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domingo, 19 de junho de 2011

80 anos de FHC: louvacoes e panegiricos nao combinam com este blog

Normalmente eu passaria longe desse tipo de discurso laudatório, totalmente artificial, e puramente hiperbólico, em que se tenta fazer de alguém uma personalidade maior do que realmente é. Ou seja, eu normalmente não transcreveria aqui esse tipo de panegírico, se ele não tivesse a ver, também, com ideias e conceitos sobre o Brasil e sua política, dois temas que são aqui privilegiados.
Acredito que o personagem em questão, FHC, realmente tem qualidades, de intelectual e de homem público, em todo caso, maiores e melhores qualidades do que as exibidas por líderes políticos e intelectuais algumas décadas antes dele e possivelmente algumas décadas à frente, também. Não acredito, por exemplo, que venhamos a ter algum outro presidente tão bem preparado quanto ele pelo futuro previsível, assim como não tivemos nenhum outro igual nos cem anos anteriores da República.
Isso não significa, porém, que ele esteja isento de julgamentos negativos, de avaliações objetivas (que indicariam seus erros também), ou que outros, em suas dimensões próprias, não tenham tido igual, ou maior, importância, para a vida republicana, ou simplesmente brasileira, desde a independência. O julgamento deveria ser deixado à história, com o necessário recuo que nos permitisse, por exemplo, comparar FHC a Pedro II, a Campos Salles, a Getúlio Vargas, a JK, a Castello Branco ou a Geisel, por exemplo, para mencionar alguns que me parecem dispor da postura de estadistas. Todos os demais são menores, para não dizer medíocres, quando não foram nefastos para o país ou a economia brasileira.
Mas estou em total desacordo com essa postura de incensar FHC, fazendo-o responsável pelo que não é responsável.
Assim, discordo frontalmente de Celso Lafer quando diz que:
"Fernando Henrique é um raro caso, no Brasil e no mundo, de um grande intelectual que foi bem-sucedido na política, alcançando a Presidência da República no primeiro turno, por voto majoritário, em duas sucessivas eleições."

FHC não foi eleito duas vezes turno no primeiro por ser intelectual, e sequer por ser político. Ele foi eleito porque resolveu o drama nacional da inflação e da erosão monetária, drama que abatia a sociedade brasileira nas décadas anteriores.
Mas, alto lá, quem fez isso foi sua equipe econômica, o punhado de economistas que soube conceber, implementar e adaptar o Plano Real, em suas diversas fases, desde 1993 até 1999.
O mérito de FHC foi o de saber reunir essa equipe e concordar com ela, mesmo não entendendo direito a essência do plano: ele confiou nos economistas e defendeu o plano junto ao presidente Itamar (que ainda assim atrapalhou sua consecução mais bem sucedida ao obstaculizar um necessário ajuste fiscal que deveria ter sido feito concomitantemente com a implantação do real, e não o fez porque, como todo político, detesta ser impedido de gastar).
Ou seja, quem elegeu FHC foi a equipe econômica.
Se ouso reconhecer algum mérito em FHC foi esse de compreender que o Brasil precisava terminar com as loucuras econômicas anteriores, mas como disse, a responsabilidade principal incumbe aos economistas, não a ele.
O que FHC fez de digno foi criar um mecanismo de transição entre governos, oferecendo as melhores condições a Lula para começar a governar.
Este, na sua esperteza política, preservou a íntegra da política econômica anterior, mesmo demonizando-a em seu discurso da "herança maldita", o que apenas revela seu caráter (que vocês podem classificar com o adjetivo que quiserem).
Ou seja, FHC passa para a história certamente como um presidente de grandes qualidades, mas seu principal mérito, e o que lhe fez ser eleito e reeleito, isso pertence à equipe econômica.
Nenhuma versão correta da história poderia eludir este fato.
Paulo Roberto de Almeida

FHC aos 80
Celso Lafer
O Estado de S.Paulo, 18 de junho de 2011

Fernando Henrique Cardoso chega aos 80 anos em grande forma e na plenitude das qualidades que dele fizeram um grande intelectual e um grande homem público. É o nosso elder statesman e a sua palavra tem prioridade na agenda de discussão nacional. Tem prioridade porque é dotada de autoridade, que se caracteriza por ser menos que um comando, mas mais do que um conselho, na definição de Mommsen. Essa autoridade é fruto do seu percurso e do seu legado, que aqui destaco celebrando o seu aniversário e, ao mesmo tempo, contrapondo-me à damnatio memoriae com a qual o presidente Lula, o PT e os seus simpatizantes, inclusive no mundo acadêmico, buscaram infligir à sua trajetória.

