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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Comparacoes entre as diplomacias de Geisel e de FHC - Paulo Roberto de Almeida

breves considerações sobre rupturas e continuidades

Paulo Roberto de Almeida
Depoimento prestado em 11 de Julho de 2002 para
Grupo de alunos da Faculdade Casper Líbero ,
na qualidade de colaborador intelectual do projeto de livro-reportagem:
“O Brasil diante das escolhas e os desafios da Multipolarização:
rupturas e continuidades do governo Geisel (1974-1979)”
Divulgado anteriormente no blog Diplomatizzando (22/10/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/politica-externa-do-governo-geisel.html)

Temática geral da obra: a influência da política externa desenvolvida pelo presidente Ernesto Geisel, nas relações regionais e multilaterais que o Brasil mantém hoje.

Perguntas formuladas a Paulo Roberto de Almeida (PRA): 

1.   Podemos fazer uma relação entre a política externa desenvolvida por Geisel (diversificação de parcerias bilaterais, utilização da diplomacia presidencial para obtenção de novos investimentos e parceiros, dentre outras características) com a política de diversificação de parcerias bilaterais realizada hoje com o atual governo?

PRA:Existe uma certa convergência de orientações políticas, de ênfases bem como de métodos entre a política externa praticada durante o Governo Geisel (1975-1979) e aquela seguida durante as duas administrações FHC (1995-2002), muito embora elas pertençam a dois universos políticos distintos e respondam a preocupações diferentes quanto aos objetivos finais.
Comecemos pelas convergências. Em ambos os casos, houve forte ênfase na diplomacia presidencial, assim como no objetivo da diversificação de parcerias, na construção de certas alianças privilegiadas e na busca de um diálogo de qualidade com interlocutores importantes do cenário internacional, tanto no horizonte tradicional das potências ocidentais, quanto no cenário menos comum de parceiros do mundo dos países em desenvolvimento. Em ambos os casos, igualmente, se buscou valorizar os diversos planos de trabalho diplomático, tanto o cenário regional, estrito senso, como o âmbito dos esquemas plurilaterais e, sobretudo, o sistema multilateral. Existe convergência similar na busca de diálogo privilegiado com as grandes potências econômicas (EUA, Alemanha, Japão, uma tríade dominante no cenário financeiro), assim como na busca de parcerias tecnológicas e industriais que capacitassem o Brasil a elevar-se na escala de desenvolvimento tecnológico e e de equipamento militar. 
No plano das divergências contudo, os elementos seguintes devem ser destacados. As condições econômicas, políticas, geopolíticas e de ordem doméstica nas quais foram exercidas as políticas externas respectivas de Geisel e de FHC foram sensivelmente diferentes, com ênfase nas condições domésticas, mas também no cenário internacional. Neste último plano, com efeito, vivia-se então, ainda, sob o impacto da Guerra Fria, muito embora a Administração Nixon (1968-1974) e seu Conselheiro de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado, Henry Kissinger, tivessem se esforçado para ampliar os espaços de détente, com diversos acordos de redução de armas estratégicas negociados (SALT I, ABM), início das negociações para a conclusão da guerra do Vietnã (e do Camboja) e iniciativas nos planos multilateral e regional (confidence-building measuresna Europa), por exemplo). Mas a União Soviética ainda mostrava uma face agressiva no cenário internacional, com um forte programa de armamentismo nuclear (mísseis, equipamentos convencionais e projeção naval) e um apoio incontido a diversos regimes “progressistas” em diversas partes do mundo em desenvolvimento (África, sobretudo, mas também América Latina e Ásia), ademais da preservação da chamada “Doutrina Brejnev” que “autorizava” intervenções unilaterais em países de sua órbita em caso de “ameaças” ao poder socialista (casos da Tchecoslováquia, Polônia, RDA). 
No plano interno, mais espetacularmente, o País vivia uma situação ditatorial de repressão a grupos de oposição, censura prévia à imprensa e sentimentos anticomunistas fortemente disseminados em todo o establishment militar. O alinhamento ideológico com as teses mais conservadoras em política externa comandava ausência quase completa (ou apenas formais) de relações diplomáticas com países comunistas como China e Cuba e fortes restrições aos demais da órbita soviética. O Governo Geisel, precisamente, inovou tremendamente ao “normalizar” relações diplomáticas com vários desses países (como o reconhecimento da China comunista e de Angola “marxista”, mas não de Cuba), mesmo ao preço de fortes tensões com determinadas cúpulas do sistema militar (o próprio ministro do Exército, Silvio Frota, era virulentamente contrário a tal tipo de política). O chanceler escolhido por Geisel, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, vinha de uma tradição “desenvolvimentista” e nacionalista, no Itamaraty, além de ter assistido a diversos episódios de engajamento do Brasil em esforços de cooperação com outros países em desenvolvimento no quadro do Grupo dos 77, da UNCTAD, dos movimentos em prol da descolonização e do rompimento da dependência econômica desses países em relação às potências ocidentais (UNCTAD). Ele deu início a uma forte reorientação da política externa em direção do chamado “Terceiro Mundo” e das teses pregando o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional nos foros multilaterais. 
O próprio Geisel envolveu-se diretamente na formulação e execução dessa nova diplomacia desenvolvimentista, assim como buscou parcerias privilegiadas entre os principais parceiros avançados, com o objetivo de obter financiamento e tecnologia (inclusive nuclear) para conformar o projeto do “Brasil grande potência” (política mais praticada do que verdadeiramente afirmada). Tendo encontrado fortes resistências nos EUA (que se preocupavam com a proliferação nuclear), Geisel busca uma aliança privilegiada com a Alemanha, de que resulta o acordo de cooperação nuclear (supostamente de orientação basicamente energética e com características apenas “civis”), implementado apenas parcialmente e a custos altíssimos para a sociedade. 
O cenário externo não foi contudo favorável ao desenvolvimento dessas estratégias de atuação formuladas conjuntamente por Geisel e “Silveirinha”. Depois do primeiro choque do petróleo em 1974, o mundo viveu o recrudescimento da pressão inflacionária e o aumento das taxas de juros, até que o segundo choque do petróleo, em 1979, consumasse um cenário externo de “estagflação”. No plano regional, igualmente, os conflitos com a Argentina em torno do aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Paraná (depois do acordo concluído com o Paraguai, em 1975, para a construção de uma grande barragem hidroelétrica nas proximidades da fronteira tripartite de Iguaçu) recrudesceram ao ponto de se temer a ruptura em um conflito aberto, num cenário geopolítico já caracterizado pela competição militar entre os dois países e pela possível pressão para a aquisição da arma nuclear pelos establishments militares respectivos. 
Na era FHC, esse cenário se encontra radicalmente transformado: fim do socialismo e da bipolaridade, pacificação, cooperação e integração nas relações com a Argentina e mudanças na matriz energética do País, com a diminuição da dependência em relação ao Oriente Médio. Mas, não resta dúvida que a orientação em prol da diversificação de parcerias, sobretudo no plano econômico e tecnológico, aproxima a administração atual da era Geisel, inclusive em seus aspectos eventualmente negativos, como seria a confiança exagerada no crescimento econômico do País e a dependência ampliada em relação aos capitais de empréstimo e ao financiamento externo de modo geral. 
Também se repete a forte política de atração de investimentos diretos externos, mas neste caso cabe destacar a forte ênfase dada no Governo Geisel a grandes projetos nacionais (e sobretudo estatais) de infraestrutura e indústrias básicas, ao passo que FHC deu continuidade ao processo iniciado por Collor de privatizações e de desengajamento do estado das atividades diretamente produtivas na esfera econômica. Este encontrou um País basicamente industrializado (daí ter caracterizado o Brasil não como um país “subdesenvolvido”, mas como um país “injusto”), processo que tinha sido completado, justamente, na administração Geisel. Ambos deixaram dívidas interna e externa maiores do que as encontraram ao iniciar seus governos respectivos, muito embora tenham procurado controlar o processo inflacionário interno (com mais sucesso no caso FHC, mas descontando-se a pressão inflacionária representada pelo petróleo na era Geisel). 
Em todo caso, há talvez semelhanças de forma, como de objetivos, entre as duas fases do Brasil contemporâneo, mas com cenários interno e externo bastante diverso e portanto com ênfases especiais no plano diplomático divergentes no que respeita objetivos básicos da construção do Brasil enquanto nação inserida no contexto mundial: Geisel gostaria de ver um Brasil menos dependente do exterior, totalmente autônomo tecnologicamente e capacitado militarmente, enquanto FHC trabalha basicamente nos quadros da interdependência, da globalização (que ele aceita como um dado da realidade) e da regionalização (conceitos de América do Sul e construção do Mercosul) e não tem a pretensão de construir uma potência militar, e sim uma nação econômica e socialmente desenvolvida (ou pelo menos mais “justa”), com aceitação das realidades geopolíticas atuais. 

