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domingo, 22 de novembro de 2009

1534) Relações do Brasil com a América Latina e os EUA

Percalços da integração
Paulo Roberto de Almeida
Edição especial sobre Política Externa da revista
Conjuntura Econômica (Rio de Janeiro: FGV; vol. 63, n. 9, Setembro 2009, p. 58-61; ISSN: 0010-5945).

Os três lustros que vão do início dos anos 1990 a meados da década seguinte são dominados, no que se refere às relações econômicas dos Estados Unidos (EUA) com os países latino-americanos, pelo projeto americano de uma área de livre comércio, iniciado sob a forma de um esquema radial de liberalização comercial tendo os EUA em seu centro – a “Iniciativa para as Américas” de George Bush pai, em 1990 – e continuado sob a forma multilateral de um Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca), como decidido na cúpula de Miami, em 1994, mas concebido pela maior economia hemisférica como uma simples extensão do acordo de livre comércio da América do Norte (Nafta) aos demais países da região.
Depois de uma fase inicial voltada para os procedimentos negociadores – durante a qual o Brasil conseguiu assegurar que a metodologia de constituição da eventual área de livre comércio seria feita por meio de building blocks, ou seja, preservando os esquemas existentes, entre eles o Mercosul, e não pela adesão individual dos países ao esquema trilateral do Nafta – as negociações propriamente ditas, começadas em 1999, revelaram diferenças sensíveis de orientação entre os principais protagonistas.
O Brasil, em particular, sempre alimentou suspeitas sobre a real vontade liberalizante dos EUA, em especial na área agrícola, onde se situam suas principais vantagens comparativas. Esses temores se mostraram plenamente justificados quando o mandato negociador aprovado pelo Congresso em 2002 – a partir de então chamado de Trade Promotion Authority, e não mais de fast track, segundo a anterior designação coloquial – confirmou a modestíssima abertura dos EUA nas áreas de maior interesse brasileiro e a continuidade das restrições em setores tradicionais da indústria (geralmente labor intensive, mas também siderúrgica e transportes).
Da parte do Brasil, igualmente, as sensibilidades se estendiam de algumas indústrias dotadas de maior intensidade tecnológica aos setores de serviços e aos regimes de investimentos e propriedade intelectual. Ambos os países presidiam ao processo negociador a partir de 2002 e estavam, assim, em condições de determinar o seu sucesso ou fracasso. Os obstáculos protecionistas dos dois lados agregados à má vontade do novo governo do PT em relação ao projeto mesmo da Alca, determinaram o impasse no processo negociador e sua suspensão, a partir da cúpula de Mar del Plata, em 2005. No intervalo, os EUA já tinham iniciado a ‘minilateralização’ de sua estratégia comercial para a região, fazendo ofertas diferenciadas para grupos de países e consolidando uma rede de acordos comerciais que, embora excluindo o Mercosul, passou a ligar ao modelo americano de livre comércio grande número de economias hemisféricas, entre elas o Chile.

