Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da independência
Rubens Ricupero
Ciclo: O que falta ao Brasil?
Academia Brasileira de Letras, 29 de agosto de 2019.
Ao Brasil falta muito, quase tudo, para ser o sonho intenso de que fala o nosso hino. Uma lista exaustiva das carências nos aproximaria do infinito. O problema maior, no entanto, não é a ausência de muitas coisas desejáveis. O pior é que nos privamos da única condição indispensável para um dia conquistar o que nos falta. Perdemos a esperança, isto é, a confiança de que o futuro nos trará remédio às agruras do presente, da mesma forma que antes o presente costumava superar problemas do passado. Vivemos um déficit agudo de esperança. E sem esperança, não existe possibilidade de construir o futuro.
O sentimento tem precedentes, geralmente em momentos de profunda desestabilização das instituições e das pessoas, como na súbita derrubada da monarquia. Joaquim Nabuco temia até o desmembramento do país ou a perda da noção de liberdade. O visconde de Taunay chegava a sentir “intensa vergonha de não ter morrido!” Silveira Martins comparava o Brasil ao que Diderot escrevera da civilização russa: “um fruto que apodrecera antes de amadurecer”.
O regime de Pedro II que esses brasileiros confundiam com o melhor Brasil possível possuía aspectos respeitáveis. Era, contudo, um país de pouco mais de 14 milhões de habitantes, a maioria analfabeta, com expectativa de vida inferior a 30 anos, muitos recém-saídos da escravidão e abandonados à própria sorte.
Houve depois outras fases de abatimento, mas a versão mais grave data de poucos anos atrás, de 2015/16, o instante em que começou a desfazer-se a ilusão de que o país tinha dado certo. Guardadas as proporções, o naufrágio da hegemonia do PT cumpre na história brasileira função análoga ao do colapso do comunismo no mundo. Para melhor explicar a afirmação, peço licença para transcrever na íntegra uma observação de Emmanuel Levinas sobre o sentido do fim do comunismo.
O jornal La Stampa lhe havia perguntado, pouco antes de sua morte em 1995, se pensava que esse acontecimento havia sido uma grande vitória para a democracia e o filósofo respondeu:
“Não, penso que as democracias perderam e muito. Apesar de todos seus horrores, seus excessos, o comunismo havia sempre representado a esperança [...]de uma ordem social mais equitativa. Não é que os comunistas tivessem uma solução ou estivessem preparando uma, ao contrário. Existia, no entanto, a ideia de que a História possuía um sentido, uma direção e que viver não era insensato, absurdo. [...]. Não creio que haver perdido essa ideia para sempre seja uma grande conquista espiritual.[...]. Acreditávamos saber para onde ia a História e que valor dar ao tempo. Agora caminhamos sem rumo, perguntando-nos a cada instante: ‘que horas são?’ De maneira fatalista, um pouco como se faz o tempo todo na Rússia: ‘que horas são?’ Ninguém sabe a resposta.”
Se trocarmos a palavra “comunismo” por “petismo”, impressiona como o trecho parece retratar o que sucedeu no Brasil. Excessos à parte, o PT também expressava a esperança de uma sociedade mais justa. Obviamente, além do PT, muitos brasileiros partilhavam a mesma aspiração. Foi o PT, porém, que teve a oportunidade de tentar em mais de 13 anos de governo aplicar inúmeras políticas públicas para reduzir a desigualdade, outra semelhança com o comunismo “real” e seus mais de 70 anos no poder.
Lula dava a sensação de encarnar uma notável transformação da sociedade. As medidas de transferência de renda, as quotas raciais, o acesso dos pobres ao ensino superior, prometiam um futuro de superação da desigualdade extrema herdada do passado. Sem base financeira adequada, as fórmulas petistas se tornaram insustentáveis. Algumas concorreram poderosamente para desencadear, primeiro a crise fiscal, em seguida o gravíssimo colapso que prostrou a economia até este momento.
A associação que se estabeleceu entre a ruína das contas públicas e o combate às injustiças sociais abalou as fundações da crença de que somos capazes de superar a desigualdade. Após os sucessos do Plano Real, do crescimento do governo Lula, da conquista do grau de investimento, a debacle da economia trouxe de volta aos brasileiros o efeito psicológico desmoralizante do fracasso.