2.   Poderíamos dizer que o governo atual retomou esta política de diversificação de parcerias e a valorização da diplomacia presidencial exercida no governo Geisel (que representou o fim do alinhamento do governo militar aos EUA) depois de uma política de “alinhamento” aos EUA exercida também (de certa forma) pelo presidente Fernando Collor? Podemos dizer, então, que entre o governo Geisel e o governo FHC tivemos uma política externa “morna” sem grande valorização da diplomacia brasileira?

PRA:FHC praticou uma diplomacia presidencial em toda a sua extensão, inclusive porque não tinha os constrangimentos de Geisel (direitos humanos, ditadura, repressão política etc.) e, de certa forma, ele foi o seu próprio “chanceler”, ao passo que o papel de Silveirinha na gestão Geisel foi bem mais destacado do que o de Lampreia na era FHC. A diversificação de parcerias era um método, não um fim em si mesmo, ainda que a busca de novos parceiros para compensar a presença predominante dos EUA tenha figurado como objetivo importante na era Geisel (que já tinha assistido a uma relativa deterioração das relações com os EUA na gestão anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto). O alinhamento com os EUA, na era militar, só existiu, de verdade, na primeira gestão dos generais, sob Castello Branco, por uma simples questão de “reconhecimento” pelo apoio dado na estabilização do novo regime e sua situação econômico-financeira. 
Não se pode dizer, verdadeiramente, que tenha havido “alinhamento” com os EUA na gestão Collor, mas sim o rompimento de certos “tabus” que dificultavam as relações bilaterais, como na questão da informática, da proliferação nuclear e missilística, das patentes, da política comercial, do alegado “terceiro-mundismo” da política externa (e suas repercussões em termos de dívida externa, relações com os banqueiros privados e com o FMI, negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai) etc. Várias dessas “inovações” diplomáticas não representavam “alinhamento” estrito senso, mas a busca de uma modernização na forma de inserção do Brasil na economia internacional, como a redução tarifária e a adoção de um novo código de propriedade industrial reconhecendo patentes farmacêuticas, por exemplo. A chamada “política nuclear independente” não trouxe nem independência nem benefícios econômicos ou tecnológicos ao País, daí a decisão acertada (apoiada pelos EUA) de renunciar às armas de destruição em massa (possibilidade aliás negada pela Constituição) e de aderir aos principais instrumentos internacionais vinculantes nessa matéria. 
De toda forma, em nenhuma das duas épocas, a política externa foi “morna” ou secundária, para os interesses internos e externos do Brasil. Em ambas, ela foi fundamental, estratégica mesma, para a consecução de determinados objetivos que poderiam ser, genericamente, classificados sob a rubrica “desenvolvimentista”.

3.   No que se refere a parcerias estratégicas que visavam fortalecer o projeto nacional do governo Geisel, poderíamos afirmar que ela foi retomada em algum momento posterior que não o do governo Fernando Henrique que é criticado por não ter um projeto nacional? Quais seriam os principais objetivos de uma política externa como a desenvolvida pelo atual governo? Que benefícios ela traz para o país?

