O Brasil na crise de 1964 e a oposição armada ao regime militar: um retrospecto histórico, por um observador engajado
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 30 março de 2014
Sumário:
1. Antecedentes e contexto do golpe militar de 1964
2. A reação dos perdedores: resistência política e luta armada
3. A passagem à luta armada: a insensatez em ação
4. A derrota da luta armada e suas consequências: uma história a ser escrita
5. O que foi a luta armada no Brasil: uma interpretação pessoal
6. Quando a luta armada se desenvolveu no Brasil?
7. Onde a luta armada se desenvolveu no Brasil?
8. Como a luta armada se desenvolveu?
9. Por que houve luta armada no Brasil?
10. Uma avaliação pessoal da luta armada e suas consequências atuais
1. Antecedentes e contexto do golpe militar de 1964
O Brasil do início dos anos 1960 enfrentava uma típica crise de instabilidade do sistema político, não muito diferente de dezenas de outras, que surgem, se desenvolvem e desaparecem em quaisquer outros sistemas políticos, especialmente na América Latina. Desde meados dos anos 1950, a classe política, extremamente dividida quanto a soluções consensuais típicas de países em crescimento – inflação, gastos do governo, tributação, reformas estruturais e administrativas, etc. – não conseguia encontrar mecanismos democráticos para encaminhar as pressões do crescimento e das demandas por participação popular. Daí o velho recurso e o apelo dos políticos aos militares, como “pesos decisivos” na balança política, para “corrigir os problemas”.
De fato, os militares tinham uma longa tradição de intervenção nos assuntos políticos, desde o próprio golpe de derrocada da monarquia e de proclamação da República, até as crises político-militares dos governos JK e Jânio Quadros, passando pelas revoltas tenentistas dos anos 1920, pela revolução que derrubou a Velha República, pelo golpe que instaurou a ditadura do Estado Novo, em 1937, e também pelo que determinou sua extinção, em outubro de 1945. Depois, eles foram ativos participantes dos diversos episódios de turbulência da República de 1946, em especial em meados dos anos 1950, até culminar na implantação do parlamentarismo, em 1961, no bojo de nova crise, e na derrubada dessa República, menos de três anos depois.
Desde meados da década anterior, nos estertores do segundo governo Vargas, o Brasil vivia em permanente crise político-militar, agravando-se as turbulências no início dos anos 1960 em função do comportamento bizarro do presidente eleito Jânio Quadros e da momentosa posse do vice-presidente (eleito pela chapa concorrente) João Goulart. A situação, durante os seus três anos de mandato (primeiro em regime parlamentarista, depois no retorno ao presidencialismo), se caracterizava por constantes greves, inflação crescente, quebra de autoridade em diversas instâncias do poder estatal, inclusive no âmbito das Forças Armadas, e intensa radicalização política por parte dos movimentos que pretendiam para o Brasil opção semelhante à dos países comunistas, indo até, em certos meios, à preparação para a guerrilha rural, em moldes cubanos ou chineses.
O movimento civil-militar – não lhe cabe o nome de golpe, nem de revolução – que derrocou o regime da República de 1946 representou apenas o ponto culminante dessa fase de crise aguda, não sendo nem o resultado de uma conspiração organizada pela direita e pelas elites – como pretende a esquerda – nem o acabamento de algum desígnio imperial no contexto da Guerra Fria – como pretendem os paranoicos anti-imperialistas e antiamericanos das mesmas correntes. Ele ocorreu porque grande parte da sociedade, representada majoritariamente pela classe média, demandava uma solução aos descalabros administrativos, à corrosão do poder de compra, ao clima de desordem política, à percepção do aumento da corrupção que caracterizavam o governo Goulart.
Talvez os militares devessem ter aguardado as eleições do ano seguinte, e ter apostado numa solução democrática em face desse quadro turbulento, mas o fato é que o agravamento da situação induziu algumas lideranças civis e militares a atuarem de imediato contra o governo, sem que a necessária coordenação de todas as forças políticas se fizesse num sentido mais consentâneo com a legalidade constitucional. Existem momentos na história de um país nos quais a população decide assumir ela mesma as atribuições de um poder constituinte originário; foi o que parece ter ocorrido em março de 1964, quando a grande maioria da população brasileira secundou e se solidarizou com as Forças Armadas que assumiram o comando involuntário daquele movimento. A história poderia ter sido outra, mas ela é o que é: incontrolável.
A historiografia brasileira ainda se divide quanto à natureza do golpe, suas origens políticas, suas raízes sociais, suas justificativas econômicas ou geopolíticas, sobre o envolvimento dos Estados Unidos no evento, segundo se é contra ou a favor em relação a esse evento decisivo no Brasil moderno. A esquerda, obviamente, interpreta o golpe militar como o avanço das forças reacionárias, alinhadas ao imperialismo, contra a ascensão dos “movimentos populares”, em favor de reformas democráticas; ela nunca mudou de opinião a esse respeito, o que denota certa incapacidade a revisar suas próprias concepções e caminhar em direção de uma interpretação mais objetiva.