A isso se somou o trauma do impeachment de Dilma, da condenação e prisão de Lula, de seu alijamento da campanha eleitoral de 2018, gerando contestações sobre a legitimidade democrática do poder. O pouco que sobrava do prestígio das instituições políticas se viu, ao longo de três intermináveis anos, estremecido pelas revelações quase diárias de escândalos pela Lava Jato, ela mesmo ora em vias de desmoralização devido a excessos e erros próprios, assim como à reação defensiva de setores políticos.
O Brasil jamais tinha passado por retrocesso tão destrutivo na vida das pessoas por meio do desemprego, do aumento da pobreza, do desalento. Nem experimentara nada equiparável ao profundo impacto depressivo dos escândalos de corrupção que destruíram a autoestima de todo um povo. Em conjunto, essas desgraças simultâneas produziram efeito equivalente ao da guerra sobre uma sociedade até então poupada de catástrofes históricas como derrotas e ocupações estrangeiras.
Tenho usado os verbos no passado a fim de situar no tempo o momento em que ocorreram as causas da situação que vivemos. Esse nosso passado próximo, contudo, não acabou de passar, é ainda o nosso presente. Neste mesmo instante, ele continua a nos fazer sofrer na persistência da estagnação econômica, do desemprego, do retrocesso social, da barbárie das prisões, da corrupção, da destruição da Amazônia, da degradação dos homens que nos desgovernam. A mais angustiante crise de nossa História se prolonga como obra de demolição em pleno andamento, como um work in progress. Agravada pelo advento de um governo retrógrado cujo único programa reside na demolição sistemática do passado.
Se a analogia com o contexto externo for correta, deve-se esperar, também por aqui, uma transição dolorosamente longa até que desponte período histórico diferente. No mundo, o sonho de uma sociedade mais justa acabou antes que no Brasil. Uma de suas primeiras expressões foi o ensaio do pensador e jornalista norte-americano William Pfaff por volta de 1995/1996, que partia da pergunta: “E se não houvesse nenhuma razão de pensar que o futuro será melhor que o presente, ou, pior ainda, melhor que o passado?”
Desde o Iluminismo, acreditava-se que a História se encaminhava a um futuro que, retrospectivamente, daria sentido ao passado. Essa bela confiança tinha se evaporado.
Profético, o ensaio de Pfaff antecedeu as calamidades que se sucederiam nos anos seguintes. A lista é interminável: o genocídio de Ruanda, os massacres da Bósnia, os atentados do Onze de Setembro, a eterna guerra do Afeganistão, a invasão do Iraque, a proliferação do terrorismo, a guerra civil da Síria, a anarquia na Líbia, as massas desesperadas de refugiados, a devastadora crise financeira de 2008, o aumento da desigualdade, a conquista do poder nos EUA pelo mais reacionário dos populismos.
A passagem para um novo milênio se cumpriu sob o signo da tragédia que voltou a pautar a História. Ubíqua, a crise da democracia liberal se manifesta por todo lado. Cobrem já boa parte da população mundial os regimes antiliberais, anticientíficos, negadores da mudança climática, hostis às elites intelectuais, à tolerância da diversidade, ao respeito do outro em matéria sexual ou cultural.
Dos quatro centros do poder mundial, três – os EUA de Trump, a China do presidente vitalício Xi, a Rússia do czar Putin – colocam o egoísmo nacional acima de uma ordem internacional baseada em leis, movida pela busca do consenso. O quarto, a União Europeia, último reduto da democracia liberal, do bem-estar social, da defesa do ambiente, sofre da desunião, do Brexit, do populismo de direita na Itália, Hungria, Polônia.
Os regimes atuais, quer o capitalismo ocidental, quer a versão estatizante chinesa, são incapazes de resolver os três maiores problemas humanos: o aquecimento global, o aumento da desigualdade, o desemprego estrutural agravado pelos robôs e a inteligência artificial. A possibilidade de que a mudança climática se torne irreversível traz de volta a ansiedade pela sobrevivência individual que se sentia no final da Antiguidade.
Coroando tudo, os ocidentais perdem a confiança na própria cultura, atacada com prepotência pelos adversários do liberalismo e da democracia. Batidos pelos chineses na expansão rápida da economia, amanhã, quem sabe, na vanguarda das tecnologias de ponta, americanos, europeus, temem a emergência, pela primeira vez em quinhentos anos, de uma superpotência não-ocidental.