PRA:O “projeto nacional” do Governo Geisel foi o do fortalecimento da base econômico-industrial do País, como grande ênfase na capacitação tecnológica nacional e na autonomia em matéria de insumos básicos (substituição de importações). O “projeto nacional” do governo FHC, mais praticado do que teorizado, é o da plena inserção do Brasil nas correntes dinâmicas da economia internacional, objetivo de certa forma oposto ao buscado por Geisel, mas não menos legítimo, uma vez que ambos buscavam fortalecer o País para competir no cenário externo. A visão “autárquica” de Geisel correspondia, mais bem, ao tipo de educação militar que ele recebeu (inclusive com fortes influências de um tipo de economia “nazista”, aquela que, nos anos 30 valorizava a “plena autonomia” do País em situação de ruptura do abastecimento externo), ao passo que a visão bem mais “interdependente” de FHC reflete sua educação cosmopolita e fortemente engajada na cooperação internacional, sem qualquer receio de “dependências nocivas” para o Brasil. São duas mentalidades opostas, mas ambas fortemente comprometidas com a plena valorização da capacitação tecnológica nacional (embora por métodos distintos).
Os benefícios supostos ou reais da atual política externa são os da plena valorização dessa inserção econômica internacional e, sobretudo, o caráter estratégico atribuído ao processo de integração regional e à cooperação com a Argentina, ao passo que Geisel não tinha nenhuma intenção de renunciar à “soberania” brasileira no quadro da integração regional (inclusive por desconfiar da Argentina enquanto “competidora estratégica). Essa opção tem um enorme custo para o País, uma vez que a enorme autonomia praticada (na verdade a busca da autarquia) não é economicamente racional, nem atende ao sistema produtivo como deveria. O Governo Figueiredo tentou retomar, ou continuar, o projeto de Geisel, mas a situação de deterioração financeira e de crise econômica então vivida, a forte pressão política interna em favor da redemocratização, bem como a incapacidade gerencial e a falta de gosto do presidente pela diplomacia (como pelo simples exercício da autoridade presidencial) inviabilizaram completamente tal continuidade. A era Sarney, ainda que inovadora em certos aspectos (como na integração com a Argentina) foi basicamente de transição e de má administração econômica, dificultando a continuidade desse tipo de projeto (que aliás não contava mais com condições financeiras ou externas para ser implementado). Faltou-lhe, também, um chanceler com visão estratégica, ainda que a máquina do Itamaraty tenha funcionado de maneira relativamente eficiente.
De todo modo, projetos econômicos não são implementados segundo a vontade dos dirigentes, mas também em função de um contexto interno e externo favoráveis. Ora, apenas nos anos 90, com o sucesso da estabilização no Brasil e o degelo da Guerra Fria, pode o Brasil retomar um projeto nacional dotado de certa continuidade. Ainda que a diplomacia da era FHC não tenha tido nenhum slogan (como a diplomacia “ecumênica” e o “pragmatismo responsável” da era militar), ela teve um sentido, uma clara direção e sobretudo uma implementação fortemente embasada no interesse nacional (ainda que levando em conta nossas limitações intrínsecas em termos de poder financeiro). 

4.   Dentro de uma análise mais histórica, a diplomacia brasileira pode se considerada uma diplomacia voltada para atender os interesses econômicos do país? 

PRA:Certamente que sim, desde a era Vargas, basicamente, a política externa está organizada para atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento econômico. Ela é uma diplomacia “instrumental”, “oportunista”, ambos os conceitos no bom sentido da palavra, voltada para o aproveitamento de todas as chances de promoção dos interesses econômicos do País, seja no plano comercial, seja no tecnológico, seja ainda no financeiro. 

5.   O governo Geisel, desta forma, representou um marco para a política externa do país quando atribui a política externa um caráter econômico?

PRA:Nisso ele não inovou essencialmente no que vinha sendo praticado desde os anos 50 e no que já vinha sendo feito na administração anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto (este um mero executor do que o Itamaraty formulava). Mas, certamente que a forte personalidade do presidente Geisel, seu envolvimento direto com os dossiê de política externa, seu conhecimento preciso e discussão minuciosa da agenda externa, em muito contribuíram para imprimir essa marca de forte ativismo presidencial no plano da política externa. 

6.   E a política externa do governo atual, tem este caráter?

PRA:Provavelmente sim, ainda que com características particulares diferentes, como ressaltado nos parágrafos anteriores, especialmente, na questão dos cenários diferentes em cada época. Mas, se Geisel foi essencialmente “econômico” e “tecnológico”, FHC não se deixou prender por esse tipo de “restrição” setorial, inclusive porque ele nunca enfrentou os fortes constrangimentos políticos de seu antecessor militar, um autocrata administrando uma ditadura repressiva. FHC voltou-se para o debate dos grandes temas políticos e sociais do mundo contemporâneo, envolvendo-se diretamente no diálogo com dirigentes do G-7 na discussão dos problemas sociais acarretados pela globalização e pela volatilidade financeira, nas assimetrias da falta de desenvolvimento em várias regiões periféricas, no desenho (pelo menos tentativo) de uma “nova ordem política internacional”, com a forte expressão do desejo do Brasil de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, candidatura impensável na era militar. Sobretudo, a decisão de romper o “tabu” da autonomia tecnológica no terreno nuclear e de assinar o TNP representa uma pequena (ou talvez grande) revolução nos próprios fundamentos da diplomacia brasileira. Essa agenda ultrapassa a mera questão do desenvolvimento econômico do País, mas certamente ela continua a ter a vocação do desenvolvimento no centro das preocupações nacionais. 

7.   Apesar do Mercosul ter sido formado durante o governo Collor, ele não continua sendo um bloco inativo? O Brasil não continua atuando individualmente sem o respaldo do mesmo, principalmente no momento atual de crise da Argentina? 

PRA:O Mercosul NÃO foi formado no governo Collor: ele deriva de decisões tomadas na administração Sarney, ainda que no âmbito estritamente bilateral, Brasil-Argentina. O que Collor e Menem fizeram foi mudar o caráter (de dirigido para livre-cambista) e acelerar o ritmo da desgravação tarifária bilateral em direção de um mercado comum (decisão que já tinha sido tomada em 1988, mediante o Tratado de Integração) e aceitando a incorporação de novos membros nesse processo (que diga-se de passagem não tinham sido excluídos anteriormente, mas que tinham preferido, no caso do Uruguai, ficar à margem das obrigações jurídicas de uma integração plena). Ele tampouco é um bloco inativo, e seus problemas atuais derivam de crises individuais dos países membros, que foram levados a adotar, voluntária (no caso do ministro Cavallo, na Argentina) ou involuntariamente, medidas anti-integracionistas, não de problemas estruturais ou institucionais da própria arquitetura integracionista. 
O Brasil é o país que mais tem cumprido o espírito e a letra dos objetivos integracionistas, mas tem consciência que, por ser o país mais forte e economicamente mais poderoso em termos de PIB, população, indústria, comércio exterior, lhe cabe uma responsabilidade adicional na construção e manutenção do edifício integracionista.

8.   A cada momento que passa a realização de parcerias como a Alca, o Mercosul e, consequentemente, Mercosul x UE não ficam mais distantes devido aos subsídios e o protecionismo apresentado pelos países que representam estes blocos?

PRA:Não há esquemas excludentes em termos de liberalização de comércio e todos esses blocos podem ser inter-complementares nos processos de abertura comercial e de aumento da interdependência econômica. Não resta dúvida, porém, que os processos recentes de recrudescimento do protecionismo e das práticas anti-liberalizadoras (como o subvencionismo extremado, no plano interno e externo, em relação a determinadas atividades) pode atuar negativamente na consecução dos processo de liberalização comercial, quer no plano regional ou hemisfério, quer no âmbito multilateral ou ainda na esfera inter-regional (UE-Mercosul). São percalços que devem ser superados para atender aos objetivos proclamados pelos líderes desses blocos. 