Os que apoiaram e comandaram o golpe, o veem como uma reação às forças comunistas que ameaçavam tomar o poder para colocar o país na esfera do movimento comunista internacional, liderado pela URSS. No caso do Brasil, curiosamente, as forças de “direita” ganharam, mas a História foi escrita pela “esquerda”, no sentido em que todo o processo político que levou às crises político-militares dos anos 1954-1964 e ao próprio golpe e seus efeitos mediatos e imediatos foram e são interpretados segundo a ótica dos “perdedores”, que, aliás, ascenderiam ao poder em 2003. De fato, o Brasil constitui um caso único de construção de um discurso histórico – e de vários outros padrões culturais – no qual a linha condutora veio a ser quase inteiramente dominada e controlada pelas forças, basicamente socialistas, que não tiveram o apoio da sociedade, seja nos momentos de crise política aguda, ou como projeto de organização econômica e social suscetível de recolher o apoio eleitoral da grande massa da população.
2. A reação dos perdedores: resistência política e luta armada
Seja qual for a interpretação que se decida adotar ainda hoje, o golpe militar de 1964 contra o regime de João Goulart – ou a “revolução”, segundo seus promotores – provavelmente não representou nada de muito diferente do que ocorreu na mesma época em diversos outros países latino-americanos. Talvez não tenha sido realmente nada de muito diferente, inclusive no que respeita às forças de esquerda que lutavam contra os regimes oligárquicos ou de burguesias alinhadas ao imperialismo americano durante a era da Guerra Fria. Estas forças se dividiram, logo em seguida, em dois grupos: depois de uma primeira preeminência dos partidos comunistas de orientação (e subserviência) soviética, ocorreram as primeiras cisões na esquerda latino-americana, basicamente representadas pela criação de partidos comunistas pró-chineses (tendentes a apoiar o conceito de guerra popular de base camponesa, conforme o modelo maoísta) e de movimentos identificados com a visão foquista-guerrilheira do processo de luta contra o Estado burguês, privilegiando os métodos fidelistas-guevaristas de tomada do poder.
A esquerda brasileira também acompanhou essas divisões dos movimentos de esquerda no plano mundial e passou a se organizar em função dos modelos respectivos de lutas políticas e militares. As cisões da esquerda brasileira se deram sobretudo em detrimento do “Partidão” (o “velho” PCB); foram muitas as que ocorreram, a começar pelo grupo maoísta que acompanhou as críticas de Mao Tsé-tung ao “revisionismo soviético” então representado pela desestalinização conduzida por Nikita Kruschev: se constituiu então o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que pretendia retomar a tradição dos primeiros anos do poder bolchevique, mas que acabou seguindo a via chinesa da guerra “camponesa” (consubstanciada mais tarde na guerrilha do Araguaia).
Vários outros grupos se organizaram, geralmente com o sentido de “passar à ação”, ante o reformismo do Partidão. Não havia muita elaboração teórica em torno das opções de luta, nem uma análise “científica” do que era a sociedade brasileira, ou sobre sua disposição de adotar a luta armada como uma forma de resistência a um regime que, nessa conjuntura (1965-1966), estava longe de ser uma ditadura feroz. Muitos desses grupos se organizaram atendendo ao apelo das conferências realizadas em Havana, a Tri-continental (reunindo militantes dos três continentes do Terceiro Mundo) e a dos movimentos guerrilheiros da América Latina, da qual resultou a criação da OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, uma mini-internacional que pretendia estimular o modelo cubano em todos os países do continente.
De fato, para a esquerda latino-americana, nenhum episódio da Guerra Fria foi tão marcante quanto a revolução cubana, e seu desfilar de “guerrilheiros heroicos” lutando contra um ditador submisso aos EUA. Ché Guevara simbolizava essa luta e foi com ele que se identificavam os jovens que também pensavam libertar o Brasil da hegemonia americana e instaurar um regime de “justiça social” e de “democracia popular”, embora divididos entre a adesão a um ou outro dos socialismos realmente existentes. Cuba era justamente o exemplo de que se podia derrocar um regime corrupto e criar o “homem novo”, base da transformação radical que se esperava fazer. As primeiras reações ensaiadas pelos militantes que recusavam a via reformista e pacifista do Partido Comunista Brasileiro, de linha soviética, partiam de pressupostos de inspiração cubana ou maoísta, no sentido de que só a luta armada poderia representar a verdadeira libertação do Brasil.
