É uma história bárbara, feita por bárbaros, assassinos fascistas do regime implantado em 1964. O feto de Soedad foi arrancado do seu cadáver!

Relatou a fundamental advogada Mércia Albuquerqu:

“Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério…. em um barril estava Soledad Barrettt Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto.”

Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, ela não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao horrível e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco, falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”.

No depoimento da advogada não havia uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa que fraterniza e confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-os pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres –, despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.

Aqui chegamos a um estágio em que o melhor é narrar colado aos fatos e à sua complexidade. Vamos ao momento do depoimento imortal da advogada Mércia Albuquerque:

“O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”.

Agora, chegou a vez de corrigir na certidão de óbito o que estava antes na história. Atualização cartorial do horror.

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/a-morte-violenta-causada-pela-ditadura/ 

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.