Antifascismo histórico e humano
Biógrafo de Mussolini, Antonio Scurati une histórias célebres e anônimas de resistência ao horror e explica o poder de sedução de autocratas atuais
Revista Quatro Cinco Um, 17 jan 2025
https://quatrocincoum.com.br/entrevistas/historia/antifascismo-historico-e-humano/
“A dignidade de cada livro se torna para Ginzburg a dignidade da cultura; a defesa do texto se torna a defesa do homem”. Assim Antonio Scurati descreve o editor e intelectual Leone Ginzburg — protagonista de A melhor época da nossa vida —, que foi perseguido pelo fascismo e morreu em 1944 nas mãos dos nazistas. Recém-lançado no Brasil, o livro é de 2015. Anterior, portanto, a M, O filho do século, que saiu na Itália em 2018, dando início à série que o escritor vem dedicando à funesta trajetória do líder fascista Benito Mussolini.
Além desse primeiro volume, M, O homem da providência também já teve tradução no Brasil pela Intrínseca, que prevê para 2025 a publicação do terceiro, M, Gli ultimi giorni dell’Europa (Os últimos dias da Europa). Os três títulos narram, respectivamente, a ascensão de Mussolini, sua consolidação no poder e a entrada da Itália na Segunda Guerra Mundial.
Trad. Federico Carotti Editora Manjuba // 320 pp • R$ 88
Quando respondeu, por escrito, às perguntas da entrevista a seguir, Scurati havia acabado de concluir o quinto e último volume que, ainda sem título divulgado, deve abordar o período entre a derrocada de Mussolini e seu assassinato, em 1945, pela resistência. Mas ele também estava às voltas com o lançamento, na Itália, do quarto volume: M, L’ora del Destino (A hora do destino), título extraído do discurso em que Mussolini anuncia a decisão de lançar o país num conflito do qual, nas palavras de Scurati, os italianos participaram “sempre como agressores, sempre como invasores e sempre como derrotados”.
Scurati estabelece uma comunhão entre diferentes formas de dizer ‘não’ à agressão fascista
Há complementaridade e, ao mesmo tempo, dissonância profunda, entre A melhor época da nossa vida e a série M, que Scurati apresenta como um “romance documental”, ou seja, com andamento romanesco, mas matéria-prima estritamente baseada em documentos históricos, livros de memórias, notícias de jornal e discursos.
Em A melhor época da nossa vida, o procedimento é o mesmo. “Não me entregarei à especulação, não me permitirei nenhuma introspecção, nenhuma conjectura sobre o seu estado de espírito”, declara o escritor nas páginas iniciais desse retrato de Leone Ginzburg, que em 1934 renunciou formalmente à carreira universitária para não prestar o obrigatório juramento de fidelidade ao fascismo. Scurati escreve no livro que foi a descoberta, em 2011, da carta de demissão de Ginzburg que o levou a contar sua história.
A partir desse “não” (o primeiro dentre os vários “nãos” relatados por Scurati), Leone dá início a uma vida submersa. Mesmo degredado em 1940 para a região de Abruzzo, onde viverá na companhia dos filhos e da mulher (a escritora Natalia Ginzburg, judia como ele), mantém intensa correspondência de trabalho com amigos junto dos quais fundara, em 1933, a Einaudi, até hoje uma das maiores editoras italianas.
O fio condutor da narrativa é, portanto, a história de Ginzburg, do nascimento em Odessa (atual Ucrânia) e os tempos convulsos da Revolução Russa até a formação em Turim (na região italiana do Piemonte) e a morte, após tortura pelos nazistas, no cárcere romano de Regina Coeli em 1944 — quando o regime fascista já havia caído e Ginzburg participava ativamente da resistência à ocupação da Itália pela Alemanha de Hitler.
Mas o escritor intercala nesse relato a história dos dois troncos de sua própria família: os Scurati e os Ferrieri. Com isso, A melhor época da nossa vida estabelece uma comunhão entre diferentes formas de dizer “não” à agressão fascista, seja da parte de um ensaísta erudito, tradutor de clássicos russos, seja da parte de trabalhadores comuns, que ruminaram seus sonhos em meio à fome e aos bombardeios. Todos com a mesma dignidade silenciosa, que continua sendo uma referência nesse momento em que novos avatares do fascismo apontam no horizonte.
Depois de ter escrito quatro volumes de M, série documental sobre Mussolini, e um livro como Fascismo e populismo, como explica a sedução de autocratas atuais como Orbán, Erdogan e Bolsonaro? Trump pode ser incluído nessa lista?
Isso pode ser explicado por uma nova crise de confiança na democracia, semelhante, senão idêntica, àquela que favoreceu a ascensão do fascismo há cem anos. Confrontados com um aumento paroxístico na complexidade da vida social e política na modernidade tardia, que parece estar descarrilando para um caos ingovernável, parcelas crescentes de populações ocidentais, desconfiadas da democracia, tornam-se dispostas a trocar suas prerrogativas de liberdade por uma promessa de segurança por “homens fortes”, que tranquilizam o eleitorado de forma ilusória e consoladora, através de uma simplificação brutal dessa complexidade. Assim surge a ideia intrinsecamente contraditória de democracia autoritária. Trump é certamente o líder dessa aberração democrática que chamo de sedução populista.