Todo o ambiente universitário era invariavelmente caracterizado por uma ideologia de esquerda, essencialmente marxista, nas diversas variantes da época, a que se somava a radicalização concomitante da chamada Igreja progressista. Os jovens dessa geração foram sendo levados quase naturalmente para a opção socialista, que na época se apresentava como uma solução “factível” e “possível”, tendo em vista os exemplos precedentes da revolução bolchevique, da guerra civil conduzida por Mao Tsé-tung na China e, sobretudo, porque bem mais perto do Brasil, da guerrilha cubana. Progressivamente, esses movimentos foram se preparando para a luta armada, de acordo com as diretrizes que emanavam de Havana, onde tinha sido organizada, em 1965, a Conferência Tri-continental, para prestar solidariedade ao Vietnã do Norte, em sua luta contra a república pró-americana do sul, e para estimular a luta armada na América Latina, como recomendava Fidel Castro, e como já tinha passado à ação Ché Guevara.
Guevara era – parece que continua sendo, a despeito de todas as evidências em contrário – o símbolo da rebeldia juvenil contra a opressão capitalista, e a metodologia então proposta para romper com o capitalismo e o imperialismo era dar início a um “foco guerrilheiro”, conforme teorizado pelo militante francês Regis Debray. No Brasil, entretanto, na ausência de massas camponesas sujeitas a algum tipo de dominação “feudal”, ou de uma “Sierra Maestra” próxima das cidades e dos latifúndios, nem a solução maoísta da guerra camponesa, nem o modelo cubano da coluna de guerrilha rural pareciam aplicáveis, razão pela qual os líderes comprometidos com a luta armada adotaram a via da guerrilha urbana, como depois seria enfatizado no “Mini-manual do guerrilheiro urbano”, do dissidente do Partido Comunista pró-soviético e líder da Ação de Libertação Nacional, Carlos Marighella.
Essas nuances das táticas de combate não se manifestavam, contudo, de forma muito clara no debate político desses grupos guerrilheiros, que decidiram passar à ação mesmo na completa confusão do que fazer, de quem doutrinar, que tipo de mensagem política preconizar, ou qual tipo de governo se pretendia implantar, exatamente, depois que se conquistasse o poder. O que é certo é que ninguém, nenhum desses grupos, em nenhum documento programático, se dizia que a intenção, ao lutar contra a ditadura militar, era a de colocar em seu lugar uma “democracia burguesa”, ou admitir alguma variante do regime capitalista-burguês. Sem que isso ficasse muito explícito, o que se cogitava, na verdade, era alguma variante dos regimes cubano ou chinês, uma vez que a União Soviética já era julgada, então, como muito burocrática e conservadora. Alguns grupos admitiam claramente que estavam lutando pela “ditadura do proletariado”.
3. A passagem à luta armada: a insensatez em ação
Repercutia então – em torno de 1966 – a palavra de ordem de Ché Guevara que era a de “criar dois, três, muitos Vietnãs”, como forma de ajudar a guerrilha vietcong a vencer o imperialismo. Não se sabia, então, onde estava o comandante Ché Guevara, que se tinha despedido oficialmente de Cuba, e de seus cargos cubanos, desde 1965, para continuar, como diziam os líderes cubanos, sua obra de revolucionário em outros continentes. Dois anos depois ele terminaria a vida nas selvas da Bolívia, maltrapilho, faminto, entregue à sua própria sorte, já que o Partido Comunista boliviano ignorou-o.
Pouco depois, mesmo em face do completo fracasso da aventura guerrilheira de Ché Guevara na Bolívia, os grupos que se estavam se preparando para a luta armada no Brasil passaram à ação, com ataques a quarteis, atentados a bomba, assaltos a bancos (chamados de “expropriações”) e de municiamento em armas e munições, embora de forma desorganizada e improvisada, como logo se constatou. Em 1966, um dirigente do PCB, Carlos Marighella, que tinha participado das reuniões de Havana e rompido com o Partidão, criou, com alguns outros companheiros e muitos recrutas do movimento estudantil, a Ação de Libertação Nacional: esta passou imediatamente a emitir palavras de ordem no sentido de atacar os militares e outros representantes da ditadura.
Numa primeira fase se tratava de ações simbólicas, e logísticas – ou seja, de levantamento de fundos – que seriam seguidas, esperava-se, de revoltas populares e de greves de trabalhadores, que todas contribuiriam para o “acirramento de contradições” e a passagem à fase ulterior da luta, com brigadas e unidades completas armadas, que seriam capazes de vencer o exército a serviço da burguesia e do imperialismo. Em qualquer hipótese, a passagem às ações armadas se deu muito tempo antes do AI-5, de dezembro de 1968. A partir daí, em vista do recrudescimento dos ataques de grupos armados de guerrilheiros urbanos, é que ocorreu o verdadeiro endurecimento do regime militar, desafiado por ataques diretos às suas instalações, com perda de vidas dentre os seus membros.