9.   Quais são as perspectivas que o País tem em termos de política externa com as próximas eleições? 

PRA:Basicamente as mesmas da atual administração: continuar os processos negociadores em curso (Mercosul, América do Sul, Alca, OMC e UE, além de outros esquemas bilaterais ou plurilaterais), aumentar nossa participação no comércio  internacional e, de forma inédita talvez, diminuir a dependência financeira externa, mas essa não é uma tarefa basicamente ou essencialmente diplomática., uma vez que ela depende, sobretudo, de condições internas (aumento da poupança doméstica, continuidade do esforço de superávit fiscal, fortalecimento do processo de estabilização, melhoria da capacitação tecnológica nacional), que são administradas pela área econômica, não pelo setor diplomático. 

10.De que forma a estabilidade econômica conseguida com o atual governo influencia ou influenciou nas relações externas mantidas pelo Brasil?

PRA:Foi de uma enorme “utilidade” na apresentação externa do País, mas sobretudo nos livra de certos constrangimentos externos a que estávamos antes expostos: alta inflação, corrosão do instrumento monetário, ausência de orçamento realista etc. Pode-se entretanto observar que a maior parte da administração FHC teve de conviver com fortes crises financeiras externas (começando pelo México, em 1994-95, passando pela Ásia, em 1997-98, atingindo a Rússia, em 1998, e chegando ao próprio Brasil nesse último ano), o que obrigou o País a retomar o caminho dos acordos com o FMI, para a sustentação financeira externa de nosso posição de balanço de pagamentos. 

11.Como embaixador nos EUA, teria como nos informar de que forma o Brasil é visto por este país e em que escala a formação da ALCA interessa aos americanos?

PRA:Não sou “embaixador” nos EUA, mas ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington. O Brasil não é propriamente “visto” nos EUA, a não ser pela pequena fração da comunidade oficial (diplomatas, funcionários da área de segurança), acadêmica (scholars especializados dos centros de pesquisa voltados para a região, professores “brasilianistas) e, sobretudo, da área econômica (investidores diretos, analistas financeiros, banqueiros), que tem uma visão muito realista, por vezes algo imprecisa, das realidades do País. O conjunto da população ignora solenemente não só o Brasil como o resto do mundo: os americanos são profundamente ignorantes em relação ao que se passa no resto do mundo, este é um dado da realidade e do panorama social dos EUA. Mas, obviamente, eles entretêm uma “visão” do Brasil, como a de um país tropical, de natureza luxuriante, com um povo simpático e jogador de um esporte estranho conhecido como “soccer”, com grandes belezas naturais (Amazônia, Rio de Janeiro, Bahia, Pantanal), mas também com imensas desigualdades sociais e miséria amplamente disseminada, o que não está muito distante da realidade. Salvo problemas graves, o Brasil comparece muito pouco nas informações correntes disponíveis ao americano comum (ainda que os jornais de negócios tenham bastante matéria sobre o Brasil, sobretudo como “mercado emergente”). 
Em relação à Alca, os EUA estão tão divididos quanto o Brasil nessa matéria: políticos e sindicatos preocupados, ecologistas e anti-globalizadores opostos, economistas favoráveis, acadêmicos céticos quanto às suas chances reais, industriais divididos quanto a suas vantagens e desvantagens (dependendo do setor), e diplomatas moderadamente favoráveis ao avanço do processo negociador, por perceberem as vantagens de longo prazo ou de caráter estrutural que adviriam desse imenso bloco liberalizador hemisférico. 
De modo não surpreendente, as oposições localizadas coincidem com as ameaças percebidas ou supostas derivadas do processo de liberalização: assim como os nossos agricultores estão confiantes na capacidade de competição do Brasil na área dos produtos primários, os americanos temem a concorrência dos produtos brasileiros. Assim como os industriais e as empresas de alta tecnologia (inclusive na área de serviços e de lazer) dos EUA desejam ardentemente a Alca, os nossos industriais de eletrônicos e de bens de capital temem seu impacto em seus setores respectivos, por razões óbvias de diferenças de competitividade, de “custo Brasil” etc. Ou seja, o panorama é relativamente similar em ambos os países, com uma grande maioria indefinida ou incerta quanto às possibilidades reais de implantação do esquema liberalizador, tão complexo é o processo negociador. 
Mas, a Alca é basicamente um projeto americano e atende a seus interesses fundamentais. Isso não quer dizer, contudo, que ela seja totalmente negativa para o Brasil ou que sua implantação redundará em “perdas” absolutas para o País. Provavelmente seus resultados de médio e longo prazo serão positivos para o Brasil em termos de comércio, investimentos e finanças, ainda que o impacto de curto prazo possa ser significativo (mas seu período de implantação pode ser delongado, pois tudo depende de negociação). 

12.Na sua opinião, quais são os principais problemas apresentados pela diplomacia brasileira no contexto em que vivemos?

PRA:Não temos propriamente problemas “da” diplomacia brasileira, mas talvez problemas “instrumentais”: número relativamente pequenos de diplomatas para todas as frentes de negociação, recursos orçamentários extremamente reduzidos para viagens, estudos, promoção comercial, contratação de consultorias técnicas, ampliação da rede consular externa, reduzida capacidade das demais agências governamentais brasileiras em “abastecer” os diplomatas de “inputs” adequados a certas negociações, enfim, problemas típicos de um país em desenvolvimento, com um funcionamento deficiente das instituições públicas e uma baixa interação com o mundo. 
Creio pessoalmente que o Itamaraty, ou os seus diplomatas, deveriam abrir-se mais às interações com a sociedade civil, dialogar mais intensamente no plano interno e externo e participar mais abertamente dos debates públicos em temas de relações internacionais e de política externa. Os constrangimentos criados pela existência de um instrumento de controle dessas manifestações públicas, mais vulgarmente conhecido como “lei da mordaça”, certamente não ajudam nessa abertura ampliada do Itamaraty à sociedade civil. 

13.Para finalizar, o que explica o Brasil que é considerado um gigante em extensão e capacidade econômica, língua única, estabilidade, falta de conflitos e uma diplomacia tão elogiada ter uma participação tão pequena no comércio mundial (de cerca de 0,8% atualmente, não é isso?)