A damnatio memoriae é um instituto do Direito Romano por meio do qual um sucessor condenava a memória do seu antecessor, buscando apagar a sua imagem e eliminar o seu nome das inscrições, considerando-o um inimigo ou uma vergonha para o Estado romano. No Brasil, esse é o objetivo da retórica da "herança maldita", tal como persistentemente aplicada à qualificação da sua gestão presidencial por seu sucessor e acólitos. Ressalvo que dessa postura se afastou a presidente Dilma Rousseff, ao saudar com civilidade republicana os 80 anos de FHC e ao identificar os seus méritos.

Fernando Henrique é um raro caso, no Brasil e no mundo, de um grande intelectual que foi bem-sucedido na política, alcançando a Presidência da República no primeiro turno, por voto majoritário, em duas sucessivas eleições. Usualmente os intelectuais, na medida em que se interessam pela política, ou se dedicam à crítica do poder ou a assessorar o poder. FHC, além de ter desempenhado esses dois papéis, exerceu o poder no vértice do sistema político brasileiro. Logrou alcançar e exercer o poder em função de certas características de personalidade que merecem o elogio, e não a condenação de uma ressentida damnatio memoriae.

FHC foi afirmando a sua liderança desde os tempos da universidade, o que lhe valeu o reconhecimento dos seus pares. São componentes do modo de ser da sua liderança a agilidade e a rapidez da inteligência, que os gregos qualificam de anquinoia, e o dom de gentes, da prazerosa civilidade do seu trato com as pessoas..

A política requer coragem, que é uma "virtude forte" necessária para o ofício de governar e vai além das virtudes requeridas para lidar com as necessidades da vida e as exigências da profissão. É o sentimento de suas próprias forças, como a define Montesquieu. É saber manter a dignidade sob pressão, nas palavras de Hemingway, no confronto com o perigo e as dificuldades. Coragem, nos precisos termos das definições acima mencionadas, nunca faltou a FHC, como posso testemunhar ao tê-lo visto enfrentar seja a aposentadoria compulsória na USP por obra do arbítrio do regime militar e o bafo da repressão nos momentos iniciais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), seja, em outro plano, no exercício da Presidência, a desestabilizadora crise do câmbio de 1999, que pôs em risco o Plano Real. Teve, para dar outro exemplo, a coragem de assumir o Ministério da Fazenda, no governo Itamar Franco, para enfrentar o imenso desafio de debelar anos de uma inflação desenfreada e corrosiva. A coragem também passa pela firmeza de lidar com temas controvertidos e se contrapor ao seu grupo político e à tendência majoritária da opinião pública. É a nota do seu empenho atual na discussão do problema das drogas, que mostra que os anos não enfraqueceram a sua vocação de combate.

O juízo político é a capacidade de perceber as características que singularizam um contexto. Beneficia-se da visão geral que o conhecimento oferece, mas requer a competência para identificar, numa dada realidade, as particularidades do que pode ou não resultar. FHC, na sua trajetória, foi capaz de olhar o distante e observar o perto, nas palavras de Goethe. Desse modo, como intelectual apto a se orientar na História, sempre teve visão global para entender o conjunto das coisas no Brasil e no mundo e, por obra da qualidade do seu juízo político, a sensibilidade para captar o espaço do potencial das conjunturas com que se confrontou. Pôde, assim, exercer, para falar com Albert Hirschman, a sua íntegra "paixão pelo possível".

Assegurou, na sua Presidência, republicanamente, a governabilidade democrática de um país complexo como o Brasil, por meio de uma liderança aparelhada por um superior juízo político que soube dosar harmonização com inovação e transformação. Logrou, desse modo, orientar o País a partir do Estado e mudar a sociedade brasileira, pois guiado pelo seu sentido de direção construiu um novo patamar de possibilidades para o nosso país.