O ano de 1968 parecia ensejar, de fato, grandes progressos para os movimentos de resistência à ditadura. A despeito da morte de Ché Guevara, na Bolívia, em outubro do ano anterior, pipocavam por todas as partes, na região e no Brasil, ações armadas que pareciam prenunciar a ascensão dos grupos guerrilheiros que iriam se lançar na “guerra” contra o regime militar. Não se percebia muito bem que, por mais espetaculares que fossem as ações do punhado de militantes que tinham decidido pegar em armas – assaltos a bancos, roubos de armas, ataques a quartéis, “justiçamento” de um “espião americano” (como o capitão Charles Chandler) ou de algum “esbirro da ditadura” –, elas não iriam levar, por si só, à formação das colunas guerrilheiras (ao estilo cubano) ou do “exército popular” (como no exemplo chinês) que conduziria os grupos guerrilheiros à tomada do poder.
A população permanecia relativamente indiferente a esses apelos à “luta armada”, e os trabalhadores já tinham preocupação suficiente com a defesa de seus salários, num ambiente inflacionário que permanecia renitentemente inercial e sustentado. A relativa intensidade dos ataques a bancos e a outros alvos táticos dava a impressão que os movimentos de luta armada estavam crescendo, quando na verdade eles apenas procuravam sustentar-se a si próprios, independentemente de qualquer debate político mais estratégico ou de ações efetivas de organização da população. A situação se inverteu rapidamente: padres dominicanos – um dos quais continua ativo e com as mesmas ideias que tinha naquela época – que serviam de contato com um dos líderes mais famosos da guerrilha, Carlos Marighella, foram presos no segundo semestre de 1969. Poucos dias depois, mais exatamente em 4 de novembro de 1969, Marighella foi morto num “encontro” com a polícia política, encontro ao qual um dos dominicanos foi levado como “isca”. O choque foi brutal, e a partir daí o ambiente psicológico foi, na verdade, não mais de avanços na luta contra a ditadura, mas de simples busca de sobrevivência, quando os grupos existentes – bastante divididos entre si – e os seus “combatentes” procuravam, mais concretamente, encontrar meios e formas para continuar livres, e vivos, esperando alguma mudança positiva no futuro de médio ou longo prazo, ou seja, uma crise do sistema, greves operárias e levantes da população contra o regime. Nada disso ocorreu, obviamente.
A fase seguinte da guerrilha urbana foi marcada por diversos sequestros de diplomatas, apenas como forma de libertar os guerrilheiros ou opositores já presos, e submetidos a tortura, muitos deles. Se tratava de uma luta de sobrevivência, que se arrastou durante dois ou três anos mais, até a completa dispersão dos grupos de luta armada. No refluxo dos movimentos de guerrilha urbana anti-regime militar, cada um buscou as melhores soluções de sobrevivência num quadro de aumento da repressão ditatorial, de censura, de prisões arbitrárias. Essa fase coincidiu com a descoberta de núcleos rurais preparatórios a uma futura guerrilha na região do Araguaia, sob a responsabilidade do PCdoB: essa “frente” – na verdade, focos dispersos numa região de penetração muito difícil – foi desbaratada, depois de muito esforço por parte das forças do Exército, não sem novas exações e abusos por parte dos militares.
4. A derrota da luta armada e suas consequências: uma história a ser escrita
A luta armada no Brasil, à diferença de outros experimentos guerrilheiros na América Latina, e de guerras civis na Ásia ou na África, foi relativamente breve, pouco cruenta e atingiu uma fração mínima da população, se é que se pode falar em população, no caso de umas poucas centenas de engajados ativos em seus diversos exercícios tentativos e alguns milhares de militares e policiais dedicados à sua repressão. Ela pode ter uma extensão maior, se considerarmos os primeiros ensaios, quase patéticos, dos brizolistas na imediata sequência da mudança de regime em 1964.
No seu conceito mais restrito, porém, consistindo nas diversas iniciativas de inspiração cubana, de natureza mais urbana do que rural, ela durou, provavelmente, menos de seis anos, aos quais podem ser acrescentados os quatro ou cinco de guerrilha “maoísta” nas selvas do Araguaia, até meados da década seguinte. A maior parte desses experimentos foi bisonha, com muita improvisação, quase nenhuma inspiração, alguma transpiração, mas a repressão, no começo despreparada, foi brutal e eficaz: todos os focos, nas cidades e nos campos, foram eliminados a partir do planejamento e do engajamento dos militares nas tarefas da repressão direta, que contou mais com força bruta do que propriamente com inteligência: ela também foi feita mais de transpiração do que de inspiração.
