em 30/11/1923). Beard analisa então todas as facetas do interesse nacional americano em sua expressão diplomática e nas relações com o ambiente doméstico, sobretudo em sua dimensão econômica.


 É bem possível que seus argumentos, e o seu próprio livro, tenham inspirado o célebre cientista político germano-americano Hans Morgenthau – autor do clássico Politics Among Nations, publicado em 1948, o mesmo ano da morte de Charles Beard – a elaborar um outro livro, chamado justamente In Defense of the National Interest (1951), seguido, no ano seguinte, de um artigo sobre o mesmo tema: “What Is the National Interest of the United States?” 
(The Annals of the American Academy of Political and Social Science, vol. 282, julho de 1952, p. 1-7). Morgenthau também serviu como consultor do Departamento de Estado no começo da Guerra Fria, quando um diplomata, também célebre, George Kennan, dirigia ali a divisão de planejamento político, o Policy Planning Staff, que trabalhou no Plano Marshall e na formulação das principais medidas da então nascente doutrina da contenção. O próprio Kennan, aliás, não cessava de alertar seus chefes quanto às fragilidades que poderiam emergir do ponto de vista do interesse nacional americano a partir da erosão da posição competitiva dos Estados Unidos no mundo e do aprofundamento dos déficits no balanço de pagamentos; ele expressou suas preocupações, entre outros escritos, no livro Realities of American Foreign Policy, publicado em 1954.

O livro de Morgenthau sobre o interesse nacional americano foi republicado em 1982, e talvez tenha animado o já então famoso jornalista Irving Kristol a dar início, em 1985, à revista The National Interest (http://nationalinterest.org/), apoiada nos mesmos princípios da escola realista, que está identificada com a expressão política, econômica e militar do poder americano em escala global, mas cujos fundamentos devem sempre ser construídos internamente. Pode ser também que a mesma revista e sua ideia central tenham inspirado o embaixador Rubens Barbosa a lançar, em 2008, a revista Interesse Nacional, fundada em concepções similares sobre as bases internas da expressão internacional do Brasil. Qual seria, então, o interesse nacional brasileiro, e que tipo de políticas e orientações econômicas melhor serviriam à sua defesa e consolidação? Difícil dizer, já que existem concepções muito diversas do que seja o interesse nacional, como já dizia o próprio Beard em 1934.

O editor da revista brasileira se encarrega, aliás, de expressar tal dificuldade em nota de apresentação: “Sendo necessariamente genérica, a noção de interesse nacional não tem uma definição precisa. De um lado, porque, sobre o que seja concreta e especificamente o interesse nacional, haverá sempre visões não coincidentes, apoiadas em valores e/ou interesses diferentes. De outro, porque a definição do interesse nacional requer um juízo informado, mas sempre político e não estritamente técnico, sobre riscos e oportunidades que se apresentam à realização dos valores e interesses de um país em cenários estratégicos de longo prazo. E estes serão, sempre, objeto de incerteza e controvérsia”. Mas o editorial acrescenta logo em seguida: “O interesse nacional é, pois, uma construção política”, o que pode ser uma constatação óbvia, mas que não nos ajuda muito na busca por uma definição mais precisa sobre qual seria o interesse nacional brasileiro.

Conceda-se, pois, que diferentes grupos políticos, e diferentes agregações de poder, representados pelas forças políticas temporariamente predominantes no sistema de governança, manifestem concepções diversas do chamado interesse nacional, e que eles defendam, portanto, suas orientações particulares, ou setoriais, com base numa legitimidade supostamente construída nas urnas, a cada escrutínio eleitoral. Esta é uma suposição arriscada, e provavelmente falsa, pois os eleitores não possuem, geralmente, no momento do voto, um grau suficiente de informação sobre os programas, ou sobre as consequências de determinadas políticas do ponto de vista de seus interesses imediatos e os de mais longo prazo, e menos ainda do ponto de vista dos interesses da nação.

Na impossibilidade de se chegar a uma definição consensual de quais seriam as expressões efetivas do interesse nacional, talvez seja o caso de investigar numa outra direção, ou seja, identificar aquelas políticas e orientações que se opõem, ou que podem contrariar, o interesse nacional. Nesse caso, é melhor trabalhar com exemplos concretos do que com definições abstratas, como afirmava em 1923 o secretário de Estado Charles Hughes, em pronunciamento recuperado pelo historiador Charles Beard uma década depois. E quais seriam, no nosso caso, os exemplos contrários ao interesse nacional que podem ser identificados numa perspectiva mais imediata ou de mais longo prazo, que podem ser prejudiciais ao nosso desenvolvimento e ao “engrandecimento” do país? Mas mesmo para identificar essas ações contrárias, seja no plano interno, seja no âmbito internacional, é preciso ter balizas mínimas sobre o que o país pretende ser como nação e como sociedade. É preciso saber o que se quer, para rejeitar o que não serve a tal fim.

O editorial da revista Interesse Nacional nos fornece, mais uma vez, alguns dos parâmetros que podem ser aplicados ao caso: “A democracia e a inserção internacional são parte do interesse nacional brasileiro, aquela como valor, esta como objetivo. Se a democracia é um valor que queremos preservar, e se a inserção internacional é hoje, mais do que nunca, uma condição do desenvolvimento, resta perguntar como se inserir no mundo para fortalecer a democracia e promover o desenvolvimento” (nota editorial de Interesse Nacional, loc. cit.). A pergunta traz, portanto, um começo de resposta.

Se concordarmos com essa “plataforma”, democracia e inserção internacional passam a ser as palavras-chaves do interesse nacional brasileiro. Então, qualquer ação nacional que vise a diminuir as bases da democracia representativa, que constitui a forma atual da governança política no Brasil, seria contrária e prejudicial ao interesse nacional brasileiro; como, por exemplo, um famoso decreto “bolivariano” que pretende instituir a intermediação de “conselhos populares” na definição e aprovação de políticas públicas, quando sabemos que eles constituem uma emanação de tipo bolchevique – e por isso mesmo foram chamados de “sovietes” – do partido gramsciano que tem a clara intenção de se eternizar no poder. No plano externo, o apoio acintoso a regimes pouco democráticos, ou ditatoriais de fato (e de direito), diminui a credibilidade de nossa política externa, ao nos identificar com sistemas políticos já devidamente denunciados em protocolos instituindo “cláusulas democráticas” a que aderimos voluntariamente, e por força de nossa adesão (inclusive constitucional) aos valores da democracia.