Existem paralelos entre a ideologia baseada no medo, do fascismo histórico, e o medo atual, da ameaça permanente de perdas devidas à globalização neoliberal (desemprego, perda de raízes, refugiados)?
Sem dúvida. Mussolini foi o primeiro a compreender que havia — e ainda há — apenas uma paixão política mais poderosa que a esperança (o motor do socialismo, de onde ele próprio veio, e de todas as outras políticas progressistas). Essa paixão é o medo. O fascismo foi uma política do medo não só porque o usava para subjugar a população, mas porque o usava também para seduzi-la, trazê-la para si. A simplificação brutal sobre a qual me referi antes consistia — e consiste — em reduzir todos os problemas a um só, reduzir determinado problema a um inimigo, e esse inimigo a um invasor estrangeiro. A globalização neoliberal criou terreno fértil para o regresso desse esquema rudimentar, mas altamente eficaz.
O terceiro e o quarto volume de M descrevem o caminho da Itália rumo à Segunda Guerra e à derrota. Qual é a especificidade da guerra fascista? As motivações de Mussolini eram as mesmas de Hitler?
A guerra fascista é sempre uma guerra de agressão, embora apresentada no plano propagandístico como uma santa cruzada nacionalista contra um inimigo mortal, que ameaça a própria sobrevivência da nação. No quarto volume de M (A hora do destino) me dediquei a descrever as cinco frentes de guerra nas quais Mussolini, apesar do total despreparo militar e industrial da Itália e da relutância dos italianos em lutar, enviou nossos avós para matar e morrer — sempre como agressores, sempre como invasores e sempre como derrotados.
Há uma nova crise de confiança na democracia, semelhante à que favoreceu a ascensão do fascismo
Todos os fascistas têm uma necessidade constante de construir “um inimigo mortal” no plano simbólico. Sem isso, não podem sobreviver. As motivações de Hitler eram semelhantes nesse aspecto, mas num esquema ideológico mais extremo, mais nítido, apoiado em estratégias de dominação mais concretas.
Pode-se dizer que Ginzburg é o anti-Mussolini, uma espécie de anti-herói no sentido que o crítico literário Victor Brombert descreve como aquele que expressa os desastres e resiste às catástrofes de seu tempo?
Certamente. Ginzburg foi antifascista por razões morais, éticas e até estéticas, antes mesmo das razões políticas. Razões, portanto, com raízes ainda mais profundas do que a oposição política. Ele foi, pode-se dizer, um antifascista “existencial”. Opôs seu “não” ao fascismo quando jovem, no início de sua vida e carreira, e depois continuou a se opor a ele até as consequências mais extremas, ou seja, até sua morte. Mas que não se pense que esse “não” se limitou a uma negação estéril: pelo contrário, continuou a gerar cultura, pensamento, filhos e afetos, com grande fecundidade, até o fim.
O livro conta, paralelamente, a vida de Ginzburg e a história de sua família. Por que fez essa escolha e como as vidas dos Ginzburg e dos Scurati/Ferrieri se iluminam?
Quando evocamos o passado — isto é, a passagem pela terra de mulheres e homens de outro tempo, que nunca conhecemos e nunca conheceremos —, a questão fundamental, na minha opinião, permanece sempre a mesma: onde me situo nessa corrente? O que eu teria feito no lugar deles? E respondi a mim mesmo que eu estava lá porque lá estavam meus avós, pessoas comuns, tão comuns quanto Ginzburg era extraordinário. Aproximá-los na narrativa poderia iluminá-los reciprocamente, a humildade daqueles sendo solidária com a nobreza deste. E vice-versa.
No livro há uma “crono-história” da Segunda Guerra, que descreve simultaneamente os movimentos no front e o cotidiano das três famílias. Seria uma versão da alternância entre personagens históricos e humanos descrita por Ginzburg no prefácio à obra-prima de Tolstói?
Exatamente. Nesse prefácio curto, porém memorável, Ginzburg sublinhou como, entre os personagens históricos que foram protagonistas da guerra e os personagens humanos que foram protagonistas da paz, Tolstói preferiu estes últimos. O mesmo pode certamente ser dito do próprio Ginzburg, que traduziu Guerra e paz com esforço heróico enquanto estava degredado [nas montanhas do Abruzzo], enquanto os exércitos de Hitler invadiam a Rússia, assim como os de Napoleão o haviam feito no romance do grande escritor russo. Minha intenção era exatamente esta: descrever Leone Ginzburg como personagem histórico e, ao mesmo tempo, como personagem humano.
Em 2024, foram recordados os oitenta anos da morte de Leone Ginzburg e o centenário do assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti por milicianos fascistas. Existem relações simbólicas ou factuais entre os dois eventos?
Ambos eram antifascistas inflexíveis, ambos não violentos, ambos vítimas da violência nazifascista, embora separados por vinte anos um do outro. E isso nos lembra que o fascismo é sempre, essencialmente, violência
Quem escreveu esse texto
Manuel da Costa Pinto
É autor de Paisagens interiores e outros ensaios (B4 Editores).
Grato a Mauricio Dias David, pela remessa da matéria. PRA