Um blog a serviço do conhecimento e da informação sobre o Oriente Médio:
A autora, Carmen Lícia Palazzo acaba de postar, hoje, um artigo sobre xiitas e sunitas que está muito bom (embora eu seja suspeito para dizer...).
Existe uma coluna, à esquerda, que se
atualiza automaticamente com notícias sobre o Oriente Médio (cortesia do
serviço do blog).
http://carmenlicia.blogspot.com/
Aliás, eis o artigo mencionado:
Carmen Lícia Palazzo (5/09/2011)
A
análise dos conflitos entre as duas principais correntes muçulmanas,
sunitas e xiitas, procurando entendê-las numa perspectiva histórica de
longa duração, permite lançar algumas luzes no complexo quadro de
violência que retrata o Oriente Médio contemporâneo. Múltiplos são os
fatores que têm levado a guerras na região, mas a luta dentro do próprio
Islã, com seus desdobramentos merece uma atenção especial na medida em
que se faz presente nas mais diversas realidades regionais.
A
fratura interna no mundo muçulmano ocorreu muito cedo, já no século
VII, como conseqüência de uma guerra civil na disputa pela sucessão do
califado. Após a morte do quarto califa, Ali, primo e genro de Maomé, a
comunidade (”umma”) cindiu-se em dois grupos ou facções. Aqueles que
defendiam que os candidatos à sucessão fossem necessariamente membros da
família do Profeta ficaram conhecidos como os partidários de Ali
(”xiit’Ali”). No entanto venceu o conflito a facção que havia se
insurgido contra a descendência familiar e que pregava a escolha do
califa entre os membros mais respeitados da “umma” e que melhor
representassem a tradição (”sunna”). Aqueles que mais tarde seriam
denominados xiitas, derrotados, não apenas eram vistos como
contestadores da ordem vigente mas tornaram-se também suspeitos de
conspirar contra o poder. O trágico fecho da disputa sucessória foi o
assassinato, no ano de 680, de Hussein, filho de Ali, em Karbala (atual
Iraque). Consolidava-se, assim, a hegemonia sunita mas, ao mesmo tempo,
criava-se um mártir. Ainda hoje a morte de Hussein ecoa na memória
coletiva das comunidades xiitas, erguendo-se como um símbolo da opressão
dentro do próprio Islã.
Muitos
foram os percalços e as lutas que envolveram as duas principais facções
muçulmanas no decorrer dos séculos. É importante lembrar que, apesar da
ênfase que costuma ser dada aos aspectos religiosos das disputas, no
rompimento do século VII o que estava em jogo era essencialmente uma
questão de ordem política. Naquele momento não havia diferença
significativa de dogma e nem de prática religiosa. Mas com o passar do
tempo, os rituais de um e de outro grupo foram se distanciando e os
xiitas, minoritários no conjunto do Islã, desenvolveram uma cultura do
martírio e uma espiritualidade carregada de emoções, muito visível no
chamado festival de Ashura, quando é anualmente evocada a morte de
Hussein.
Com exceção do Irã onde o xiismo, a partir do século XVI,
passou a se constituir em religião oficial, com o apoio da dinastia
safávida, em outros países tem sido registrada uma história de
discriminação e muitas vezes de perseguições, especialmente no Líbano,
na Arábia Saudita, no Bahrein, no Kuwait e no Iraque na época de Saddam
Hussein.
O
grau extremo de violência anti-xiita por parte do ditador iraquiano
encontra-se bem documentado já que o seu partido, o Baath, realizava
abertamente perseguições sistemáticas cujo intuito era o de disseminar o
medo. Um dos exemplos mais marcantes de tais atos foi o assassinato do
respeitado aiatolá Baqr al-Sadr que, antes de ser executado, em 1980,
foi obrigado a presenciar o estupro e a morte de sua própria irmã.