Da mesma forma, qualquer política ou medida que obstaculize a integração da economia nacional aos circuitos internacionais da interdependência econômica pode ser considerada como contrária ao interesse nacional, na medida em que diminui nossa capacidade de absorção de know-how e de tecnologias de ponta que são essenciais ao processo de desenvolvimento do país. O protecionismo comercial não é apenas estúpido no plano estritamente econômico; ele é também profundamente reacionário, no sentido marxista da expressão, já que pretende “fazer rodar para trás a roda da História”, como dito no Manifesto de 1848. Com efeito, ele representaria uma volta a um regime de autarquia econômica que estava na base da economia hitlerista – bastante admirada por militares brasileiros, naquela época e depois – e seria uma espécie de “stalinismo para os ricos”, um projeto de “capitalismo num só país” que talvez ainda encante alguns arautos da burguesia industrial tupiniquim e seus representantes acadêmicos.

Mais ainda, e com especial impacto na imagem e na confiabilidade do país no plano internacional, ao aderir a essas medidas de duvidosa eficácia competitiva – ao contrário, elas diminuem nossa capacidade de competir internacionalmente – o país não apenas deixa de cumprir obrigações contraídas ao abrigo do sistema multilateral de comércio, como também se mostra conivente com sócios do mesmo esquema regional de integração, o Mercosul, que reincidem nas mesmas transgressões, e aqui não só contra os próprios interesses comerciais do Brasil e contra regras do bloco comercial, mas igualmente contrárias às normas do Gatt, de seus protocolos setoriais e de acordos emanados da Rodada Uruguai de negociações comerciais. É, sob todos os aspectos, uma péssima demonstração de inadimplência no tocante ao respeito a princípios do direito internacional e, mais uma vez, de ação contrária ao interesse nacional.

Democracia e inserção internacional vêm sendo, assim, afastados de nosso horizonte de realizações históricas, em nome de uma concepção de política interna e de política externa que rompem com consensos nacionais laboriosamente mantidos ao longo de um itinerário diplomático de quase dois séculos de existência efetiva. Esses desvios de conduta – que representam, na verdade, concepções que não transcendem, ao contrário, alimentam as “divisões partidárias”, como a elas se referia o secretário de Estado Charles Hughes – se revelam não apenas em relação à substância mesma das políticas seguidas, mas igualmente no tocante ao próprio instrumento diplomático, ou seja, a ferramenta da política externa, que é o seu serviço exterior.

Charles Beard, no capítulo de seu livro dedicado à “interpretation, advancement, and enforcement of national interest”, dizia que “By far the most important means used to advance and enforce national interest is the ‘system’, or institution, of diplomacy” (p. 341). Ele se referia, exatamente, à administração e ao funcionamento das atividades diplomáticas, bem como à “multitude of services performed by diplomatic agents in behalf of the citizens” (p. 347), ou seja, a cobertura que um país é capaz de dar aos seus cidadãos e às empresas nacionais presentes nos mais diversos cantos do mundo. Nesse particular, a ferramenta da política externa brasileira tem custado muito pouco à nação durante a maior parte de sua história: menos de 1% do orçamento da União (que parece ter passado a menos de 0,5% atualmente). Ver essa dotação ainda mais diminuída, em detrimento da boa qualidade, do funcionamento e, sobretudo, da respeitabilidade desse instrumento, é a pior forma de promover o dito interesse nacional.

Os bolcheviques costumavam repetir, em seus tempos de hegemonia absoluta, e para justificar os incontáveis crimes cometidos contra os direitos humanos, a conhecida frase que pretende que “não se faz omelete sem quebrar os ovos”, querendo significar que sacrifícios são necessários para obter resultados em algum objetivo qualquer. Pode ser que seja verdade, mas no caso que nos é próximo, nem ovos, nem omelete parecem ter resultado dos sacrifícios impostos ao instrumento diplomático nacional. Não se pode, com efeito, fazer diplomacia, sem um mínimo de gastos com representação: o interesse nacional, nesse caso, vem sendo atingido em sua dignidade pelos seguidos exemplos de inadimplência no cumprimento de suas obrigações, da mesma forma como, no passado, se decretava “moratórias soberanas” sobre os compromissos financeiros externos. A insolvência pode até ter deixado de ser financeira, mas ela passou a ser de ordem moral.

 

 

Hartford, 2766: 8 fevereiro 2015, 5 p.

Artigo baseado em livro de Charles Beard, The Idea of National Interest (1934) com comentários a respeito das políticas contrárias ao interesse nacional sendo tomadas no Brasil da atualidade.

 

Obsolescência de uma Velha Senhora? - A OEA e a Nova Geografia Política Latino-americana (2009) - Paulo Roberto de Almeida

Obsolescência de uma Velha Senhora?

A OEA e a Nova Geografia Política Latino-americana

 

Paulo Roberto de Almeida *

Revista Interesse Nacional

(Ano 2, Número 6, julho-setembro de 2009, ISSN: 1982-8497, p. 58-69).

Divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/115505816/2011_Obsolescência_de_uma_Velha_Senhora_A_OEA_e_a_Nova_Geografia_Política_Latino_americana_2009_) e no blog Diplomatizzando (27/02/2024; link: )

 


Resumo: Descrição e análise do sistema interamericano, desde suas origens à atualidade, a partir da decisão ocorrida na 39a. Assembléia da OEA no sentido de reintegrar Cuba ao sistema. A trajetória foi claramente marcada pela hegemonia dos EUA durante a maior parte da existência da organização, mas é caracterizada, na presente conjuntura latino-americana, pela crescente deterioração dos valores democráticos e do respeito aos direitos políticos dos cidadãos, em especial nos países ditos bolivarianos. 