Como será o mundo do futuro? Que valores refletirá a partir da influência do poder chinês? Até que ponto a ordem mundial continuará a se inspirar no Iluminismo, na Declaração dos Direitos do Homem, na democracia? É possível confiar na evolução de um regime como o chinês que confina centenas de milhares de uigures em campos de lavagem cerebral, que não tolera a diversidade de Hong Kong?
É nesse nevoeiro espesso de incertezas que se esconde o horizonte do futuro. Não foi muito diferente, cem anos atrás, quando o Brasil se aproximava do primeiro centenário. O mundo saia da Grande Guerra destroçado nas estruturas e nas almas. Em 1919, negociava-se o Tratado de Versalhes, Paul Valéry escrevia “nós civilizações sabemos agora que somos mortais [...] sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade que uma vida”.
Os tempos não eram melhores que os de hoje. Basta lembrar que o ano do centenário da independência coincidiu com a marcha de Mussolini sobre Roma, a primeira conquista de um país pelo fascismo. A década de 1920 se encerraria com o colapso da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão. A seguinte assistiria ao sinistro triunfo do nazismo, ao estalinismo, ao estalar da Segunda Guerra Mundial com o cortejo de horrores que se seguiu: o Holocausto, os campos de extermínio, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Nada disso impediu o Brasil de avançar. Ao completar cem anos de vida independente, a sociedade brasileira deu balanço no passado, espantando-se com o déficit. No sugestivo estudo que dedicou ao centenário, A nação faz cem anos, a Professora Marly Silva da Motta mencionava o severo juízo de Capistrano de Abreu, ao concluir em 1907 seus Capítulos de história colonial. O legado de três séculos de colônia teria sido a pobreza intelectual, moral e material, a inexistência de vida social, a incapacidade organizativa. A monarquia escravocrata não havia sido capaz de superar tal herança em 67 anos de crescimento modorrento.
O debate intelectual, jornalístico, antes e depois do centenário, produziria, em 1924, a coletânea À margem da história da República. Seu organizador, Vicente Licínio Cardoso, afirmava que o desafio de sua geração consistia em empreender “nova Obra de construção, ou seja, fixar [...] o Pensamento e a Consciência da Nacionalidade Brasileira”, tudo com maiúsculas. Nas palavras de Marly Motta, “ser moderna, eis a aspiração da sociedade brasileira às vésperas do Centenário da Independência”, embora a autora advirta que os diferentes atores tinham concepções diferentes da modernidade.
A diversidade marca, de fato, as manifestações do centenário, que se inauguram, em fevereiro, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, seguindo-se a fundação do Partido Comunista do Brasil, a do Centro Dom Vital, núcleo do pensamento católico conservador, por Jackson de Figueiredo, o sacrifício heroico dos 18 do Forte de Copacabana, primeira manifestação pública do Tenentismo, a Exposição Internacional de setembro, e a instituição, no último dia do ano, do imposto de renda!
O carcomido sistema político da República Velha não soube captar os sinais de que a sociedade ansiava por mudanças profundas: a greve geral de 1917, a pulsação dos movimentos artísticos, a inconformidade das baixas patentes do Exército com as fraudes eleitorais. Mostrou-se assim incapaz de deter o processo de autodestruição que culminaria na Revolução de 30.
Nascido com a Primeira República em 1889, Vicente Licínio Cardoso manifestava a decepção dos contemporâneos com os 35 anos do regime em palavras que parecem expressar os nossos sentimentos em relação aos 34 anos da Nova República: “A grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na certeza de que já tínhamos vencido certas etapas [...]resolv(ido) de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a tragédia [...] foi sentir quanto de falso havia nessas suposições”
Apesar do igual desapontamento, há uma evidente diferença entre a efervescência de 1922 e a desesperança de hoje. O contraste talvez se deva à crueldade do choque recente por haver sido precedido da ilusão de que o Brasil era “a maior história de sucesso da América Latina”, como afirmou a revista Economist na edição da fatídica capa do Cristo Redentor decolando, em novembro de 2009. Sem a mesma frustração de um tempo melhor, os brasileiros de 22 só viam, ao olhar para trás, um passado de atraso, ignorância, insucesso. A própria crise do sistema político vinha de longe, tornara-se crônica. O governo de Epitácio, que terminava em 22, até se comparava com vantagem aos anteriores, embora a situação não tardasse em se agravar com o advento de Artur Bernardes.
