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terça-feira, 21 de junho de 2011
A Revolucao Russa: vinte anos depois (2) - Paulo Roberto de Almeida
Não altero uma linha, uma palavra sequer...
Paulo Roberto de Almeida
A Próxima Revolução Russa
Paulo Roberto de Almeida
Movement for Socialist Renewal: Manifesto for a new USSR
The Guardian, August 3, 1986, pp. 9-11
A recente divulgação, no exterior, do manifesto do “Movimento de Renovação Socialista”, supostamente de “oposição clandestina” ao Partido Comunista da União Soviética, incita a uma série de questões sobre a natureza do texto e a veracidade de seu terrível diagnóstico sobre a situação efetiva da segunda maior potência do planeta. Mais do que tudo, porém, o documento levanta o problema, não de sua autenticidade, mas de sua verdadeira autoria. A informação do jornalista Martin Walker, correspondente em Moscou do The Guardian de Londres, que primeiro o publicou em sua edição de 3 de agosto de 1986, segundo a qual o texto foi elaborado com a participação de altos funcionários do próprio PCUS, foi considerada como correta por alguns especialistas em assuntos soviéticos.
Minha tese é a de que não apenas isso é verdadeiro, como também de que o próprio documento é “oficial”, isto é, que ele foi elaborado pela mais alta cúpula do Partido, senão pelo próprio Gorbatchev, pelo menos sob sua direta inspiração e orientação. Não há, por certo, evidências diretas e comprobatórias dessa “chancela oficial”, mas alguns indícios claros permitem sustentar, ainda que indiretamente, esta afirmação. Muitos deles são substantivos, ou seja derivam do teor mesmo desse “manifesto”, outros são de natureza formal e se prendem a maneira pela qual o documento foi dado a público. A primeira e importante questão foi formulada pelo próprio porta-voz do Ministério das Relações Exteriores soviético, Guenady Guerassimov: “Por que ele foi aparecer agora?”.
A resposta mais simples e direta é esta: para assentar o seu poder e transformar a imensa estrutura carcomida em que se converteu a União Soviética, Gorbatchev precisa enfrentar um potente inimigo: a própria máquina do Partido Comunista. Essa nova revolução terá de ser conduzida nos “corações e mentes” dos russos, antes que se possa tomar de assalto a fortaleza medieval do Estado soviético.
Essa luta é antiga e está ligada a própria história da modernização do País: Pedro, o Grande, e o próprio Lênin enfrentaram, cada qual em seu tempo, o desafio do atraso social e da paralisia estatal. Lênin, aliás, é diretamente invocado pelos autores do manifesto atual, como quando, confrontado às tarefas práticas de dirigir o novo Estado, ele colocava as alternativas oferecidas a Rússia pós-revolucionária: “ou sucumbir ou imitar o exemplo dos países mais avançados e alcançá-los economicamente”.
Andropov pretendeu sacudir a letargia que tinha contaminado o Partido e o aparelho de Estado depois de quinze anos de “brejnevismo” triunfante (que poderia ser definido como a “etapa superior” do burocratismo soviético). A enfermidade e seu rápido passamento impediram-no de balançar o edifício. Gorbatchev parece possuir o que faltou a seu antigo mestre no KGB: tempo e saúde. O novo líder soviético sabe que a simples mudança nos quadros dirigentes não é suficiente para levar adiante a gigantesca tarefa da modernização econômica e social da União Soviética: o remanejamento nos serviços e nas chefias já parece, aliás, ter atingido seus limites operacionais. Trata-se agora de conduzir uma verdadeira revolução conceitual nos sacrossantos princípios organizativos do “comunismo” russo. É para esta verdadeira revolução que aponta a divulgação do manifesto do “Movimento de Renovação Socialista”.
Por que afirmo que esse manifesto é, na verdade, da mais alta cúpula dirigente soviética e não de um suposto grupo de “oposição interna”? Uma análise, ainda que sumária, de suas propostas permite constatar que nenhuma, absolutamente nenhuma, das mudanças nele sugeridas está em contradição com os objetivos abertos ou velados do atual grupo no poder.