 

 

site da Organização dos Estados Americanos anuncia, em sua página inicial de apresentação, que ela “aproxima as nações do Hemisfério Ocidental com vistas a fortalecer mutuamente os Valores Democráticos, defender interesses comuns e debater um grande número de temas regionais e mundiais” (OEA, 2006a).

A declaração é, retrospectivamente, muito curiosa, tendo em vista a resolução aprovada por consenso, ao cabo de sua 39ª Assembléia Geral – realizada em Honduras, em 2 e 3 de junho de 2009 –, em função da qual os países membros acordaram revogar a decisão de 1962, pela qual se suspendia o direito do governo cubano de integrar o sistema interamericano. O texto, aprovado sob intensa pressão de alguns governos e de movimentos políticos, contém dois pontos principais. No primeiro, puramente operacional, se lê que “a Resolução VI adotada no dia 31 de janeiro de 1962 na Oitava reunião de Consulta de Ministro de Relações Exteriores, mediante a qual se excluiu o Governo Cubano de sua participação no Sistema Interamericano, fica sem efeito na Organização dos Estados Americanos”. O segundo ponto, de caráter mais nitidamente político, estipula que “a participação de Cuba na OEA será o resultado de um processo de diálogo iniciado por solicitação do Governo de Cuba e de conformidade com as práticas, propósitos e princípios da OEA”.

O que surpreende, em primeiro lugar, é a rápida formação de um consenso em relação a uma das questões mais controversas na pauta da organização em exatos 47 anos. Sublinhe-se, circunstancialmente, que o consenso foi obtido na ausência da Secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, que havia deixado mais cedo o encontro para agregar-se à comitiva do presidente Barack Obama, em visita ao Egito e às vésperas de pronunciar importante discurso sobre as relações dos EUA com o mundo muçulmano. Como a decisão foi tomada na presença do Subsecretário para Assuntos do Hemisfério Ocidental, Thomas Shannon, embaixador designado em Brasília, se subentende que a postura americana de não confrontar a unanimidade latino-americana já tinha sido passada na coluna de perdas e danos em Washington. 

Na verdade, ocorreu uma completa inversão da situação observada nas décadas de 1960 e 1970, quando Cuba se encontrava quase completamente isolada no continente: desta vez, foram os EUA a se sentirem totalmente isolados num continente quase inteiramente entregue à causa cubana. De fato, o próprio Subsecretário de Estado Shannon declarou que a resolução aprovada era “um ato de estadistas” e que os EUA não estavam interessados em “lutar velhas batalhas ou viver no passado” (OEA, 2009).

(...) 

Mas, contrariamente ao que se poderia esperar, não será a OEA a cobrar desses países – ou de Cuba, caso ela se decida por negociar sua readmissão à organização – o realinhamento em direção daqueles compromissos;  o que vai provavelmente ocorrer é que tanto ela quanto os EUA estarão sob pressão dos mesmos bolivarianos, e seus aliados úteis no continente, para que cesse o embargo contra a ilha. Como no caso da recente resolução ‘reintegradora’ de Cuba, não será o governo cubano que será pressionado a mudar seus hábitos divergentes com respeito aos instrumentos mencionados, mas serão os demais países membros que estarão sendo induzidos a se ‘aproximar’ das posições cubanas, doravante concentradas na obtenção do fim do embargo americano.

Não cabem dúvidas, tampouco, que esse objetivo será alcançado, with a little help from some friends – governos simpáticos e outros companheiros de viagem, mesmo que fosse apenas por oportunismo político e por pressão dos movimentos ‘sociais’ – e a complacência impotente do governo americano, que não desejará encontrar-se, pela primeira vez, ‘isolado da família americana’. Quando isso ocorrer, a OEA terá descido um pouco mais no sentido da sua decadência institucional e da sua perda de legitimidade política. Para todos os efeitos práticos, os bolivarianos e seus aliados, inocentes úteis ou não, estão construindo uma nova geografia política no hemisfério. Qualquer que seja o seu conteúdo substantivo e sua conformação institucional, o cenário democrático, a estabilidade macroeconômica e a condição dos direitos elementares, entre eles os relativos à livre expressão do pensamento, vão certamente se deteriorar um pouco mais no continente latino-americano, com a OEA ou sem ela. 

No que se refere à postura do Brasil, não é difícil antecipar qual será a posição do atual governo. Quando do debate em torno das prisões e condenações à morte de balseros, capturados tentando fugir da ilha, em 2003, o chanceler brasileiro declarou que o Brasil votaria “contra uma eventual resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA) de condenação a Cuba por violações dos direitos humanos”. Ainda que lamentando “os julgamentos sumários, as condenações à morte e as prisões políticas em Cuba”, ele declarou ser “mais positivo manter o ‘engajamento construtivo’ da diplomacia brasileira com o ‘país irmão’”. Naquela ocasião, a justificativa era de ordem institucional: “O Brasil não apoiará uma resolução sobre Cuba porque considera que a OEA não tem competência para tratar desse assunto. (...) Não se pode usar justamente o foro internacional que expulsou um país para condená-lo” (Marin, 2003). Já que a OEA cancelou essa expulsão, resta saber qual será a atitude a ser doravante adotada...

 

* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais e professor de Economia Política Internacional no Centro Universitário de Brasília (www.pralmeida.org).

 

 

Referências Bibliográficas: 

A principal fonte de informação sobre a OEA é a própria página da organização: http://www.oas.org

Almeida, Paulo Roberto de (2004). “OEA (Organização dos Estados Americanos)”. In: Silva, Francisco Carlos Teixeira da (org.). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX: As Grandes Transformações do Mundo Contemporâneo, Conflitos, Cultura e Comportamento. Rio de Janeiro: Campus, p. 622-624.

Baena Soares, João Clemente (1994). Síntesis de una gestión, 1984-1994. Washington: Organización de los Estados Americanos, 1994.

________ (2006). Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc (organizadores Maria Celina D’Araujo et alii). Rio de Janeiro: FGV.

Bandeira, L. A. Moniz (1978). Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Marin, Denise Chrispim (2003). “Amorim: Brasil não votará contra Cuba na OEA”, O Estado de São Paulo (24.04.2003).