PRA:A participação do Brasil no comércio  internacional gira efetivamente em torno de 0,8 a 1% dos intercâmbios globais, o que é efetivamente pouco se pensarmos na dimensão global da economia (8º ou 10º PIB no mundo), mas relativamente compatível com o baixo grau de abertura econômica externa (coeficiente de 10% do PIB aproximadamente). Tal situação deriva de fatores histórico-estruturais que são muito lentos a serem transformados: fechamento da política econômica durante a fase de industrialização e o enorme grau de nacionalização do aparelho produtivo construído durante a fase de desenvolvimento econômico “autárquico” (era Vargas e regime militar), ademais de uma desconfiança “natural” do País em relação aos processos de liberalização comercial e de uma especialização exportadora em setores caracterizados por baixo dinamismo e elasticidade-renda (commodities agrícolas, por exemplo, onde estão nossas grandes vantagens comparativas). Mas, somos, em contrapartida, um grande “tomador” de recursos externos, seja sob a forma de investimentos direitos (voluntários), seja sob a forma (obrigada) de capitais de empréstimo e financiamentos diversos (em virtude de nosso crônico desequilíbrio das transações correntes e da necessidade de importar capitais para compensar essa defasagem). 
Existem portanto diversos fatores que explicam essa baixa participação no comércio internacional, mas os mais importantes talvez sejam, não os “estruturais”, mas aqueles de ordem psicológica: somos introvertidos, pouco propensos a nos abrir ao mundo e temerosos de uma maior exposição (e fragilidade) externa, provavelmente por falta de confiança em nós mesmos e por medo de não poder (ou não sabermos) competir vantajosamente com a concorrência externa. Pouco a pouco o Brasil vai superando essa timidez, como se vê na nova confiança adquirida em termos de competitividade agrícola, nos esportes e na música, e gradualmente nos produtos de tecnologia mais avançada, como aviões ou mesmo manufaturados industriais. 
O Brasil tem todas as condições de vencer esses constrangimentos e de se inserir mais ativamente nos circuitos da globalização e da economia internacional. Ele certamente o fará, com a ajuda de uma diplomacia competente e autoconfiante.

Washington, 924: 11 de julho de 2002

Paulo Roberto de Almeidaé doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Publicou os seguintes livros: Mercosul: fundamentos e perspectivas(LTr, 1998), Relações internacionais e Política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (UFRGS, 1998), O Brasil e o multilateralismo econômico(Livraria do Advogado, 1999); Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000); Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(Senac, 2001); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas(Paz e Terra, 2002); Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil Contemporain(Paris: L’Harmattan, 2002). Website: www.pralmeida.org.


Renda basica: Robin Hood as avessas - Felipe Salto (2014)

Renda básica: Robin Hood às avessas

Felipe Salto
Folha de S. Paulo, 19/08/2014

É preciso considerar que a escassez de recursos é uma realidade concreta e exige seletividade nas transferências sociais
O mítico herói inglês, que tirava dos ricos para dar aos pobres, ficaria boquiaberto diante da tese da renda básica de cidadania (ou renda mínima), defendida há anos pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP).
A renda básica é uma transferência mensal a ser paga pelo Estado a todos os cidadãos --ricos e pobres. Na prática, a adoção de tal política, no Brasil, seria um retrocesso em relação aos consagrados programas de transferência de renda com condicionalidades --Bolsa Escola (no governo Fernando Henrique Cardoso) e Bolsa Família (no governo Luiz Inácio Lula da Silva).
No Brasil, onde a desigualdade é elevada, a saída é óbvia e as evidências empíricas são muito claras: direcionar as políticas públicas àqueles que delas mais necessitam.
Se o governo do PT tivesse seguido a lei nº 10.835, de 2004, a chamada "renda básica de cidadania" já deveria estar sendo paga a todos os brasileiros, sem distinção socioeconômica. O benefício, porém, nunca foi concretizado.
Ainda que a renda mínima seja defendida por economistas importantes como o belga Philippe Van Parijs, à luz do argumento de que o caráter universal do programa ampliaria a liberdade pessoal, é preciso considerar que a escassez de recursos é uma realidade concreta e exige seletividade nas transferências sociais.
A lei --proposta por Suplicy, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula-- promete pagar a todos os cidadãos o mesmo que for pago aos brasileiros mais pobres. É justo? Não.
Seria um grave erro desperdiçar recursos do Estado, que são arrecadados da própria sociedade, quando ainda convivemos com preocupante contingente de brasileiros e de brasileiras sem o mínimo necessário para sobreviver.
Se, hoje, conseguimos identificar a parcela mais pobre da população, com evidente sucesso, e transferir a estas pessoas montantes de recursos importantes, que os ajudam a sair da situação de pobreza extrema, por que defender a ideia de jogar recursos para o alto?
Uma conta simples mostra o grau de desatino da tese. Há 200 milhões de habitantes no Brasil. Se fixarmos um valor de R$ 100 ao mês por habitante (quantia relativamente baixa, quando consideramos que a lei preconiza que o recurso transferido seja suficiente para custear as despesas de saúde, educação e alimentação), o montante necessário para financiar a empreitada totalizaria R$ 240 bilhões ao ano!
Isso corresponderia a 4,6% do PIB, ou a dez vezes o orçamento anual do Bolsa Família. Ainda que a ideia fosse acatada pelo governo, caberia perguntar: de onde sairiam os recursos? De mais impostos, ou de menos gastos sociais?
A classe A representa, hoje, 2% da população brasileira --ou cerca de 4 milhões de pessoas. Isto é, dos R$ 240 bilhões, R$ 4,8 bilhões seriam destinados aos mais ricos da sociedade, que recebem acima de R$ 13,8 mil mensais. Essa pequena parcela da sociedade já detém 17% de toda a massa de renda do país e seria ainda mais beneficiada.
Lição número um da economia: a utilização dos recursos (privados e públicos) deve buscar o melhor resultado possível e a melhor relação de custo e benefício.
Criar um benefício monetário igual para todos é o mesmo que jogar dinheiro pela janela. O correto é adotar políticas seletivas em favor dos mais pobres --isto é, seguir a tendência do Bolsa Escola e do Bolsa Família. Além disso, evidentemente, é preciso criar novas políticas para atender à demanda da sociedade por mais e melhores serviços públicos e garantir ambiente propício à geração de maior número de empregos com bons salários.
A renda básica de cidadania pode partir da cabeça de gente bem-intencionada. Mas nunca é demais lembrar que, de boas intenções, o inferno está cheio.

FELIPE SALTO, 27, é economista especializado em finanças públicas da Tendências Consultoria Integrada e professor da FGV/EESP
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br - www.folha.com/tendencias

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Um programa insuficiente de politica externa: comentarios pessoais - Paulo Roberto de Almeida


Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: comentários a um programa de política externa; finalidade: esclarecimento]


Introdução
Insuficiente, segundo o dicionário do Google (convertido em “pai dos burros”, nos tempos que correm), é a condição ou qualidade de alguma coisa, qualquer coisa, “que não é suficiente” – o que é, obviamente, uma redundância – ou então que é “pouco, escasso”, ou então “que não alcança a qualidade necessária; fraco, medíocre, insatisfatório”. Pois bem, por que digo isto?
Acabo de tomar conhecimento do programa do candidato Bolsonaro ao governo do Brasil, um documento sintético de 81 páginas, com muitos adjetivos e grandes exclamações, das quais, confesso, não ter lido mais do que meia página, a 79, relativa à política externa que o candidato pretenderia exercer. Na verdade, essa seção, ínfima, portanto correspondendo inteiramente às definições acima, não se dedica exatamente ao tema, como se pode verificar que transcrição que efetuo aqui abaixo: 

            O “programa” de política externa
O NOVO ITAMARATY(p. 79 do documento)
    A estrutura do Ministério das Relações Exteriores precisa estar a serviço de valores que sempre foram associados ao povo brasileiro. A outra frente será fomentar o comércio exterior com países que possam agregar valor econômico e tecnológico ao Brasil.