A preocupação mais evidente dos “autores” do documento é com o atraso técnico-científico e econômico da sociedade soviética e o enfraquecimento estratégico-militar daí decorrente. Invocando ritualmente, em diversas passagens, o exemplo de Lênin e da NEP de orientação neo-capitalista, o texto sublinha a necessidade de observar-se o funcionamento das “leis econômicas” (não do socialismo, mas de mercado, entenda-se bem), abrindo espaços à autonomia das empresas, à iniciativa individual na agricultura e no comércio e aos princípios do lucro e dos investimentos privados.
Em seu programa econômico, a suposta “oposição socialista” trai candidamente o cordão umbilical que a liga à suprema direção do Estado: “Na esfera econômica, o programa do MRS prevê o dobro da produção industrial nos próximos dois ou três anos e a triplicação da produção agrícola; uma significativa redução na importação de grãos e outros produtos e a provisão de alimentos básicos para toda a população do país; o crescimento do comércio, dos serviços e bens de consumo nacionais para o público, no mesmo padrão dos países civilizados”. Trata-se seguramente da primeira “oposição” de que se ouviu falar na comunidade socialista que tem objetivos produtivistas a curto prazo.
Enfrentando corajosamente a grave crise de legitimidade política do socialismo autoritário, o manifesto é extremamente claro em suas propostas de liberdades civis e de direitos fundamentais: liberdade de imprensa, de expressão, supressão da perseguição política e religiosa e, sacrilégio supremo, possibilidade de criação de organizações políticas alternativas. A reivindicação “burguesa” do pluralismo político é, ainda aqui, considerada como “funcional” para a sobrevivência do sistema: “A competição entre essas organizações para apresentar o melhor programa de ação é do interesse de nossa classe dominante – os trabalhadores, os camponeses e os intelectuais – [e] seria um grande passo no desenvolvimento da democracia soviética, com todos os cidadãos desfrutando de um genuíno governo socialista-democrático”.
O que o programa propõe, portanto, é que o Estado realize, dois ou três séculos depois, a “missão histórica” das revoluções burguesas, instituindo a liberdade política e a democracia formal. O manifesto de “oposição” não poderia, assim, ser mais “situacionista”: mudar a forma da dominação para melhor preservar a continuidade do regime.
É contudo no setor da política externa que a “oposição interna” mais revela seu oficialismo e sua adesão aos princípios fundamentais do imperialismo e do hegemonismo, duas constantes da política internacional russa, czarista ou soviética. Depois de constatar o colapso da “fraternidade socialista” e a perda de autoridade da URSS no próprio campo socialista, o manifesto condena a carta do “terceiro-mundismo”, culpado de não ter obtido “nenhum dividendo político ou econômico” para o país. Mais ainda, o documento critica a diplomacia e a política externa pelas “interpretações errôneas” sobre as causas da tensão mundial, colocando-se totalmente na linha de recente artigo do ex-embaixador soviético nos EUA, Anatoly Dobrinin, publicado na revista Kommunist de junho último. O atual chefe do Departamento Internacional do PCUS tem a audácia de propor um “novo pensamento político”, reconhecendo que a tentativa pode dar lugar “a vivas discussões e a dolorosas divergências”.
O objetivo último dos autores do manifesto – e nisso eles se alinham com a postura atual da diplomacia soviética – parece ser o estabelecimento, via negociações, de um “neo-globalismo”, através do qual as tensões com o imperialismo rival seriam reduzidas e a liderança soviética restabelecida em seu próprio campo. Coerentemente, a “oposição interna” afirma que a adoção de seu programa “aumentará o poderio militar e econômico da URSS e consolidará o sistema socialista mundial”. Em resumo, trata-se do primeiro “samizdat” que padece do incurável mal (russo) do chauvinismo de grande potência.
Não é apenas através dos objetivos propostos que o manifesto da “oposição interna” trai seu oficialismo. Uma análise formal do discurso revela a marca indefectível da terminologia oficial (ou seja, o jargão ortodoxo), o apelo legitimador à autoridade de Lênin (invariavelmente citado no contexto “reformista” de 1921) e o uso adequado de informações estatísticas sobre a URSS e de referências de atualidade política e jornalística internacional (apenas compreensíveis para uma elite ilustrada de burocratas soviéticos).