A luta armada no Brasil obedeceu, com a exceção do episódio maoísta na região do Araguaia, a uma inspiração essencialmente cubana, ainda que métodos, situações políticas e, obviamente, elementos humanos tenham sido totalmente diversos no Brasil do que foi a guerra de guerrilhas em Cuba, que teria supostamente servido de modelo para os empreendimentos realizados no Brasil de meados dos anos 1960 ao início da década seguinte. A revolução cubana foi, de fato, um fenômeno eletrizante no contexto latino-americano, bem mais do que sua importância real na história política do século 20 ou do que sua capacidade de transformar significativamente a realidade nos países da região. Todos os experimentos realizados sob sua inspiração direta – e na maior parte dos casos com seu apoio material – fracassaram: ou foram fragorosamente derrotados militarmente, ou se extinguiram por ineficácia prática, ou, ainda, sobreviveram apenas como deformação grotesca do projeto original, como no caso dos grupos guerrilheiros narcotraficantes da Colômbia e do Peru, convertidos em meros criminosos, traficantes e sequestradores. Os dois países, e os Estados Unidos, não hesitam em chamá-los de terroristas, uma classificação nem sempre aceita por certos governos supostamente progressistas da região.
No Brasil, a importância da luta armada foi bastante reduzida, em termos práticos, ainda que a própria esquerda, e seus escribas gramscianos, e também os militares, tenham a ela atribuído uma relevância histórica que efetivamente ela não tem e nunca teve; uma perspectiva histórica de mais longo prazo se encarregará de minimizar sua importância na história contemporânea do Brasil. A luta armada foi um fenômeno marginal, e os poucos casos de terrorismo mais marginais ainda, mas uma história isenta, completa, não passional, de todos os seus aspectos ainda está para ser escrita. Ela não foi tão traumática quanto o foi na Argentina, no Chile, no Peru e na Colômbia, para ficar nos casos mais relevantes, nem todos similares em dimensão, características e impacto residual, ou permanente. Em vários desses países, o grau de repressão foi tão vasto, que mesmo as lideranças políticas mais moderadas tiveram de acenar com algum “julgamento da História”, quando não com julgamentos reais. A dimensão da luta armada no Brasil não justificaria, provavelmente, esse tipo de retomada das feridas, não fosse pelo fato de os derrotados terem chegado ao poder.
5. O que foi a luta armada no Brasil: uma interpretação pessoal
Ela foi um empreendimento essencialmente artificial, conduzido por um reduzido número de militantes radicais que, interpretando mal os sinais de descontentamento de certa fração da comunidade politizada que tinha sido alijada do poder com a derrocada (quase sem traumas) do incompetente governo do presidente Goulart, resolveu passar à “ação”, não para se encaixar numa continuidade que poderia ser considerada “natural” da luta política – ou seja, um exercício de “resistência” incontornável em face de uma situação absolutamente opressiva – mas para atender a estímulos vindos de fora, basicamente das lideranças cubanas. Não havia, nem nunca houve sob o regime militar, um fechamento completo de todas as possibilidades de resistência e de luta política contra o governo, como o provam as inúmeras ações, processos e coalizões que se formaram para combatê-lo, seja por parte de forças políticas temporariamente alijadas do poder, seja ainda por frações da própria esquerda tradicional (o Partidão, por exemplo, que sempre condenou as ações dos guerrilheiros, chamando-os de “patriotas equivocados”).
Em outros termos, a luta armada não correspondia ao desdobramento natural, e necessário, em face de uma situação de bloqueio de todas as demais possibilidades de luta política para que fossem atingidos os fins pretendidos, sejam estes a “volta à democracia” – como alegam, hoje, mentirosamente, os derrotados vingativos –, sejam eles qualquer forma de “democracia popular” (como, aliás, vem ocorrendo hoje em diversos países da América Latina, pelo voto livre da população). O Brasil certamente não era a Argélia dos anos 1950, quando todas as possibilidades de autonomia tinham sido fechadas pelo colonizador; nem uma tirania despótica, como certos regimes asiáticos, ou mesmo latino-americanos, cuja caricatura foi feita em ampla literatura sobre os “supremos ditadores” da região. O Brasil dos militares era um regime modernizador autoritário, à la Bismarck, como aliás caracterizado em trabalhos de brasilianistas e como, justamente, consideravam ser uma “via rápida” e aceitável de modernização “pelo alto” personalidades da esquerda como Hélio Jaguaribe, por sinal exilado durante algum tempo por sua identificação com o governo anterior.