    Deixaremos de louvar ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália. Não mais faremos acordos comerciais espúrios ou entregaremos o patrimônio do Povo brasileiro para ditadores internacionais.

    Além de aprofundar nossa integração com todos os irmãos latino-americanos que estejam livres de ditaduras, precisamos redirecionar nosso eixo de parcerias.

    Países, que buscaram se aproximar mas foram preteridos por razões ideológicas, têm muito a oferecer ao Brasil, em termos de comércio, ciência, tecnologia, inovação, educação e cultura.

    Ênfase nas relações e acordos bilaterais. 

Feita a transcrição, vejamos o que eu poderia dizer sobre esse “programa” que não é um programa, e sim um ajuntamento de frases, manifestamente a cargo de um neófito – definição deste substantivo masculino, tudo relativo à religião: “pagão recém-convertido ao cristianismo; pessoa que vai receber o batismo ou recentemente batizada; cristão-novo” –, pouco afeito aos temas de política externa, a quem encarregaram de dizer algumas coisas sobre o que se imagina ser o trabalho do Itamaraty. Vou apenas analisar topicamente o que me parecem ser a insuficiências desse “programa”, e depois elaborar um pouco a respeito do seria um conjunto de propostas na área externa.

Comentários pessoais
A política externa de um governo não pode limitar-se ao Itamaraty, ainda que ele seja chamado de “novo”. O “velho” Itamaraty, do seu lado, sempre se ocupou de política externa, mas a instituição, por mais venerável que fosse, ou seja, é apenas um instrumento, uma espécie de “ferramenta”, a serviço da política externa, que é definida, vale lembrar, pelo presidente da República. Sua estrutura, seja alguma nova ou mantida a “velha”, não tem muito a ver com a substância mesma dessa política externa, pois trata-se de uma ferramenta operacional que pode ser mudado segundo os requerimentos da política externa, que tampouco pode ser resumida unicamente aos “valores do povo brasileiro”, ou às atividade de “comércio exterior”. Ela abrange uma vasta gama de temas – bilaterais, regionais e multilaterais – nos terrenos político, econômico, ou de cooperação científica e tecnológica e de assistência ao desenvolvimento, assim como de apoio à capacitação do Brasil numa série de terrenos, como por exemplo, de atração de investimentos e até de engajamento em operações de paz, eventualmente determinadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. 
O segundo item do “programa” não é exatamente uma proposta, mas uma simples invectiva contra as deformações daquilo que pode ser chamado de “diplomacia lulopetista”. É certo que o lulopetismo diplomático cultivou boas relações diplomáticas – e até em outras esferas – com as ditaduras mais execráveis da região e do mundo, mas uma mudança nessa área significa apenas retornar ao padrão normal do Itamaraty, que sempre foi o de manter relações corretas com quaisquer países, sem expressar opiniões ou manter “relações paralelas” – clandestinas ou secretas, como infelizmente foi o caso naquele regime – com alguns deles, em função de simpatias ideológicas, ou até de interesses não exatamente republicanos, possivelmente na linha daquilo que o lulopetismo fazia no próprio plano interno, sobretudo em matéria de iniciativas econômicas ou acordos “espúrios” com essas ditaduras. Não cabe, no entanto, num programa de governo, efetuar distinções desse tipo, apontando para certos países e não outros; se for para seguir o padrão “normal” do Itamaraty, que é o de uma diplomacia universalista, e portanto, não discriminatória, o correto está em manter relações com todos os demais membros da comunidade internacional, segundo nossos interesses. 
O mesmo tipo de discriminação ocorre, em certa medida, no item seguinte, que diz expressamente isto: “Além de aprofundar nossa integração com todos os irmãos latino-americanos que estejam livres de ditaduras, precisamos redirecionar nosso eixo de parcerias.” O conceito de integração é muito vago, pois depende de qual conteúdo se lhe pretende imprimir, se zona de livre comércio, ou uma simples área de preferências tarifárias, ou mesmo a continuidade desse projeto de mercado comum, que é o objetivo do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul. Um programa de governo não deveria expressar essa restrição qualitativa no caso de “ditaduras”, pois introduziria certo grau de subjetivismo nas políticas de governo, uma vez que existem outras ditaduras com as quais o Brasil mantém relações normais, sem todavia pretender aprofundar qualquer tipo de integração ou cooperação mais estreita. 
O Brasil, na verdade, necessita de maior inserção internacional, o que pode ser feito por abertura econômica e liberalização comercial, até de forma unilateral se for o caso. Processos de integração requerem negociações bilaterais ou plurilaterais que são necessariamente lentas e difíceis, mas mesmo isso exige uma definição prévia de qual seria a sua política comercial, de modo estrito, e, de modo amplo, a sua política econômica externa. Por outro lado, “redirecionar o eixo de parcerias” não prejulga minimamente quanto à natureza ou a orientação dessa “reorientação”. 
Não parece haver, por outro lado, uma estratégia muito clara quanto a esses “países que foram preteridos por razões ideológicas”, pois a frase soa mais como uma reclamação contra o lulopetismo diplomático (que de resto já, mudou desde os dois anos decorridos desde o final do regime companheiro) do que como um programa de governo. O Itamaraty sabe exatamente quais são os países que podem oferecer as melhores oportunidades em todos esses campos mencionados, ainda que algumas escolhas anteriores – como as de grupos regionais como Ibas, Unasul e Brics – permaneçam na agenda diplomática da atualidade, o que caberia, talvez, revisar.
Por fim, pretender atribuir “ênfase nas relações e acordos bilaterais” é uma, entre várias outras modalidades de relações exteriores, que passam ainda pelo regionalismo, multilateralismo, interregionalismo, plurilateralismo, ou simplesmente universalismo, com base numa definição ad hoc, ou seja, uma estratégia adaptada às diferentes circunstâncias dessas relações externas, de acordo com a natureza do assunto a ser tratado com parceiros estrangeiros. O bilateralismo estrito é necessariamente redutor das oportunidades oferecidas pela economia global, quando se assistem a negociações de mega-acordos comerciais, ou de investimentos, mobilizando um número muito variado de países (a exemplo do TPP ou de outros na área da Ásia Pacífico). 