FHC transformou a sociedade brasileira com o Plano Real, que, com a estabilidade da moeda, assegurou a previsibilidade social das expectativas e promoveu a redistribuição de renda. Impôs racionalidade administrativa com a legislação da responsabilidade fiscal e as privatizações. Garantiu a solidez do sistema bancário com o Proer. Inaugurou o novo alcance das redes de proteção social com o Bolsa-Escola. Empenhou-se na institucionalização da democracia, no fortalecimento da cidadania e na valorização dos direitos humanos. Deu destaque à agenda ambiental. Elevou, com as suas realizações e sua presença pessoal, o alcance do papel do Brasil no mundo. Em síntese, o seu legado é o de um grande homem público que promoveu a ampliação do poder de controle da sociedade brasileira sobre o seu destino, de que se vem beneficiando, de maneira duradoura, o nosso país.

Celebrar o seu aniversário é uma oportunidade de celebrar a sua obra e a sua pessoa e, no meu caso, de afirmar que é um privilégio fruir a sua convivência e, assim, saudar, com amizade e admiração, os seus jovens, sábios e democraticamente bem-humorados 80 anos.

PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC

3 comentários:

amauri disse...

Boa noite Paulo Roberto!
Antes do plano Real o Brasil tinha um inflação alta e uma baixa divida publica. Desde então a inflação foi controlada porem, a divida publica nunca parou de aumentar.
O plano Real foi a troca de emissão de moeda por emissão de titulos publico? abs

Paulo Roberto de Almeida disse...

Amauri,
Voce se engana. A divida alta foi provocada pela tremenda bagunça fiscal que havia historicamente no Brasil antes o Plano Real, acelerada nos anos imediatamente anteriores.
O governo FHC teve a coragem de trocar todas as dividas estaduais e municipais por novos titulos, carregando a velha divida na Uniao (remunerada a Selic, portanto alta) e dando aos estados e municipios novos titulos a 30 anos com juros mais baixos (ainda que com correcao em indices de inflacao, sempre melhores e mais baixos que a Selic.
Ou seja, ainda que a divida publica total, por causa disso, tenha passado de 30 para 60 pc do PIB (e era normal que isso ocorresse justamente pelo programa descrito acima, e ela seria muito maior se nao tivesse havido privatizacoes, que abateram ao menos uma parte dos enormes buracos deixados pelos estados, bancos estaduais e municipios irresponsaveis), o governo Lula recebeu esse assunto zerado, ou pelo menos equacionado, e deveria ter se empenhado em reduzir a divida aos patamares anteriores, ou seja, na faixa de 30 a 35 pc do PIB.
Nao so não fez isso, como aumentou tremendamente a divida.
Ou seja, está cometendo a mesma irresponsabilidade de antes do Plano Real, e reindexando a economia alem disso.
Um crime contra o pais...
Paulo Roberto de Almeida

amauri disse...

Obrigado pela resposta. A divida publica que tenho informação é esta:
A dívida total líquida saltou de R$ 87,8 bilhões em dezembro/94 (25,13% do PIB) para R$ 1.103,9 bilhões em dezembro de 2002 (80,94% do PIB). Crescimento real em relação ao PIB de 222,05%.

Considerando também a dívida externa do setor privado de US$ 123,2 bilhões, ou R$ 359,9 bilhões (26,39% do PIB), a dívida total: interna, externa, pública e privada é da ordem de R$ 1.463,8 bilhões (107,33% do PIB).

Cabe sempre ratificar o desprezo com que é tratada a mais grave das dívidas, a da União, em dezembro de 2002 no valor de R$ 282,1 bilhões, em poder do Banco Central (conhecida como vale de caixa), sendo na verdade dívida não absorvida pelo mercado financeiro, sendo carregada ilegalmente pelo Banco Central do Brasil, na verdade aumento disfarçado de base monetária. Esta anomalia econômica somente existe no Brasil onde o Banco Central é subordinado ao Poder Executivo.

Do quadro da dívida líquida cabe destacar ter o Tesouro Nacional haveres de R$ 380,6 bilhões junto aos Estados e Municípios e de R$ 110,2 bilhões junto à Autarquias, Fundos e Fundações.
Dados do blog Ricardo Bergamini.