O
fosso existente entre sunitas e xiitas iraquianos tornou-se quase
intransponível à custa da crescente violência. Assim, por mais que,
atualmente, o moderado e pragmático aiatolá Sistani se esforce no
sentido de lembrar que ambas as facções pertencem a uma única raiz
islâmica, o contencioso político entre elas continua muito grande. E
amplia-se o espaço para as ações da Brigada Mahdi, liderada por Muqtada
al-Sadr, portador de uma mensagem de revolta, pouco afeito ao diálogo e
ancorado em representações passionais do xiismo, como a do retorno do
Imã oculto, o Mahdi.
Outro
dado importante a ser levado em conta quando se analisa o
relacionamento entre sunitas e xiitas no Iraque e as possibilidades de
um entendimento duradouro entre ambas as partes é o da discriminação
étnica. Há muitos iranianos entre a comunidade xiita, principalmente na
região de Karbala, Najaf e Kufa, e a elite árabe do país sempre os
tratou como cidadãos de segunda categoria, acentuando ainda mais as
diferenças numa sociedade onde o federalismo poderia ser uma solução
viável para a reconstrução do Estado.
Ainda que a chamada questão curda
tenha conduzido aos dramáticos ataques de extermínio por parte de Saddam
Hussein e envolva também problemas de fronteiras e de relacionamento
com países vizinhos, são as disputas entre xiitas e sunitas que maiores
dificuldades podem trazer para a consolidação de um governo unido e
administrativamente eficaz. E, se por um lado, a tão temida ingerência
do Irã é algo a ser observado no decorrer do processo de maiores
conquistas políticas por parte dos xiismo iraquiano, por outro lado não
seria demais lembrar que, em 1991, a Arábia Saudita conseguiu convencer
os Estados Unidos de que estes não deveriam apoiar uma revolta xiita que
tinha como objetivo a derrubada de Saddam.
O
frágil equilíbrio da política interna iraquiana fica, pois, dependente
não apenas de seus próprios problemas mas também da atuação de duas
grandes forças regionais, a dos aiatolás iranianos e a do imanato
wahabita que é o esteio da casa de Saud. E bem maior do que a
preocupação com os inflamados discursos xiitas deveria ser a atenção
dada às ações do sunismo, o qual, no Iraque, tem buscado apoio nos
grupos fundamentalistas que consideram o xiismo uma heresia do Islã.
A
invasão americana inverteu a ordem no poder abrindo espaço para uma
representação xiita mais justa no governo mas não levou em conta as
conseqüências que inevitavelmente se seguiriam após o desmantelamento do
baathismo, ou seja, o enfraquecimento das elites sunitas moderadas e
dos componentes laicos na política do Iraque. Assim, a tendência atual é
a de que o sunismo, antes pouco afeito, no país, a uma religiosidade
estrita, agora passe a estreitar os laços com o wahabismo saudita e com
os chamados neo-salafistas da Al Qaeda, que fornecem uma ideologia
jihadista de luta para a recuperação do poder perdido.
Partilhando o
mesmo livro sagrado, sunismo e xiismo foram, ao longo dos séculos,
aprofundando o rompimento que os separou nos primórdios do Islã. A tal
ponto que, atualmente, uma análise acurada de ambas as correntes deixa
claro que as diferenças são mais significativas do que as semelhanças.
No
caso do Iraque, qualquer proposta para uma paz efetiva terá que levar
em conta tanto a enormidade da fratura quanto o crescimento do
componente religioso. Ou seja, a maneira como política e espiritualidade
interagem de modo a enfatizar não apenas o discurso do messianismo
xiita, que vem assumindo grandes proporções na região mesopotâmica, mas
também o recrudescimento do fundamentalismo sunita. Se, inicialmente, as
diferenças de caráter religioso eram pouco significativas na divisão
entre os dois grupos, hoje em dia, e principalmente no Iraque, etnia e
religião são elementos incontornáveis na busca da construção da Nação.
Um comentário:
Excelente, post de Carmen Licia, professor.
Ficou claro para mim a questão étnica e religiosa que fundamenta toda questão iraquiana.
Concordo que uma solução, diante do exposto pela autora, seria o modelo federativo de Estado. Uma alternativa viável que respeitaria as desigualdades religiosas regionais, atenuando os riscos de conflitos separatistas.
Lamentável que uma república democrática laica seja algo impossível por aquelas terras de Alá...
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