Naím, Moisés (2009). “El país más importante de Latinoamérica”, El País (Espanha, 31.05.2009; disponível: http://www.elpais.com/articulo/internacional/pais/importante/Latinoamerica/elpepiint/20090531elpepiint_9/Tes; acesso em maio 2009).

OEA (2001). Carta Democrática, adotada em Lima, 11.09.2001; disponível: http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm; acesso em maio 2009).

OEA (2006a). “Aspectos gerais”; disponível: http://www.oas.org/key_issues/por/KeyIssue_Detail.asp?kis_sec=20; acesso em maio 2009).

OEA (2006b). “Compromisso Democrático”; disponível: http://www.oas.org/key_issues/por/KeyIssue_Detail.asp?kis_sec=1; acesso em maio 2009).

OEA (2009). “Los Jefes de Delegación celebran en el plenário de la Asamblea General de la OEA la Resolución sobre Cuba”, 3.06.2009; disponível: http://www.oas.org/OASpage/press_releases/press_release.asp?sCodigo=AG-14-09acesso em junho 2009).

Pio Corrêa, M. (1995). O Mundo em que Vivi. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, vol. 2.


Ler a íntegra do artigo neste link: 

https://www.academia.edu/115505816/2011_Obsolescência_de_uma_Velha_Senhora_A_OEA_e_a_Nova_Geografia_Política_Latino_americana_2009_



Surgimento de uma nova revista: Interesse Nacional - Embaixador Rubens Barbosa (2008) - Paulo Roberto de Almeida

1875. “Interesse Nacional: uma nova revista”, Brasília, 13 de abril de 2008, 2 p. Resenha da nova revista lançada pelo Embaixador Rubens Barbosa. Desafios do Desenvolvimento (ano 5, n. 43, maio 2008, p. 62). Relação de Publicados n. 835.


 Interesse Nacional: uma nova revista


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 13 de abril de 2008, 2 p. 

Resenha da revista lançada pelo Embaixador Rubens Barbosa: Interesse Nacional

Desafios do Desenvolvimento (ano 5, n. 43, maio 2008, p. 62). 

Relação de Publicados n. 835.

 

 

Em países marcados pela luta entre partidos, com agendas cheias de reformas inacabadas, definições do que seja, exatamente, o interesse nacional são tão diversas quanto os grupos que disputam o poder e buscam mobilizar o apoio da sociedade para suas plataformas nem sempre consensuais para todas as classes e setores nacionais. 

Assim, o surgimento de uma revista que pretende, justamente, discutir questões relevantes, sem necessariamente partir de uma definição pré-concebida do que seja o interesse nacional, deve ser saudada como um bem-vindo aporte intelectual ao debate público em torno das grandes questões da agenda nacional. Os editores da nova revista, Rubens Antonio Barbosa e Sérgio Fausto, dizem, na introdução que a revista não defenderá uma única visão, “não promoverá convergências de opiniões”. “Seu único compromisso é com o debate qualificado de idéias e com a relevância das questões, na interseção entre assuntos domésticos e assuntos internacionais”. 

Contando com um conselho editorial de 24 membros, de esquerda e de centro (já que ninguém, neste país, se reconhece como de direita), a revista explicita, em seu primeiro número, um problema atual: Rubens Barbosa dá a partida criticando a política externa para a América do Sul, focando a questão do ingresso da Venezuela no Mercosul. O tema é em seguida defendido pelo assessor de assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, que justifica a “opção sul-americana” da atual diplomacia presidencial.

Comparecem a seguir dois defensores de visões opostas sobre o que constitui o interesse nacional na atualidade brasileira: Gustavo Franco trata da inserção externa e do desenvolvimento brasileiro, registrando o que ele chama de “consenso envergonhado”, isto é, a adesão dos atuais mandatários – não às idéias, mas – às práticas econômicas dos seus antecessores, responsáveis pela estabilização do Plano Real e pela abertura da economia. Luiz Gonzaga Belluzzo ataca, por sua vez, o que ele chama de “mitos do consenso liberal”, destacando a “mão visível” do Estado na competição capitalista. Na verdade, ele mesmo reconhece que as antigas oposições excludentes – Estado vs. mercado, integração internacional vs. políticas nacionais – “não são perspectivas incompatíveis” e conclama à superação de “falsas dicotomias”, em prol de uma “nova relação entre o Estado e o setor privado em termos mais favoráveis ao desenvolvimento do país”. 

O embaixador Everton Vargas, encarregado de temas ambientais no Itamaraty, apresenta a visão oficial sobre as negociações em torno das mudanças climáticas, mas este primeiro número não traz nenhuma posição alternativa sobre os desafios a serem ainda vencidos para que o chamado “desenvolvimento sustentável” deixe o campo da retórica diplomática. O professor de direito Joaquim Falcão aborda a difícil questão da reforma do judiciário, destacando o que ele designa de “uso patológico” do Judiciário pelo Executivo, com uma quase completa estatização da pauta do primeiro pelo segundo poder. Ele demonstra como grande parte dos recursos e agravos que chegam ao Supremo se referem a casos envolvendo servidores públicos e militares. Isto se dá, segundo ele, porque o Brasil “é um dos únicos países do Ocidente – se não o único – onde a Constituição trata do servidor público em tantos dispositivos – são 62 (!), entre títulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas...” Em outros países, se trata de matéria infraconstitucional. 

O ex-diretor da Radiobrás Eugênio Bucci discute a razão de ser das emissoras públicas, perguntando logo de início se o Brasil precisa disso. Ele considera que a TV pública só se justifica se for capaz de melhorar os processos democráticos, a geração de cultura, a diversidade, a inclusão social, e se elevar o nível de fundamentação das decisões políticas tomadas direta ou indiretamente pelos cidadãos. O último artigo, que aliás deveria ser o primeiro em qualidade e importância, trata do fantasma da “internacionalização do ensino superior”, recentemente atacada por ninguém menos que o secretário de ensino superior do MEC. Cláudio de Moura Castro demonstra que se está fazendo barulho por nada, que esse “perigo” é inexistente ou irrisório, mas que se ele existisse, de verdade, seria um bem-vindo impulso à maior inserção externa das nossas instituições do terceiro ciclo. O perigo maior, na verdade, é o isolacionismo no qual vivem a maior parte das universidades: “o Brasil se encolhe e teme as influências alienígenas no seu ensino”. O que de melhor ocorreu com o nosso ensino superior, lembra ele, foi a “horda de mestres e doutores que retornaram das melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa”, trazendo novos ares, metodologias inovadoras, reforçando a pesquisa em pós-graduação. O problema é que essa abertura não alcançou a graduação: “Precisamos ventilar as idéias mofadas que esmagam nossos cursos de graduação. Nesse sentido, a internacionalização é mais do que bem-vinda. O influxo de experimentos e idéias de outros países poderia ter um papel relevante para arejar nosso ensino”. Talvez a UNE não concorde...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 13 de abril de 2008, 2 p. 