Todo o manifesto, aliás, só pode ser lido numa perspectiva comparada: a do atraso em relação ao Ocidente. A suposta “oposição clandestina” preocupa-se, por exemplo, com a dívida externa da URSS, “colocando-a em terceiro lugar como nação devedora, atrás somente do Brasil e do México”. Mais ainda: ela adverte para o surgimento de uma oposição armada “podendo visar altos oficiais da KGB”. Não há mais dúvida: trata-se do primeiro manifesto de oposição de orientação abertamente “tecnocrática”, cujos objetivos são, declaradamente, os de reformar o sistema, aumentar-lhe a eficiência, preservar as conquistas da URSS como uma grande potência e, sisntomaticamente, assegurar a sobrevivência física dos próprios dignitários do regime.
Num sistema esclerosado, como é o soviético atualmente, as mudanças propostas pela “oposição clandestina” só podem mesmo ser conduzidas por via revolucionária, ainda que por meio de uma “revolução pelo alto”. As reformas e inovações têm de ser feitas contra a máquina do Partido e para isso é preciso, em primeiro lugar, quebrar-lhe o monopólio e a onipotência.
Se estivéssemos nos tempos de Stalin, a questão da mudança na base social do regime seria equacionada com a substituição física, em escala maciça, dos responsáveis partidários. Nas condições atuais, o remanejamento da máquina burocrática passa por um grande estremecimento nos fundamentos sociais do regime, uma sacudidela capaz de romper a letargia generalizada que tomou conta do corpo social.
O programa parece ser claro: modificar as bases conceituais do sistema, tomar de assalto o aparelho e alterar radicalmente suas regras de funcionamento. A tarefa não pode de forma alguma ser conduzida pelos propagandistas habituais do regime: jornalistas, ativistas partidários, lideranças políticas. Isto por uma razão muito simples: eles não têm mais nenhuma credibilidade, seja ao nível do público em geral, seja no seio da imensa burocracia que vive desfrutando da engrenagem. O caráter “subversivo” da mensagem é, nesse caso, a condição de sua credibilidade e eficácia ulterior.
A própria forma de sua divulgação assume no caso uma função operacional. A exportação “clandestina” do texto, por meio de um jornalista ocidental, nos faz lembrar o episódio do famoso “Relatório Kruschev", em 1956, que marcou o começo da desestalinização. As lideranças soviéticas têm uma longa experiência em se servir da imprensa ocidental para seus objetivos táticos. Veiculado pelas rádios ocidentais dirigidas a URSS, o programa será muito melhor aceito e difundido internamente. Desde há muito que a prática do “samizdat” se faz por meios eletrônicos, sobretudo a cassete individual. A recente tragédia de Chernobyl gerou uma forte comoção social, tendo a liderança mais esclarecida canalizado o protesto para os veículos oficiais de comunicação, imprensa e rádio sobretudo. O caminho está aberto para a conquista da liberdade de expressão pelo público.
Ignazio Silone, um dos primeiros renegados do socialismo e dissidente do Comintern, não estava de todo errado ao prever, nos anos trinta, a natureza do enfrentamento final sob o socialismo: entre comunistas de facções rivais. A próxima revolução russa será, em consequência, uma revolução do Estado contra o Estado, ou seja uma revolução pelo Estado e para o Estado.
Ainda estamos na fase de seleção dos competidores. A “oposição interna” do PCUS, isto é, o próprio Gorbatchev, já escolheu seu campo: o do “socialismo com liberdade”. A próxima etapa deverá assistir à luta entre esses grupos pelo controle da máquina do Estado. O programa do grupo ascendente parece ser claro: recompor as bases do poder soviético pela introdução dos princípios de mercado no sistema econômico. Marx, parafraseando Hegel, dizia que a história se repete, na segunda vez como farsa. Por ironia da história, assistiremos na URSS, setenta anos depois, à vitória da “revolução burguesa” sobre a “revolução proletária”.
[Brasília, 07.07.86]
[Inédito; Relação de Trabalhos n° 129]
129. “A Próxima Revolução Russa”, Brasília, 7 setembro 1986, 5 pp. Artigo sobre o manifesto do grupo dissidente soviético “Movimento de Renovação Socialista”, publicado originalmente por The Guardian Weekly (03.08.86) e, no Brasil, pela Folha de São Paulo (31.08.86). Inédito.
Um comentário:
A Revolução Russa fora um movimento nado-morto...o que demorou foi "combinar com os russos"!
Vale!
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