Antagonismo
No plano político, o cenário foi dominado por temas negativos, como o tráfico de drogas – assim como a guerrilha e o crime organizado, a ele associados – e a imigração ilegal, ambos objeto de uma abordagem unilateral da parte dos EUA que muito antagonizou seus principais parceiros na região. A perspectiva adotada pelos EUA, de pretender resolver essas questões pelo lado da oferta, antes que pelo lado da demanda, especificamente americana em ambos os capítulos, não ajudou no encaminhamento de soluções cooperativas aos dois problemas, gerando desentendimentos, acrimônia e acusações, tanto em âmbito bilateral, como por ocasião de encontros multilaterais regionais.
Algumas iniciativas tomadas pelos EUA, como por exemplo o Plano Colômbia – de combate à narcoguerrilha nesse país, com ajuda financeira e técnica de Washington, à altura de vários bilhões – causaram maiores suspeitas, inclusive no Brasil, do que ajudaram na recomposição das relações entre a grande potência hemisférica e seus vizinhos latino-americanos. A evolução política em boa parte do continente determinaria, inclusive, a deterioração dessas relações, com a emergência de novas lideranças políticas de esquerda, claramente antipáticas ao centro hegemônico e certamente contrárias à visão americana de integração hemisférica, tradicionalmente baseada na abertura comercial e aos investimentos diretos.
As relações do Brasil com os EUA, de um lado, e com os países latino-americanos, de outro, evoluíram positivamente tanto no âmbito econômico como comercial – com expansão das exportações de manufaturas e dos investimentos –, embora com tendências erráticas no plano da integração e algumas frustrações políticas, em aspectos específicos desse relacionamento.
As mudanças nas relações bilaterais foram pouco perceptíveis, permanecendo os mesmos focos de contencioso comercial, embora tenha ocorrido alguma alteração na natureza desse relacionamento, com uma evolução declinante no plano dos entendimentos pessoais entre os respectivos chefes de Estado, passando da real empatia da era FHC-Clinton – que chegou a receber o primeiro em sua casa de Camp David e que com ele mantinha um diálogo substantivo – à falsa cordialidade da era Lula-Bush, feita de cuidados visíveis para minimizar os terrenos de desentendimento (Alca, rodada Doha, meio ambiente, protecionismo setorial, temas de segurança, etc.).
Nas suas relações com os vizinhos continentais, o governo brasileiro aprofundou a política de privilegiar o conceito sul-americano iniciada no governo precedente, antes que a noção politicamente vaga e geograficamente muito ampla de América Latina, lançando diversas iniciativas nesse âmbito, inclusive para afastar o que foi identificado como “tutela imperial” sobre o hemisfério. Embora a crise do Mercosul só tenha feito aprofundar-se, desde 1999 – a partir da desvalorização e da flutuação cambial brasileira e da profunda crise vivida pela Argentina desde então, com a acentuação de seu protecionismo discriminatório a partir da retomada do crescimento – o Brasil lançou-se em ambiciosos projetos de integração física e de coordenação política que não produziram, até o momento, os retornos esperados.

Liderança
O Mercosul estagnou no plano comercial – mesmo com a retomada relativa dos fluxos de comércio – e só foi mantido ativo graças a diferentes projetos nos campos cultural, social, educacional e alguns outros de cunho essencialmente político, como o Parlamento, por exemplo. A proposta de uma Comunidade Sul-Americana de Nações – lançada no Peru, em dezembro de 2004 – acabou transformada numa União de Nações Sul-Americanas, com secretariado em Quito, por manobras do principal competidor do Brasil pela liderança regional, o presidente da Venezuela Hugo Chávez.
O tema da liderança regional brasileira ocupou, aliás, boa parte do cenário político no período recente, nem sempre com percepções positivas por parte dos vizinhos. A despeito dos esforços brasileiros, os projetos de integração física, e mesmo de liberalização comercial, não conheceram, de fato, a impulsão que deveriam experimentar em função das carências percebidas nessas áreas. A Unasul recebeu, inclusive, um componente de segurança e de coordenação de temas estratégicos, sob a forma do Conselho Sul-Americano de Defesa, mas ainda não se firmou, de fato, como o órgão central da integração sul-americana.
No período recente, o Brasil ensaiou nova ofensiva de âmbito latino-americano, ao convidar todos os países compreendidos nesse conceito a uma Cúpula hemisférica – realizada na Bahia, em dezembro de 2008 – à exclusão da ‘potência imperial’. O país também foi muito ativo na reintegração de Cuba aos esquemas regionais – Aladi, Grupo do Rio e a abertura para a OEA – mas as escolhas dos países ‘bolivarianos’ e seus modelos alternativos nos campos político e econômico ainda representam um sério desafio ao conceito brasileiro de integração regional.

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata de carreira, professor no Mestrado do Uniceub (Brasília)

Publicada versão em inglês:
“Brazilian Foreign Relations with South America and USA”,
The Brazilian Economy: Economy, Politics and Policy Issues
(FGV, Brazilian Institute of Economics: vol. 1, n. 8, September 2009) p. 30-33. Postada no website pessoal.

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