Relação de Publicados n. 835. 

O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra (parte 1) - Paulo Roberto de Almeida (portal Interesse Nacional)

Artigo publicado no portal da revista Interesse Nacional, em três partes, aqui a primeira (27/02/2024)

O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra (parte 1)

Paulo Roberto de Almeida: 

Revista Interesse Nacional, 27/02/2024

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/paulo-roberto-de-almeida-o-drama-da-ucrania-e-o-uso-de-sancoes-economicas-como-arma-de-guerra-parte-1/

Introdução editorial (trecho do artigo): 

Guerra iniciada com ataque de Putin é a ameaça mais relevante para a segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta primeira de três partes de um artigo, diplomata analisa o impacto da agressão da Rússia sobre as relações internacionais – incluindo a situação do Brasil

Artigo PRA:

Poucas pessoas bem-informadas sobre o estado do mundo atual recusariam a constatação de que a guerra de agressão deslanchada por Putin contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, e continuada desde então, constitui a ameaça mais relevante para a segurança e a paz na Europa e no mundo desde que Hitler empreendeu a conquista da Polônia em setembro de 1939, dando início ao mais devastador conflito global da contemporaneidade. A invasão, ilegal nos termos da Carta da ONU e sob todos os pontos de vista, tornou o mundo menos seguro e mais propenso a um conflito ainda mais devastador (Livres, 2023).

Eu escrevi Putin, e não Rússia, e Hitler, em lugar de Alemanha nazista, pois que ambos os ataques criminosos e ilegais, entre muitos outros atos criminosos que precederam tais ataques devastadores, são devidos exclusivamente à vontade pessoal de duas personalidades autoritárias, a rigor animadas por instintos tirânicos, e não aos desejos do povo alemão, em 1939, ou aos do povo russo em 2022.

Similarmente, poucas pessoas informadas sobre o estado do Brasil atual recusariam o fato de que estamos, agora, bem melhores, em termos de civilidade, de política “normal”, de comportamentos minimamente previsíveis dos agentes públicos, do que estávamos nos anos do governo precedente. Por outro lado, não há como deixar de reconhecer que a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia afetou não só interesses econômicos e materiais do Brasil como um todo — inflação, comércio exterior, tensões internacionais —, mas também a própria política externa e a diplomacia brasileiras, a partir de seu início. 

Cabe, portanto, abordar essas duas questões — o estado incerto, na Europa e do mundo, na atual conjuntura, e os desafios daí decorrentes para o Brasil como um todo, em especial para as suas relações exteriores — numa abordagem de natureza conceitual, tanto quanto de ordem prática, dadas as múltiplas facetas do mundo pós-invasão da Ucrânia e do Brasil pós-terremoto bolsonarista. Não há como recusar o fato notório de que o mundo se ressente de diversos elementos disruptivos desde a guerra de agressão à Ucrânia, assim como o Brasil ainda suporta o impacto das ameaças ao sistema democrático brasileiro feitas durante os quatro anos do mandato imediatamente precedente ao atual.

Na raiz de ambas as questões, o estado do mundo e o do Brasil, existem processos objetivos — as relações econômicas e políticas entre os respectivos atores globais e regionais — tanto quanto elementos subjetivos, derivados das personalidades envolvidas nos contextos respectivos. A complexidade dessas interações requer uma abordagem metódica e linear de cada um dos problemas, pois que o estado atual do mundo e do Brasil decorre de escolhas feitas no passado, no plano mais geral das políticas nacionais, assim como de decisões tomadas segundo o arbítrio dos personagens mais diretamente envolvidos nas questões.

A história não se repete, mas ela pode trazer de volta fantasmas do passado

(...)

[corte devido à extensão do artigo]

(...)

O diplomata e cientista político José Guilherme Merquior, ao analisar em sua tese de doutoramento na London School of Economics, a obra de Rousseau e de Weber (1980), cunhou um novo conceito, o de “carisma burocrático”, como para sinalizar que o fenômeno, no sistema soviético, tinha deixado de ser personalista para ser encarnado na organização do partido leninista. Esse fator humano pode, doravante, deixar de funcionar no quadro do “carisma burocrático” do PCC, criado depois da liderança demencial de Mao Tse-tung por Deng Xiaoping e mantido nas décadas seguintes, a partir do terceiro mandato concedido a Xi Jinping, que parece estar impulsionando novamente o carisma personalista, eventualmente responsável por um futuro ataque a Taiwan (mas ainda assim minuciosamente planejado pelo partido e pelas Forças Armadas). No caso de Putin, esse “carisma” já deixou de funcionar há muito, como amplamente demonstrado na pequena biografia de Karen Dawisha (2015), sobre a verdadeira natureza do atual regime neoczarista (que tem alguns traços de stalinismo).

(a continuar)


* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional. 

(O texto continua nas partes 2 e 3, que serão publicadas nas próximas semanas)\

Leitura integral desta primeira parte neste link: 

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/paulo-roberto-de-almeida-o-drama-da-ucrania-e-o-uso-de-sancoes-economicas-como-arma-de-guerra-parte-1/

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Ficções acadêmicas, realidades geopolíticas: o tal de Sul Global - Paulo Roberto de Almeida

Ficções acadêmicas, realidades geopolíticas

Paulo Roberto de Almeida

Se você quiser falar com a UE sabe para onde e para quem ligar. O mesmo ocorre para o caso de querer falar com a Rússia, com os EUA, com a China. 