Um programa de política externa
Um programa consistente de política externa deve partir de diretrizes gerais, que são definidas basicamente a partir das grandes orientações diplomáticas e econômicas de um governo determinado, para depois se debruçar sobre áreas temáticas: relações políticas nos planos bilateral, regional e multilateral, justamente, ou sobre os objetivos econômicos que se pretende alcançar, = situados nas área de comércio, investimentos, laços de cooperação em ciência e tecnologia, etc. Cabe dar devida atenção à “geografia” da política externa, ou seja, as prioridades no imediato entorno geográfico e a amplitude que se pretende dar às grandes parcerias externas: a Ásia, com destaque para a China, se afirma claramente como a área de maior dinamismo relativo na economia global, mas a África também parece oferecer boas perspectivas de crescimento econômico nos próximos anos. 
Existem, por outro lado, temas que já estão colocados na agenda internacional, e sobre os quais o Brasil precisa ter posições claras, e definir alianças pragmáticas, não aquelas ditadas por simpatias ideológicas como parecia ser o caso anteriormente. Outros temas podem resultar da própria iniciativa do Brasil, como o aprofundamento da integração regional, por exemplo. Muitos dos temas que devem necessariamente integrar uma agenda de política externa passam, antes, por reformas internas, pois parece meridianamente claro que é o Brasil que se encontra defasado em relação à agenda da globalização, introvertido e protecionista como ele sempre foi, e ainda é. 
Diretrizes setoriais precisam ser definidas com clareza em função dessas mesmas necessidades (ou carências) internas, e elas passam, por exemplo, por uma agenda de produtividade, que por sua vez remete a um programa – talvez a uma verdadeira revolução – no plano educacional, provavelmente o maior desafio que a sociedade brasileira tem para consigo mesma. A política externa pode ser orientada para essas áreas, mas as diretrizes a serem dadas ao Itamaraty – bem como às outras agências do governo – precisam partir do presidente, ou de seu gabinete, com uma visão clara, integrada, de como a agenda de reformas internas vai se coordenar com a ação externa do Itamaraty. Relações regionais e com grandes parceiros também precisam adequar-se a essa lista de prioridades gerais do governo, e não serem definidas de modo abstrato, ou principista, para serem conduzidas de modo mecânico pelo Itamaraty.
De forma geral, o Brasil precisa passar por reformas radicais no plano interno, e a política externa tem de ser coadjuvante desse processo. O ingresso do Brasil na OCDE, por exemplo, não pode ser visto como um objetivo em si, mas meramente como um meio para acelerar, aprofundar, qualificar esse processo de reformas internas, preferencialmente visando à intensificação de nossa inserção na economia global, o único caminho para uma modernização exitosa das estruturas internas. 
Havendo uma definição clara de quais objetivos o Brasil pretende atingir nos planos interno e externo, o Itamaraty, novo ou “velho”, será perfeitamente capaz de adaptar suas estruturas e ferramentas para coadjuvar esse processo de reformas modernizantes.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15-16 de agosto de 2018

Sobre alguns boatos persistentes: um novo desmentido - Paulo Roberto de Almeida

Tomei conhecimento, novamente nesta data (15/08/2018), por um colega de trabalho, de boatos, aparentemente persistentes, sobre minha condição de "assessor de um (tal) candidato (de direita) na área de relações internacionais", com "acusação" adicional de que seria o "indicado" para o Itamaraty nesse governo, em caso de vitória desse candidato nas eleições de outubro. 
Fui novamente tomado de surpresa, uma vez que não estou assessorando nenhum candidato, não pertenço e nem pretendo pertencer a qualquer partido, sou absolutamente independente, embora tenha convicções e escolhas políticas, sendo que meus candidatos – não tenho nenhum problema em apontar os preferidos – nas eleições presidenciais são, pela ordem, João Amoedo e Geraldo Alkmin.

A única coisa a que sou candidato seria continuar a exercer minhas atividades intelectuais, e a terminar a redação de meus volumes 2 e 3 de minha história da diplomacia econômica, cujo primeiro volume já foi publicado em terceira edição, como informo ao final.

Para dirimir qualquer dúvida quanto a minha postura, permito relembrar, e reproduzir, texto que já disseminei um mês atrás, quando os primeiros boatos chegaram aos meus ouvidos. Não tenho nada de novo a acrescentar ao que já disse neste texto, e que reproduzo novamente abaixo.

Como fiz em todas as eleições anteriores – e isto está claramente indicado numa seção da coluna da direita neste meu blog – sigo atentamente programas e propostas dos candidatos, agregando comentários pessoais, especialmente sobre economia, relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira, nos blogs temporais indicados ali. O blog deste ano é este aqui: 

Eleições presidenciais 2018
https://eleicoespresidenciais2018.blogspot.com

Segue a ficha e o texto deste meu segundo desmentido (e espero que não necessite uma terceira vez):

3300. “Uma revelação surpreendente, uma explicação necessária”, Brasília, 15 julho 2018, 3 p. Sobre um boato de que eu estaria trabalhando na equipe de certo candidato de direita e integraria seu ministério, meus comentários. Divulgado no blog Diplomatizzando(https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/07/uma-revelacao-surpreendente-uma.html), disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1996311863765587).

Uma revelação surpreendente, uma explicação necessária

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: retirar fundamento de um boato; finalidade: esclarecimento público]