A luta armada no Brasil não se colocou, portanto, como a única via de luta política contra o regime militar e ela só veio a existir pela análise fundamentalmente errada que fizeram de sua dinâmica alguns líderes radicais da esquerda brasileira e pelo estímulo oportunista – pela sua própria necessidade de sobrevivência, num contexto relativamente hostil – que lhe deram os líderes comunistas cubanos. Sem esses dois elementos, o do equívoco de análise e o dos meios materiais e o incentivo político dos líderes cubanos – aliás muito admirados, e não só pelos engajados na luta armada, como por largas frações da juventude e da opinião pública mal informada, como até hoje, por sinal – a luta armada provavelmente jamais teria existido no Brasil.
6. Quando a luta armada se desenvolveu no Brasil?
Praticamente desde o início – por despeito de líderes que se pretendiam maiores do que efetivamente eram, como Brizola, por exemplo – e bem antes, em 1965 para ser mais exato, quando o regime estava longe de ser aquele monstro repressivo apontado numa historiografia enviesada, totalmente equivocada e, de fato, intelectualmente desonesta em relação à verdade. A repressão do regime militar se desenvolveu depois, não antes, que a guerrilha urbana começasse suas ações, e esteve em atraso durante praticamente dois anos, até que sua organização tardia passasse a demonstrar alguma efetividade prática. Ou seja, não foi a repressão política do regime que provocou a guerrilha supostamente de resistência contra um “governo opressivo”, e sim o deslanche de operações armadas, quando o governo tentava uma espécie de “reconstitucionalização” do regime – por meio da nova Carta aprovada em 1967 – que incitou, na verdade obrigou, o governo a reagir contra os grupos armados. Essa cronologia, absolutamente objetiva e aderente aos fatos, precisa ser lembrada, para que os derrotados vingativos não aleguem que não lhes restava outra opção (de luta política) que a luta armada contra um regime ditatorial.
Os militares brasileiros nunca foram os golpistas tirânicos ou despóticos que essa historiografia maldosa insiste em proclamar. Desde o início de seu envolvimento nos processos de governança – praticamente com o golpe militar que derrocou a monarquia, aliás sem o desejar, e inaugurou a República – as forças armadas, por vias institucionais, ou por revoltas de oficiais subalternos, sempre buscaram atender aos reclamos de uma classe média desejosa de mais liberdade, mais transparência política, mais honestidade eleitoral e, sobretudo, de preservação da ordem e dos fundamentos mínimos da normalidade política e econômica. Foi assim nas revoltas dos anos 1920, na sua posição “atentista” em relação à revolução da Aliança Liberal em 1930, na defesa da unidade nacional em 1932, na intentona comandada do exterior em 1935, na derrocada do ditador em 1945, e em algumas ações de estabilização nos anos 1950, antes da decisão (aliás não unânime) de marchar contra o governo em 1964; foi bem menos no golpe estado-novista de 1937 e em algumas revoltas episódicas dos anos 1950, mas sem que o espirito legalista das FFAA deixasse de se manifestar, sempre em defesa da ordem e da unidade nacional. Mesmo durante o regime “militar” de 1964 a 1985, o registro é de uma predominância civil nos gabinetes e um cuidado legalista bastante pronunciado, com a emissão de atos institucionais em conjunturas precisas, sem o arbítrio (e até a selvageria) a que se assistiu em diversos outros episódios de triste memória na história de nossos vizinhos latino-americanos. De forma geral, não há comparação possível entre a chamada “ditabranda” brasileira – apenas episodicamente mais dura – e as ferozes ditaduras militares em alguns desses países, como tampouco há qualquer similitude, absoluta ou relativa, entre o número de “vítimas” que se pode honestamente computar num e noutros casos.
7. Onde a luta armada se desenvolveu no Brasil?
A “geografia humana” da luta armada é feita, basicamente, de idealistas de classe média guiados por uma adesão equivocada a certas causas – basicamente as da revolução cubana, mais até do que a do socialismo de inspiração soviética – e de alguns egressos do comunismo histórico, seduzidos pelo chamamento e o apoio cubano a um grande empreendimento que se pretendia de libertação do continente do latifundismo, do imperialismo e, em última instância, da burguesia capitalista. Ela raramente envolveu legítimos trabalhadores – senão alguns poucos “líderes” sindicais já adquiridos à ação militante, de natureza política, não exatamente sindical – e menos ainda camponeses típicos, senão alguns poucos agitadores políticos que já tinham base em zonas rurais. Ela foi basicamente urbana.