O confronto entre o primeiro e o segundo centenário põe em evidência o inédito da experiência corrente: a de que, em alguns aspectos importantes, nosso presente é pior que nosso passado. Não se trata do vulgar sentimento de que “a nuestro parescer, cualquier tiempo pasado fue mejor”, como dizia Jorge Manrique nas Coplas por la muerte de su padre.
Quem negaria, por exemplo, que os tempos atuais são piores que os da modernização do Estado e industrialização dos anos 1930 a 1950, aos “50 anos em 5” de JK, aos da Política Externa Independente de Jânio e San Tiago Dantas, aos 16 anos de estabilidade, crescimento, conquistas sociais de FHC e Lula? Se essa avaliação for julgada subjetiva, existe um critério mensurável indiscutível: o do crescimento econômico.
Segundo o professor Rogério Furquim Werneck, entre 1940 e 1980, a economia apresentou taxa média de crescimento de 7% ao ano, expansão rápida e estável, pois, em 40 anos, apenas em um, (1942), registrou-se queda do produto. O longo período de crescimento, comparável aos asiáticos, permitiu multiplicar o PIB real por quinze. Apesar da população haver triplicado no período, o produto por habitante cresceu mais de cinco vezes!
Compare-se agora com as quatro décadas seguintes, de acordo com os dados do estudo da Goldman Sachs (maio de 2019) intitulado: Brasil: duas décadas perdidas em 40 anos. Poderia o país perder meio século? Afirma o estudo que “nas quatro décadas entre 1981 e 2020, o crescimento real do PIB per capita quase certamente ficará em menos de 0,8% ao ano na média; nesse passo, levará 87 anos para dobrar a renda per capita [...] em duas das últimas quatro décadas, o Brasil experimentou declínio de crescimento real do PIB per capita: a de 1980 e provavelmente a de 2010 [...] a próxima década poderia também ser perdida, nesse caso, o Brasil teria perdido meio século”.
Esta última frase parece ecoar as palavras do barão de Cotegipe ao barão de Penedo sobre a guerra do Paraguai: “Maldita guerra, atrasa-nos meio século!” Um fracasso de 50 anos é assustador! É preciso martelar esses dados a fim de combater a complacência e reconhecer que estamos diante do maior desastre de desempenho coletivo de nossa história recente!
Temos de admitir que o nosso presente é, sob esses aspectos, muito pior do que certas fases do nosso passado. Existem, claro, luzes que se contrapõem às sombras. Estes 40 anos de altos e baixos coincidem com a consolidação da democracia. Sem arbítrio nem poderes especiais, a democracia encontrou soluções a problemas criados ou agravados pelos militares: a crise da dívida externa, a inflação explosiva, a destruição dos direitos humanos, a ruina do Estado de direito.
Nesse período, em especial nos 20 anos entre 1995 e 2015, alcançou-se a maior redução relativa da pobreza e da indigência de nossa História. O plano Real criou uma moeda estável, institui-se o ministério da Defesa para subordinar os militares ao poder civil, atingiu-se a universalização do ensino fundamental, os estudantes das classes CDE no ensino superior saltaram de 87 mil a 2,1 milhões, lançaram-se as bases de um serviço de saúde universal.
Os progressos são reais, o problema é que, depois de gerar tais resultados, o sistema político-econômico mostra sinais de esgotamento, produzindo rendimentos decrescentes. Ora, se a estagnação se perpetuar, muitas conquistas se revelarão insustentáveis a longo prazo. Foi o que sucedeu na Argentina, onde os progressos educacionais e sociais vêm sendo gradualmente erodidos pela crise quase permanente. O bicentenário da independência argentina em 2016 encontrou a nação pior do que cem anos antes, no primeiro centenário, quando era a quinta maior economia do mundo. O decadentismo, o declínio secular, que nos habituamos a atribuir a nossos vizinhos do rio da Prata é, na verdade, doença contagiosa que já transpôs nossas fronteiras.