Mas se quiser falar com o tal de Sul Global telefona para quem? Para o Lula, para o Modi, para o Zuma, algum líder de um bloco diversificado e indefinível?

O Sul Global simplesmente não existe; é uma invenção acadêmica, construída a partir daquele mesmo conjunto heteróclito de países, muito diferentes entre si, antigamente chamados de subdesenvolvidos, depois de países em desenvolvimento, alguns poucos emergentes, outros em franco retrocesso econômico e político. 

Os jornalistas caíram na trampa dessa ficção acadêmica, políticos demagogos os seguiram e repetem um conceito que eles não sabem sequer definir!

Repito: o Sul Global não existe como entidade política internacional, mas tem gente que gosta de encher a boca com… vento!

Brasília, 26/02/2024

Política externa partidária - Fernando Gabeira (O Globo)

 

Opinião Fernando Gabeira

Foto em preto e branco de homem com óculos de grau

Descrição gerada automaticamente

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor

A guerra que mata e os jogos verbais

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta uma política bem mais próxima de uma visão partidária


O Globo, 26/02/2024 

 https://oglobo.globo.com/opiniao/fernando-gabeira/coluna/2024/02/a-guerra-que-mata-e-os-jogos-verbais.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria


A frase que Lula disse na Etiópia repercutiu fortemente durante toda a semana. Tão fortemente que não há muito mais o que falar, exceto extrair algumas lições sobre nossa pátria amada, salve, salve.

Ouvi um repórter anunciar que a reunião do G20 trataria de três temas: as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza e o embate diplomático entre Brasil e Israel. Meu Deus, pensei, como podem colocar no mesmo plano duas guerras reais, com gente morrendo ou sendo mutilada, com uma disputa verbal entre duas chancelarias?

Claro que o G20 não abordou o tema, mas o tom das reportagens deixa bem claro como superestimamos as situações em que o Brasil é protagonista.

Duas repercussões políticas também me impressionaram. De um lado, deputados propondo o impeachment de Lula por causa de sua frase. De outro, a declaração de Celso Amorim de que a fala de Lula sacudiu o mundo e potencialmente ajudaria a acabar com a guerra.

Há quem espere consenso a partir de uma discussão racional na política. Sou dos que acreditam que isso é impossível. A realidade é um conflito insolúvel entre valores, e só a aceitação da diversidade nos prepara, ainda assim modestamente, para a vida em comum.

Sinto que o Brasil polarizado está condenado a duas políticas externas radicais. No período Bolsonaro, havia uma crença de que o Ocidente estava ameaçado pelo marxismo cultural e de que era preciso seguir Donald Trump, o salvador dos valores ocidentais. Aquecimento global, feminismo, o que chamam de ideologia de gênero — tudo isso era arquitetado para destruir a civilização e desintegrar as famílias patriarcais.

Apesar do discurso de frente ampla, a esquerda apresenta, por seu lado, uma política bem mais próxima de uma visão partidária que uma perspectiva nacional. O mundo está dividido entre Sul Global e Norte rico, e o presidente precisa viajar incessantemente para defender os pobres.

O curioso é que o caminho do meio é cheio de saídas que as duas correntes desprezam. O Brasil é signatário de uma Declaração de Dublin em 2022, precisamente protegendo populações civis de bombardeios. A declaração é um avanço civilizatório. O país poderia, com base nisso, criticar tanto Israel quanto a Rússia.

Nesse universo político a que estamos condenados no Brasil, a Rússia está blindada. Putin é intocável para uma esquerda que o vê como adversário dos Estados Unidos e ainda encara a Rússia com a aura de uma revolução que aconteceu no início do século passado e não deixou vestígios, a não ser as atrocidades de Stálin e o corpo de Lênin no mausoléu.

Mas Putin é também admirado pela extrema direita, que o vê como defensor de valores tradicionais, inclusive um implacável perseguidor do povo gay na Rússia. Enfim, estamos condenados ao desequilíbrio, passando pano para autoritários como Putin, Viktor Orbán, Nicolás Maduro e Daniel Ortega.

Não há saída para isso num país polarizado, apesar dos acenos em tempos eleitorais. Ainda assim, precisamos garantir em nossa imagem internacional um respeito pelo sofrimento real que a guerra produz.

A guerra na Faixa de Gaza passa por um momento especial, a possibilidade de um ataque a Rafah. Mais de 1 milhão de civis estão concentrados ali. Não têm para onde fugir, pois o espaço que Israel propõe é muito pequeno para tanta gente.

Mais do que nunca, é preciso uma grande unidade entre as pessoas que querem a paz. Além de todas as críticas já repisadas por sua frase, Lula poderia pensar nisso. Ele provocou uma divisão entre as pessoas que criticam mortes de civis em Gaza, querem não só um cessar-fogo, mas também defendem a solução de dois Estados.

Precisamos de um consenso, ainda que pontual. A luta continua e, apesar dos excessos verbais, da batalha de postagens, das acusações mútuas e de toda essa agitação em redes sociais, a realidade continua áspera, e a guerra continua matando. Hora de olhar para a frente, direto no coração de tragédia.

 

 

Visão otimista da economia mundial pelo presidente do Banco Central da Índia (BIS)

 

Shaktikanta Das: Fundamental shifts in the global economy - new complexities, challenges and policy options

Keynote address by Mr Shaktikanta Das, Governor of the Reserve Bank of India, at the 59th South East Asian Central Banks (SEACEN) Governors' Conference, Mumbai, 15 February 2024.

https://www.bis.org/review/r240219c.htm

On behalf of the Reserve Bank of India, the current Chair of the SEACEN (South East Asian Central Banks) forum, I extend a warm welcome to Governors of central banks and other delegates to this 59th SEACEN Governors' Conference. The weather in Mumbai during this time of the year is pleasant and I hope you get some time for sightseeing. As everyone in this hall is aware, SEACEN plays a pivotal role in promoting collaboration, knowledge sharing and policy coordination among the member central banks, and thereby contributes significantly to the stability, resilience and sustainable development of the regional and the global economy.