Foi um fenômeno essencialmente de, e restrito à classe média, em algumas metrópoles brasileiras, recrutando adeptos no mesmo universo de universitários conquistados às teses leninistas ou gramscianas, e emocionalmente estimulados pela epopeia vitoriosa – em grande medida romantizada e idealizada – dos revolucionários cubanos. Creio poder dizer que sou um típico representante dessas camadas de estudantes “revoltados” que viam na luta armada não apenas – ou talvez não exclusivamente – o meio de “libertar o Brasil dos generais gorilas”, mas basicamente uma via romântica de atuação política-prática, seguindo o exemplo daquele pequeno grupo de bravos guerrilheiros que conduziram uma luta exemplar até a vitória. Essa perspectiva da “tomada do poder” por colunas guerrilheiras, secundadas, no momento decisivo, por uma greve geral da população contra a ditadura opressiva, fazia parte do universo mental de todo candidato a guerrilheiro urbano, que forneceu, de modo geral, 90% do contingente humano para a luta armada (o experimento do PCdoB nas selvas do Araguaia jamais assumiu proporções significativas, em termos humanos e materiais, e nunca teria tido qualquer influência no debate político contemporâneo, se esse partido não fosse constituído de fundamentalistas devotados às suas causas esquizofrênicas).
8. Como a luta armada se desenvolveu?
Jamais de forma coordenada, unificada ou organizada, de forma a representar um risco real para o governo, ou o próprio regime. Foram impulsos isolados, dispersos, desorganizados, improvisados, ao sabor das decisões dos líderes que se sucediam, alguns “históricos”, outros que ascenderam na própria luta armada, sem qualquer formação política especial – foi o caso de Lamarca, por exemplo, ou de alguns outros chefes “guerrilheiros”, que “subiram” na hierarquia por via de sequestros e assaltos a bancos. Era uma clara aventura, levada muito a sério pelos militares, que sempre tendem a maximizar a dimensão dos perigos, por instinto natural e pelo claro desafio à sua autoridade.
Os militares reagiram exageradamente aos pequenos bandos de guerrilheiros armados que os desafiaram? Possivelmente, sim, e teriam provavelmente obtido os mesmos resultados com um pouco mais de inteligência e com menos força bruta. Eles tinham razão em chamar os cowboys travestidos de guerrilheiros de “terroristas”? Efetivamente não, embora alguns o fossem, mas a maioria não o era. A guerrilha estava condenada, desde o início, a ser o que sempre foi: ações isoladas de cowboys do asfalto, incapazes de assumir o comando de qualquer movimento relevante de oposição ao governo militar, com um registro de algumas ações espetaculares, mas incapazes, por si só, de mobilizar o apoio da população para suas causas bizarras.
A “luta contra a ditadura” era uma realidade apenas para uma minoria extremamente reduzida de uma fração também muito reduzida da classe média instruída, ou seja, um punhado de “patriotas equivocados”, como a eles se referia o Partidão. Nunca passaram disso, e seu movimento teria se estiolado, como ocorreu em diversos países europeus na mesma época – que não extravasaram nos métodos repressivos como no Brasil – na absoluta indiferença, e provavelmente até no repúdio, da maioria da população.
Como essas ações marginais vieram a assumir a dimensão que tiveram, seja na historiografia, seja na política prática do Brasil atual, estas são questões que merecem argumentos mais extensos que me eximo de adiantar aqui. Elas podem ser explicadas, porém, pelo absoluto monopólio de que gozam os escribas gramscianos no ambiente acadêmico – eles foram derrotados, historicamente, mas se encarregaram de escrever a sua própria história, deformando-a – e também pelo fato de que as forças, tendências, ideologias e personalidades derrotadas durante o período militar finalmente chegaram ao poder e tratam, agora, de reconstruir seus equívocos apresentando-os como algo que não foram, ou seja, uma luta em favor da democracia. Trata-se, portanto, de uma imensa deformação da história, agora conduzida porque temos no poder justamente muitos daqueles que foram derrotados nesses episódios.
9. Por que houve luta armada no Brasil?
Provavelmente por causa de indução externa, já que ela jamais teria existido na sequência “normal” do processo político brasileiro, mesmo em situação de “golpe militar”, ou de “ditadura”. Como consagrado em outro tipo de literatura – em obras menos passionais, de brasilianistas, por exemplo – existia já uma tradição estabelecida de intervenção militar na política doméstica, e não se pode dizer que o morespolítico brasileiro fosse naturalmente democrático e civilista. As tradições positivistas, castilhistas, comtianas, e até fascistas, ou pelo menos corporativas, existiam desde até antes da República e na maior parte desta não se conheceu, de verdade, um sistema de representação política, aberta, transparente, accountable, enfim, democrático.
Tanto quanto os militares, os líderes de esquerda também eram autoritários, quando não totalitários, e em nome da democracia pretendiam, na verdade, implantar um regime de “ditadura do proletariado”, ou o que lhe fosse equivalente, segundo as possibilidades e arranjos da fase “pós-burguesa”, que de todo modo se pensava superar rapidamente. Creio que não existe nenhuma dúvida quanto a isso, e desafio qualquer saudosista dos movimentos armados a me provar que se pretendia implantar no Brasil um sistema liberal, de livre competição política com partidos “burgueses”: se tratava justamente do contrário, de assegurar o predomínio da causa proletária ou alguma variante disso, se não a mais extrema, a via chinesa do comunismo agrário integral.