A exemplo de cem anos atrás, a aproximação do segundo centenário fornece estímulo para reagir à doença antes que se torne crônica. Em 22, esse papel pioneiro correspondeu, em primeiro lugar, à Semana de Arte Moderna. Um século depois, ultrapassado o debate de 22 sobre a modernidade e a questão da identidade nacional, o que nos cabe é identificar razões para confiar que o futuro será melhor que o presente e superior aos melhores momentos do passado. Precisamos de razões plausíveis para recuperar o que perdemos devido aos sucessivos fracassos: a confiança em nossa capacidade de influenciar o futuro, de dar-lhe um sentido humano.
O ponto de partida terá de ser a renovação da cultura, da filosofia, da literatura, das artes, como na Semana de Arte Moderna, na geração espanhola de 1898 e na experiência de outros povos. De 1922, o que ficou na memória coletiva foi a Semana de Arte Moderna. É por referência a Mário de Andrade, a Oswald, a Bandeira, a Drummond, a Villa Lobos, aos que vieram depois, que nos definimos na consciência de uma identidade bem diferente da que prevalecia anteriormente.
No campo das ideias, os sinais não são encorajadores. A novidade, se é que cabe tal palavra, é a versão brasileira requentada de fenômeno mundial, a seita de extrema-direita que mistura ideólogos pós-fascistas com iluminados, astrólogos, apocalípticos e lunáticos de todo o gênero. Em política, a polarização e radicalização da sociedade se aproximam dos níveis da véspera do golpe militar de 64. Consolida-se um quadro perverso que lembra o italiano no período em que o Partido Comunista se mantinha como primeira força de oposição, atingia um terço do eleitorado, mas não lograva romper esse teto. Dizia-se então que a Itália não era um país normal como os demais da Europa Ocidental pois não existia possibilidade de uma alternância democrática, que equivaleria à chegada do comunismo ao poder.
A eleição brasileira de 2018 ajusta-se a essa descrição. O padrão se reproduzirá por muito tempo se não se romper a polarização entre extrema direita e PT, com o medo empurrando os segmentos médios na direção da direita. Superar o medo requer algo parecido ao compromisso histórico que se frustrou na Itália, isto é, a aliança entre o centro socialmente progressista e a esquerda democraticamente renovada.
A eficácia econômica, a responsabilidade financeira, que tomaram o lugar da luta contra a miséria depois do colapso da era Dilma não bastarão se não forem acompanhadas de vida melhor para os marginalizados. A paixão capaz de galvanizar a sociedade brasileira só pode vir da busca da maior igualdade possível. Uma população dividida por profunda desigualdade de condições jamais se empolgará por ideais liberais de competição, eficácia, meritocracia, produtividade. Necessárias para tornar sustentável a economia, essas qualidades precisam ser conciliadas com forte redistribuição da propriedade e da renda.
Nos anos 20, o vácuo criado no debate público pelo fim do abolicionismo começava apenas a ser ocupado pela “questão social”, sob impacto das greves operárias, dos primeiros sindicatos, da agitação dos jornais e elementos anarco-sindicalistas. Dos 17,5 milhões de habitantes de 1900, rurais e analfabetos na sua maioria, a população atingiria cerca de 31 milhões no ano do centenário. A partir de então acelera-se a dupla explosão demográfica e urbana, hoje em grande parte concluída, até chegar aos atuais 209 milhões, 86% vivendo em cidades.
O crescimento concentrou-se maciçamente nos pobres. Deu nascimento às favelas, às gigantescas periferias que circundam as cidades, mesmo as pequenas do interior. Nelas se desenvolve um ator social novo, de cultura original até na religiosidade carismática e na expressão política. Esse ator novo exige um lugar ao sol na vida política, na economia, na cultura. A história dos últimos cem anos se confunde com o esforço de integração da periferia, das resistências aos avanços, dos políticos e partidos que tentaram canalizar a luta ou se beneficiar dela, Vargas, PTB, Lula, PT.
Ninguém se iluda, o aparecimento de um novo ator social e político tem sempre efeito desestabilizador. Assim sucedeu na Europa da Revolução Industrial, com as revoluções de 1830, 1848, da Comuna de 1871. Entre nós e no resto da América Latina não será diferente: não haverá paz, estabilidade, retomada do desenvolvimento sem a integração progressiva do novo ator como cidadão, produtor, consumidor, agente de cultura.
Urge por isso dobrar a página desta anomalia monstruosa produzida pelo medo na última eleição, reabrindo o caminho para devolver a esperança a todos os brasileiros, em especial aos que mais carecem dela. Depois desta hora do poder das trevas, impõe-se dar sentido à História, recuperar o sentimento de que a vida humana no Brasil não é absurda e insensata.