Minha atenção foi chamada, recentemente, para uma revelação surpreendente, feita em tom de confidência por um amigo que a ouviu, direta ou indiretamente, de algum colega diplomata, segundo a qual eu estaria integrando a equipe de apoio de um dos candidatos às próximas eleições presidenciais – ou seja, fazendo parte de um grupo de formulação de políticas – e que eu poderia vir a ser membro de seu ministério, na área das relações exteriores, se por acaso esse candidato, classificado à direita no âmbito do espectro político, viesse a ser eleito. Não sei exatamente de onde pode ter saído tal “informação”, mas ela não corresponde absolutamente à minha postura, na atual campanha eleitoral, por motivos que julgo relevante explicar, por simples cuidado de transparência, aliás confirmada em relação a minha produção intelectual e atividades públicas, objeto de registro e divulgação em minhas ferramentas de comunicação social, como por exemplo o blog Diplomatizzandoe o meu site pessoal, nos quais estão consignadas minhas listas de trabalhos originais e os publicados. 
Não estou, por razões de ética profissional e de simples acatamento a uma postura totalmente independente em relação a partidos e movimentos políticos, a serviço de qualquer um dos atuais ou futuros candidatos à presidência da República, assim como não postulo, e não desejo, por razões eminentemente práticas, exercer qualquer cargo executivo em eventual governo que venha a tomar posse em janeiro de 2019. Preservo total autonomia de pensamento e ação no terreno da política e, embora seja um cidadão consciente de minhas obrigações cívicas nessa área, não aspiro cargos ou assessorias em qualquer governo que venha a se formar a partir das eleições de outubro do corrente ano. Pretendo manter minha atitude de distanciamento crítico em relação a qualquer um dos candidatos à presidência do Brasil, em especial em relação ao candidato ao qual pretendem, contra a minha vontade, me vincular politicamente.
Essa revelação surpreendente pede algum esclarecimento sobre suas prováveis origens, assim como minha postura aqui exposta apela a uma explicação credível; é a isto que se destina a presente nota. Meus colegas de carreira estão quase amplamente informados, mas não necessariamente o público externo, de que, dentre os diplomatas que, na vigência dos governos do PT, foram considerados como “adversários políticos” de um regime que eu nunca hesitei em considerar nefasto ao Brasil, eu fui o único que permaneci, na inteira vigência daquele “reinado”, sem qualquer cargo ou função na Secretaria de Estado, aliás até o presente momento. Desde o início de 2003, quando fui expressa e deliberadamente vetado para um cargo no Itamaraty, ao qual eu tinha sido convidado em razão de minha capacitação na área, atravessando os dois governos Lula e um e meio de sua sucessora, e até o momento mesmo do impeachment, em maio de 2016, eu nunca exerci qualquer função na Secretaria de Estado, vetado que estava para o exercício das atividades às quais eu estava vinculado por dever de ofício, e isso contrariamente a normas administrativas a que o Ministério deveria estar adstrito. Já me expliquei, em diversas ocasiões, mas especialmente em dois textos divulgados em meu blog pessoal – uma primeira vez em 18 de dezembro de 2016, uma segunda em 26 de junho de 2018: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/06/uma-longa-travessia-do-deserto.htmlhttps://diplomatizzando.blogspot.com/2018/06/duas-pedras-no-meio-do-caminho-paulo.html– sobre como transcorreu essa longa travessia do deserto funcional a que estive relegado, um exílio involuntário que durou exatamente o dobro de meu primeiro exílio, voluntário, a que fui levado durante o período da ditadura militar. 
Pois bem, a que se poderia atribuir a “informação” em questão, dado que sempre fui extremamente discreto quanto às minhas escolhas políticas, mas deliberadamente aberto e transparente quanto ao que penso em relação a políticas e políticos em geral? Provavelmente ao fato que nunca escondi o que pensava – e isto está registrado em inúmeros trabalhos publicados desde antes de 2003 – sobre o partido companheiro e suas políticas esquizofrênicas para a administração do país. Paralelamente às minhas atribuições profissionais na carreira diplomática, exerço desde sempre atividades complementares no mundo acadêmico, sendo autor de muitos livros e artigos sobre os mais diversos assuntos de interesse em meu universo de preocupações intelectuais. Pode-se dizer que fui o único diplomata a ter escrito e publicado artigos e livros que podem ser classificados como objetivamente – e até subjetivamente – críticos em relação ao regime e suas políticas públicas, especialmente sua política externa, que sempre chamei de “lulopetismo diplomático”. 
Entendo que devo a essa postura de objeção pessoal à maior parte das políticas companheiras, em especial na área externa, o fato de ter sido agora alinhado “à direita” do espectro político, posição que rejeito não apenas por convicções ideológicas, mas também porque ela não corresponde absolutamente à verdade dos fatos. Aliás, eu nunca fui crítico do PT e das políticas companheiras porque estas e o seu partido seriam “de esquerda”, o que eu considero plenamente admissível no terreno das opções políticas disponíveis a qualquer cidadão consciente e participante ativo do jogo político, como aliás eu mesmo sou, mesmo sem estar integrado a qualquer partido, o que nunca fiz e não pretendo fazer. Sempre fui opositor daquelas políticas e de seus promotores pelo fato singelo de que sempre considerei que eles fossem totalmente ineptos na condução das políticas públicas, e por saber, de antemão – o que depois se revelou amplamente – que eles eram tremendamente corruptos no exercício do poder, além de dominados por um inaceitável espírito totalitário. 
Creio que os inúmeros textos meus divulgados a esse respeito – a maior parte deles livremente disponíveis nas ferramentas pessoais e na plataforma Academia.edu, e os mais representativos no livro Nunca antes na diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Appris) – podem ter causado essa impressão de que eu estaria identificado com, ou trabalhando para, um desses candidatos também crítico aos companheiros, o que eu desminto formalmente. Recentemente formulei algumas propostas de política econômica externa – notadamente o capítulo sobre “relações internacionais” no livro organizado por Jaime Pinsky, Brasil: o futuro que queremos(Contexto, 2018) – o que pode, mais uma vez, ter aberto espaço para esse tipo de associação que absolutamente inexiste. 
Se ouso ser ainda mais transparente quanto às minhas preferencias políticas, posso confirmar, formalmente, que não sou, nem pretendo ser, eleitor do candidato em questão, por divergir filosoficamente, e absolutamente, de suas posturas gerais em uma variedade muito ampla de terrenos e políticas públicas. Se existe algum candidato que se aproxima mais ou menos daquilo que eu mesmo penso quanto à natureza e sentido das medidas que deveriam ser implementadas por algum estadista (até aqui inexistente) eventualmente alçado à condição de presidente, esta pessoa seria o candidato do partido Novo, com o qual a minha interface de ideias é mais ampla e bem mais convergente. Depois de ter sido marxista na juventude, sou, na idade madura, um libertário puro. 
Espero que estas minhas explicações sejam suficientes para eliminar qualquer questionamento quanto às minhas preferências políticas, ou qualquer “revelação” de que eu estaria interessado em exercer cargos executivos, mesmo em minha área de trabalho. Sou, e pretendo continuar sendo, um espectador engajado, e não mais do que isso. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de julho de 2018

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A obra de história da diplomacia econômica no Brasil, para a qual preciso ainda escrever e publicar o segundo e o terceiro volume: 

Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. 3ra. edição, revista; apresentação embaixador Alberto da Costa e Silva, membro da Academia Brasileira de Letras; Brasília: Funag, 2017, 2 volumes; Coleção História Diplomática; ISBN: 978-85-7631-675-6 (obra completa; 964 p.); Volume I, 516 p.; ISBN: 978-85-7631-668-8 (link:http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=907) e Volume II, 464 p.; ISBN: 978-85-7631-669-5(link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=908).Divulgado no blog Diplomatizzando(link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/09/formacao-da-diplomacia-economica-no_9.html)e disseminado no Facebook (link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1648798118516965).Relação de Originais n. 1351 (prefácio à 2aedição) e 3083 (prefácio à 3aedição).