We are gathered here at a critical juncture when the international economic landscape is undergoing profound transformations. The prospects of a soft landing have improved for the global economy, but there are multiple challenges with uncertainties looming on the horizon. The theme of the Conference "Navigating Economic Headwinds and Advancing Financial Inclusion: Perspectives and Challenges" aptly fits into the current policy dilemma that all central banks of the region face today. In these times, prudent macro-financial policies assume even greater importance for all of us to not only navigate through the current turbulence, but also to chart a course towards a more promising future. It is heartening to note that the economies in the region are making notable progress and are positioning themselves for continued advancement in the years ahead. There is a need for deeper integration in this region to stimulate economic growth and foster inclusiveness. I am sure the insightful discussions at this conference will offer some takeaways for our future policy making.

I have chosen the theme "Fundamental Shifts in the Global Economy: New Complexities, Challenges and Policy Options" for my address today. First, I propose to speak about the resilience of the global economy in recent years in marked contrast to the earlier periods of crisis. Thereafter, I propose to outline the emerging trends and shifts that are currently reshaping the global economy irreversibly and posing significant challenges for policymakers. Finally, my effort would be to provide a macroeconomic overview of our region, followed by highlighting some policy choices for the future.

Resilience of the Global Economy

According to the latest projection of the International Monetary Fund (IMF), the global growth is projected at 3.1 percent in 2024 and 3.2 percent in 2025, with forecast for 2024 revised upward by 0.2 percentage point from its October 2023 projection. It is interesting to note that that this time around the global economy has been far more resilient, weathering repeated shocks remarkably well. Even the financial system has broadly withstood the unprecedented monetary tightening across the world. The resilience of emerging market economies (EMEs), in particular, stands out unlike previous episodes of volatility which saw EMEs at the receiving end. EMEs have probably learnt from their past experience and played it well this time. While there is no definitive answer to this so called soft landing as yet, let me outline some possible factors.

First, during the global financial crisis (GFC) and the previous episodes of global turmoil, banking crises were a common feature in which insufficiently capitalised banks were at the core of the crisis. In contrast, this time the EMEs did not face adverse spillover effects from the recent banking sector turmoil in the advanced economies (AEs) in March 2023. This has been possible due to the strengthening of prudential regulation through wider adoption of Basel III norms and improvements in supervisory practices, which has resulted in a much-improved banking and financial system. Second, the improved macroeconomic fundamentals and buffers of the EMEs in recent years provided cushion against global shocks of the last four years. Third, fiscal and monetary stimulus provided during the COVID-19 has not been fully rolled back, especially in AEs. This has so far somewhat restricted the degree of spillovers from policy tightening by the AEs. Fourth, greater diffusion of technology in industry and services has gained traction after the pandemic. This has enhanced productivity in several EMEs and offset the adverse impact on output from factors like monetary tightening. In fact, technology has opened up new vistas of opportunities for EMEs, particularly in the services sector. Fifth, due credit also has to be given to calibrated and clear communication by central banks. Effective communication has now become an even stronger tool than earlier in providing forward guidance and anchoring market expectations.

Changing Landscape of the Global Economy

The pandemic was an unprecedented crisis of epic proportions in terms of loss of life and livelihood. In recent human history, recessions have been caused by swings in agricultural production, sharp jump in oil prices and financial upheavals. The global financial crisis also was a manifestation of the financial excesses growing under the benign neglect of policymakers. In contrast, the pandemic was a health emergency leading to a complete shutdown of economic activity and mobility to save lives against an unknown enemy. Consequently, there was no clear or readymade template for policymakers to follow; instead, they had to innovate and learn on the job in framing appropriate policy responses to minimise the negative impact of the pandemic on the economy and the financial system.

When the shadows of the pandemic were receding, geopolitical tensions and supply chain disruptions fuelled new challenges and inflation came back strongly. The resultant regime shift in monetary policy rattled financial market sentiments leading to a period of 'great volatility'. Existing models that were built to explain historical patterns in the data were found wanting in explaining the new realities. These models are now being increasingly challenged by ongoing shocks, geo-economic tensions and supply chain reconfigurations. For instance, models focusing on aggregate analysis fell short to explain what we observed in the aftermath of the pandemic. There was a rotation in demand initially from services to goods and then from goods to services. There was also a period of pent-up and revenge spending. These sectoral imbalances kept the levels of inflation high. The pandemic has indeed highlighted the need for more granular and sectoral analysis. In a sense, paradigm shifts in economic thinking are on the anvil. Let me reflect on some of these issues further.

First, the world after the pandemic has changed fundamentally in terms of shifting labour market dynamics, work processes and technological deepening. Work from home, online education and shopping have received wide acceptance, altering the way we work, learn and live. Technological innovation and digitalisation are permeating through every sector of the economy. Businesses are adapting to these trends for their survival. Frontier technologies like Artificial Intelligence (AI) and Machine Learning (ML) are being used widely to boost productivity. These technologies open new opportunities, but they also present challenges that we need to address.

Second, monetary policy before the pandemic was operating in a low for long regime in its quest for reviving growth while resisting deflationary pressures. This situation changed suddenly and drastically with monetary policy adopting the stance of "higher for longer" rates to fight inflationary pressures, following the war in Ukraine. Such regime shifts in the presence of debt overhang in an environment of high interest rates and low growth raise concerns on macroeconomic stability in many countries. Higher interest rates not only raise the interest servicing burden of heavily indebted countries but also impact the balance sheet of banks and financial institutions, as it was seen during the recent banking sector turmoil in advanced economies. In an extreme sense, high indebtedness of countries may constrain monetary policy due to sharp trade-off between price stability and financial stability.

Third, globalisation had boosted the global economy by enhancing productivity, creating global value chains and free movement of capital and labour across countries. The benefits of globalisation, however, had reached unevenly across countries. Given the recent trends of geo-economic fragmentation, industrial and trade policies worldwide are undergoing a shift. Several economies are now reshoring, nearshoring and friend-shoring 1 their production processes on security and strategic considerations. Consequently, there is growing trade fragmentation, technological decoupling, disrupted capital flows and labour movements. All of these do not portend well for an integrated global market for goods and services.