Nesse esforço cabem à renovação da cultura e aos intelectuais um papel insubstituível. Trata-se, com efeito, como escrevia Marcuse em O Homem Unidimensional, de fazer com que os extremos se encontrem, isto é, que a consciência humana mais evoluída se ponha a serviço da força humana mais explorada.
Não está escrito nas estrelas que o nosso futuro será melhor ou pior que o presente e o passado. Sem o consolo das certezas ilusórias, depende apenas de nós, de nossa ação consciente, que os próximos cem anos revertam o declínio, garantindo-nos um futuro melhor que o presente e superior ao passado. Devemos devolver ao Brasil não uma esperança qualquer, mas aquela de que afirmava Walter Benjamin: “É apenas por causa dos que não têm esperança que a esperança nos foi dada”.
São Paulo, 17 de agosto de 2019.
BRIGHTON & HOVE – With the just-concluded G7 summit exposing the group’s diminished status, it is appropriate to ask where power lies in today’s world. The United Nations has 193 member states (the most recent, which joined in 2011, is benighted South Sudan), all of which are, as Secretary-General António Guterres put it in 2016, technically committed to “the values enshrined in the UN Charter: peace, justice, respect, human rights, tolerance and solidarity.” But while each gets one vote in the General Assembly, nobody would dare claim that each country carries equal weight.
Instead, the five permanent members of the Security Council – the United States, China, Russia, France, and the United Kingdom – reign supreme, each wielding a veto over whatever the other 192 members might want. That is why Israel, owing to US support, can blithely ignore countless UN resolutions, and why Syria, owing to Russian and Chinese support, handily escaped sanctions for its use of chemical weapons a decade ago. Owing to the disproportionate power they wield, the “Permanent Five” share an old, decidedly British sense of empire. While the authors of two recent books on empire, Lawrence James and Nandini Das, offer no thoughts on how the UN might – or indeed should – be reformed, I suspect that they would agree. In The Lion and the Dragon, James, a prolific historian of the UK’s role in world affairs, follows Britain’s relations with China from the nineteenth-century Opium War until the return of Hong Kong and today’s tensions over Taiwan. And in Courting India, Das, a professor at the University of Oxford, concentrates on the very beginnings of the British Empire and its covetous reach into what was then the Mughal Empire in India.
What this history shows is that empire is still very much with us. Though Americans, proud of throwing off the rule of King George III, tend to bristle at the idea, their own military, technological, and commercial power is as imperial and pervasive as Britain’s territorial dominance ever was. As James notes, we can thank the post-World War II Pax Americanafor the mostly stable international relations that prevailed during the aptly named Cold War with the Soviets (and their own empire). A perennial question, especially during periods of geopolitical upheaval, is not just how empires emerge, but how they fade. Though Britain and France still indulge their memories of empire, they have long since accepted being “middle powers” at best. Ever since the Suez crisis of 1956, when the threat of US sanctions forced Britain, France, and Israel to withdraw from Egypt’s Suez Canal, Britain has supinely followed America’s lead in international relations. (UK Prime Minister Harold Wilson’s refusal to send troops to Vietnam in the 1960s is the exception that proves the rule.) At the same time, France has sought comfort in the collective embrace of what became the European Union. As for the other members of the Permanent Five, Vladimir Putin’s Russia is on a hopeless quest to reverse the collapse of the Soviet Union (the “greatest geopolitical catastrophe” of the twentieth century, in his estimation) and recreate the empire of Peter the Great; and China already sees itself, with some justification, as wielding global influence to rival that of the American empire. China’s pursuit of superpower status is born of not just current economic and political realities, but also its deep-seated resentment over the “century of humiliation” (1839-1949) that it suffered at the hands of European (and Japanese) imperial powers. Of course, similar sentiments also animate Putin’s revanchism, as well as Indian Prime Minister Narendra Modi’s dismissiveness of diplomatic overtures from post-Brexit Britain. In William Faulkner’s oft-quoted words, “The past is never dead. It isn’t even past.”
Passage to India
The trite answer to the question of why empires fall is that they become victims of their own success, growing too large, too corrupt, too exhausted to fend off energetic newcomers. As the Arab philosopher and historian Ibn Khaldun argued in the fourteenth century, empires are like living organisms: they grow, mature, and die.