O mais importante, porém, e isso é preciso ressaltar sempre, é que ela não teria existindo sem o impulso, o apoio, ou praticamente o apelo dos dirigentes cubanos, para que seus verdadeiros amigos do continente empreendessem, rapidamente, outros processos revolucionários, com vistas a romper o isolamento cubano. O mesmo fenômeno ocorreu no início da revolução bolchevique, quando líderes como Lênin e Trotsky trataram de impulsionar a revolução comunista na Alemanha e em outros países, para romper o “cerco imperialista” ao regime bolchevique; a Terceira Internacional foi constituída justamente para isso e por isso, e foi em função de suas diretivas, e ordens diretas, que Prestes empreendeu a sua patética (mas traumática) intentona no final de 1935. O PCB era, até 1961, o Partido Comunista do Brasil, como o Komintern tinha exigido que se chamassem as “seções nacionais” da III Internacional. A revolução cubana tendeu recriar essas estruturas através da OLAS e da OPANAL, mas eram iniciativas totalmente artificiais, no contexto dos países latino-americanos, como foram artificiais, e por isso derrotadas, as aventuras guerrilheiras de inspiração castrista e guevarista em diversos países da região.
Não importa quais fossem as especificidades nacionais, o fato é que a luta armada no Brasil foi um empreendimento nacional, mas basicamente impulsionado de fora, com dinheiro, treinamento e suporte logístico vindos de fora, essencialmente dos amigos cubanos (que podiam repassar alguns recursos soviéticos, que sempre quiseram estar no comando de várias frentes de combate). O apoio cubano extravasou, aliás, o simples financiamento da guerrilha, e se manifestou, durante muito tempo, em diversas outras “frentes de trabalho”, algumas não de todo reveladas, ainda – embora não desconhecidas – e que poderão vir a público se a inteligência cubana não tiver tempo de destruir os seus arquivos antes da derrocada final daquele regime moribundo. Esta é uma realidade que muitos dos companheiros atuais não gostam de admitir, mas que eles sabem ser verdade, como o sabem também os órgãos de inteligência do Brasil. O dia em que a história for escrita, em todos os seus matizes e com todas as suas fontes, esses aspectos poderão aparecer em toda a sua luminosidade obscura, se vale o trocadilho.
10. Uma avaliação pessoal da luta armada e suas consequências atuais
Infelizmente, a questão da luta armada no Brasil ainda não faz parte da História passada, ou pelo menos seus antigos representantes resistem a recolhê-la à sua dimensão histórica objetiva, sendo ainda objeto de embates políticos e de tentativas de reescrita dessa história. A razão é a mesma já apontada anteriormente: os derrotados chegaram ao poder e pretendem se vingar de seus supostos algozes, se preciso for deformando a história e manipulando os acordos políticos já realizados durante a transição quase consensual da democratização.
De certa forma, esses grupos já detém o monopólio da historiografia, como pode ser constatado por inúmeros exemplos da literatura didática e mesmo de livros que passam por sérios, tratando do período. Os escribas universitários, não apenas os declaradamente de esquerda ou simplesmente progressistas, já internalizaram uma versão da história política brasileira, dos anos 1960 em diante, que transforma o período em uma oposição de preto e branco, uma interpretação maniqueísta que transforma os militares em servos da burguesia e do imperialismo, e os “resistentes” como bravos e impolutos defensores da democracia e lutadores desprendidos em prol das liberdades. A contrafação da história real é evidente, mas ela vem sendo servida durante muito tempo, inclusive no curso do próprio período militar, para não se impor como verdade para grande parte do povo brasileiro, jovens que nunca viveram aquele período que tendem naturalmente a acreditar nessa versão da luta dos bons contra os maus.
A “Comissão da Verdade” não constitui senão mais uma tentativa de impor essa versão à sociedade atual, pelos remanescentes dos derrotados de outrora. Faz parte, como outras iniciativas – como a “indústria” das indenizações –, das farsas montadas para alterar a história e obter ganhos políticos, quando não materiais, aos que ainda tentam fazer do Brasil outra coisa que não uma grande democracia de mercado. A chamada “relação de forças” pode dar aos derrotados vingativos algumas compensações temporárias, e é por isso que o trabalho didático de esclarecimento se revela importante pelo simples dever de respeitar a verdade dos fatos e defender a integridade intelectual dos que estão efetivamente comprometidos com a causa da democracia e das liberdades no Brasil. Como protagonista menor, e totalmente sem importância, da voragem de insanidade temporária que se abateu sobre o Brasil, entre meados dos anos 1960 e meados da década seguinte, meu dever era o de testemunhar. É o que fiz agora.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 30 março de 2014