Fourth, from emerging market economies (EMEs) perspective, disruptions in trade flows in food, energy and critical industrial inputs due to recurring geopolitical flashpoints and disturbances in key trade routes are raising concerns for food security and macroeconomic management. Moreover, in view of the volatility in financial markets and capital flows, these countries remain vulnerable to external shocks. In such an environment, creation of domestic buffers in terms of strategic reserves of critical commodities as well as a strong umbrella of forex reserves become imperative for the EMEs.

Fifth, macroeconomic models used by central banks so far have mainly focused on the demand side of the economy. Enough emphasis was not given on supply side factors. The pandemic, followed by the war, and the resultant supply chain disruptions have brought in a sharp focus on the supply side. Overlapping supply shocks, as we saw recently, led to persistent inflationary pressures even when aggregate demand was not unreasonably high. In this context, the role of governments in managing the supply-side or cost-push pressures on inflation has increasingly gained wider acceptance. Going forward, a better understanding of the supply side of the economy has become very important for conducting monetary policy more effectively.

Against this background, let me now briefly touch upon the macroeconomic settings in our region.

Macroeconomic Overview of the SEACEN Region

The South-East Asian economies have shown remarkable resilience in the face of large global shocks. To a large extent, this can be attributed to improved monetary and macroeconomic policy framework that these countries have adopted in recent years. Growth in this region has remained strong, while inflation has been lower than the OECD average. Economic activity of the region has been supported by resilient services activity across sectors such as retail trade, digital services, e-commerce and tourism. This region remains a model of regional integration with close trade and labour flow linkages. Nevertheless, there is significant untapped potential for further trade integration. I strongly feel that promotion of tourism within the SEACEN countries can further strengthen the economies of the region.

Turning to the Indian economy, India has successfully navigated through multiple challenges and emerged as the fastest growing large economy. Prudent monetary and fiscal policies have paved the path for India's success in sailing through these rough waters. The Reserve Bank projects the Indian economy to grow by 7.0 per cent during 2024-25, marking the fourth successive year of growth at or above 7 per cent. Inflation has moderated from the highs of the summer of 2022. Recurring food price shocks and renewed flash points on the geo-political front, however, pose challenges to the ongoing disinflation process. We remain vigilant to navigate through the last mile of disinflation as it is often the most difficult part of the journey. We firmly recognise that stable and low inflation will provide the necessary bedrock for sustainable economic growth.

India's coordinated policy response in the face of a series of adverse shocks can be a good template for the future. While monetary policy worked on anchoring inflation expectations and quelling demand-pull pressures, supply side interventions by the government alleviated supply-side pressures and moderated cost-push inflation. Effective fiscal-monetary coordination was at the core of India's success.

I would now like to turn to some possible policy choices for the future course of the global economy, as new realities take shape in the years to come.

Policy Choices Going Ahead

First, we need to chalk out an effective strategy for global cooperation and coordination to deal with multiple challenges afflicting the global economy. Multilateralism must be re-energised. In this regard, agreements on a "critical minerals corridor" and a "food corridor" for safeguarding food security are necessary. Such arrangements have to be fair and equitable.

Second, there is a need to develop cooperation in areas of common interest and urgent needs such as climate change where no country can devise strategies on its own. Smooth and orderly green transition is necessary to avoid disruptions to economic activity and loss of growth potential. While the investment needs for smooth green transition are large, the actual financial flows to green projects are highly skewed and are, by and large, concentrated in advanced economies. As a result, there is a need to enhance green capital flows to EMEs. At the same time, we have to be mindful of potential financial stability implications of green transition.

Third, improving infrastructure remains key to long-term growth. While investment in hard infrastructure (roads, ports, airports, electricity, water) is important, there has to be equal emphasis on creating soft infrastructure (education, health, legal, financial, institutional). Skill enhancement and increasing female labour force participation are key to enhancing effective labour supply and potential growth of the region.

Fourth, India's experience has shown how Digital Public Infrastructure (DPI) can be utilised for advancing financial inclusion and productivity gains through cost reductions. Our sustained engagement in the India Stack and the Unified Payments Interface (UPI), especially during the pandemic and thereafter, has given us the confidence that digital public infrastructure can become a critical part of global public good when scaled up beyond national boundaries. The linkage of Indian UPI and the fast payment systems of a few other countries drives home the potential of the UPI to become an international model for cross-border payments.

Fifth, new technological developments like artificial intelligence (AI) and machine learning (ML) can bring about significant improvements in efficiency and productivity of businesses. Necessary safeguards, however, need to be put in place to prevent the misuse of technology. In particular, global financial market regulators need to be vigilant about the possible misuse of AI and ML in perpetrating financial fraudulence.

Conclusion

The global economy stands at crossroads. Challenges remain in plenty, but new opportunities are also knocking at the door. Together, the course we take from here will decide our destiny in times to come. We need policies that are attuned to the new realities of the global economy. In an uncertain world, central banks need to be proactive to better serve the objectives of price and financial stability.

In this environment, collaboration is not an option but a necessity. We need greater resolve and coordination to make significant progress in dealing with global challenges. SEACEN, as a platform for central banks of the region, serves as a valuable forum for sharing insights and fostering cooperation in several areas for enhanced progress and prosperity. The cooperation among countries should give due consideration to the principles of comparative advantage and resource endowments so that each one of us benefits. Let us take our deliberations to the next level to achieve well-being of our people and our economies.

Thank You, Namaskar.


1 The term "reshoring" refers to a country's transfer of (part of the) global supply chain back home (or geographically closer to home the case of "nearshoring"). "Friend-shoring" limits supply-chain networks and the sourcing of inputs to countries allied with the home country and trusted partners with aligned strategic and political preferences.


O genocídio paradoxal: resenha de livro - Adam Jones sobre Anne O'Byrne, 'The Genocide Paradox: Democracy and Generational Time' (Book Review, H-Diplo)

 Uma resenha de livro que parece ter vindo bem a calhar (certamente, não era essa a intenção da autora quando preparou a obra, provavelmente uma tese de doutorado), num momento em que genocídios e Holocausto são discutidos exaustivamente, nem sempre pelas boas razões ou com a precisão histórica requerida. (PRA)

Greetings Paulo Roberto Almeida,