As Das’s wonderfully researched book shows, the Mughal Empire was almost mature when the British arrived in the 1600s. Its Muslim rulers, with their roots in Central Asia, are fascinating figures. Emperor Jahangir, a generous patron of the arts, was addicted to opium and wine, whereas his wife, Nur Jahan, wielded significant political influence. The emperor’s son, Shah Jahan, was a “king of the world,” whose love for his wife, Mumtaz Mahal, is permanently commemorated in the Taj Mahal. Mughal India was both a place of immense wealth and a bastion of religious tolerance (unlike Europe, with its centuries-long Inquisition against Muslims, Jews, and heretics). By contrast, the British Empire was barely in its infancy when its clash with Mughal India began. In Courting India, Das paints a vivid picture of the experiences – mostly endured, rather than enjoyed – of King James’s ambassador, Thomas Roe, at the Mughal court. But more than that, she also offers a rich description of Jacobean England as it was emerging from the first Elizabethan age and jostling for power with Portugal, Spain, France, and Holland. Roe’s own journals are a major primary source, but so, too, are the cultural interpreters of the period, from William Shakespeare to the poet John Donne (a friend of Roe). Theirs was an England full of energy, seeking its fortune in the Americas and the Indies. However, it was nowhere close to as sophisticated as courtiers like Roe seemed to believe. Indeed, Roe was almost a caricature of the Englishman abroad. He refused to learn any language that might have helped his mission (be it Farsi or Turkish), and he insisted that he and his staff wear English wool and silk, even through the Indian summer. While he eventually came to admire the pragmatic tolerance of Mughal society, he remained convinced of England and Protestant Christianity’s superiority. Never would he have allowed himself to “go native.” Roe was answerable not only to King James but also to his financial backer, the East India Company, which had been granted its charter by Elizabeth I in 1600. This meant that he was constantly tussling with the miserly company for money (its traders were always jealous of him), as well as struggling to quell, or at least make excuses for, the riotous behavior of English sailors in India’s ports.
The Century of Humiliation
Two centuries later, the East India Company, as it appears in James’s book, would still be clinging to the same assumptions that Roe had held. The superiority and integrity of Christian Britain went unquestioned, and still stood in stark contrast to “Asian greed and despotism.” The biggest change, in the meantime, had been the collapse of the Mughal Empire. Mughal India, the wealthiest place in the world at the end of the seventeenth century, was steadily enfeebled by internal dissent and Persian and Afghan invasions. In 1857, the East India Company formally dissolved the empire, setting the stage for Queen Victoria to establish the “British Raj” and direct rule over the Indian subcontinent the following year. To paraphrase Ibn Khaldun, nineteenth-century Britain was no longer an infant with imperial ambitions; it was now an adult with all the energy and ruthlessness needed to extend its reach around the world. As such, the British lion had no misgivings about disgracing the Chinese dragon. Looking back on this period, it is easy to see why Chinese President Xi Jinping is so determined to expunge the century of humiliation from the national memory. That century began in 1839 with the First Opium War. When China tried to block imports of East India Company opium from Bengal, Britain responded with all its (industrialized) military might. By 1842, British warships and soldiers had crushed all opposition and compelled China’s Qing emperor to sign the Nanjing Treaty. That opened China to international trade and ensured that British citizens in “treaty” ports would be subject to British, not Chinese, law. Another consequence of the war was that Britain took possession of Hong Kong, which it would hold until 1997. Whereas Das describes India principally through Roe’s eyes, James is keen to present a balance between British actions and Chinese reactions. In doing so, he stresses that China was not reacting only to British imperialism. After all, this was a time when “a spirit of predatory imperialism … pervaded the foreign ministries of Russia, France, Germany and China’s near-neighbor, the newly industrialized Japan.” Seized by their own commercial ambitions, all four “regarded China as a land mass to be partitioned and shared out in the same way as contemporary Africa.” But these other imperial projects hardly give Britain a pass. In arguing that “Britain was reluctantly sucked into the complex geopolitics of great-power empire building in the Far East,” James simply is not convincing. Britain, the world’s leading naval power and the home of the Industrial Revolution, was already adept at the game of geopolitics and quite prepared to protect its interests in China, not least because that would also protect its interests in India. By the eighteenth century, the Qing Dynasty had expanded from its Manchu roots and established an empire extending from Mongolia and Tibet to the Pacific. But by the nineteenth century, it was too exhausted to withstand the pressure not only from the other imperial powers but also from its own people. The century of humiliation always refers to foreign interventions, but equally important were domestic embarrassments such as the 1850-64 Taiping Rebellion – in which some 30 million people died – and the 1899-1901 Boxer Rebellion. The dynasty’s “Mandate of Heaven” was clearly slipping from its grasp. It finally came to an end in 1912, when the Western-educated Sun Yat-sen, following a brief revolution, established the “Republic of China.”
Remember Thucydides
Today, that title applies only to the island of Taiwan, whereas Xi presides over the “People’s Republic of China,” which was established in 1949 with the victory of Mao Zedong’s Communist Party over Chiang Kai-shek’s Nationalist forces. Since the 1970s, most countries – including both rival Chinas – have embraced the fiction that the ROC and the PRC refer to a single country. But there is a constant fear that Taiwan could formally declare its independence and destroy the fiction, thus provoking an invasion from the mainland. If President Joe Biden is to be believed, the US would then come to Taiwan’s rescue and the South China Sea would witness a Sino-American war with far-reaching regional and global consequences. Given his focus on Britain and China, James understandably devotes only a handful of his final paragraphs to US analysts’ “bleak” prognosis of a future war over Taiwan. Moreover, throughout the preceding chapters, he deals deftly with other instances when conflict erupted between rival regional powers. These include the Sino-Japanese war of 1894, which led to Japanese occupation of Taiwan; the Russo-Japanese war of 1904; Japan’s bloody expansionism in the 1930s; and, of course, Japan’s attack on Pearl Harbor, which brought America into World War II. The big risk today is that China and America could end up at war as much by accident as by design. Graham Allison of Harvard University has famously warned of the “Thucydides trap,” an allusion to the Peloponnesian War, in which Sparta, the incumbent hegemon, was “destined for war” with the rising power, Athens. In a world that has created so many multilateral institutions – from the World Trade Organization to the G20 – it is tempting to dismiss Allison’s argument as alarmism. But over the past 500 years, there have been 16 instances of an incumbent power facing off with a rising power, and war was avoided in only four of them, the most famous being America’s rise to replace Britain as the leading world power in the early twentieth century. Notably, James recalls that China was “stunned” by Britain’s 2016 vote to leave the European Union. The message pushed by Chinese state-controlled media was that the UK had surrendered to “a losing mindset.” Clearly, the current Chinese leadership has no intention of showing weakness. The good news is that political and military leaders on both sides of the Pacific are aware of the risks. As Xi said in 2015, on his first state visit to America, “There is no such thing as the so-called Thucydides Trap in the world. But should major countries time and again make the mistakes of strategic miscalculation, they might create such traps for themselves.” The bad news, however, is that all countries are prone to “miscalculation.” Was it a mistake, for example, for imperial Britain to endorse Zionism with the 1917 Balfour Declaration? Given all the Middle East wars that followed the establishment of Israel, some may very well think so. But try telling that to the survivors of the anti-Semitic pogroms of the nineteenth century and the Holocaust.
Tick-Tock
Almost a half-century ago, John Bagot Glubb, a British general who commanded the Jordanian army from 1939 until 1956, published a book entitled The Fate of Empires and Search for Survival. His thesis was essentially the same as Ibn Khaldun’s, only with the added claim that almost all empires rise and fall over a period of roughly 250 years. Putting aside the obvious flaws in Glubb’s arithmetic (the Ottoman Empire certainly did not “end” in 1570), the core idea should not be dismissed too casually. After all, historians now give the Qing Dynasty a lifespan of 267 years, and the Mughal Empire of Das’s book began to lose territory after only two centuries. A pessimist might point out that today’s China began with the Communist victory in 1949, and that America’s quasi-imperial power began 201 years ago with the Monroe Doctrine. Time may not be on the side of those who place their trust in America to protect democracy and “liberal Western values.”
John Andrews, a former editor and foreign correspondent for The Economist, is the author of The World in Conflict: Understanding the World’s Troublespots (Economist Books, 2022).
Lawrence James, The Lion and the Dragon – Britain and China: A History of Conflict, Weidenfeld & Nicolson, 2023.