Memórias do
Barão do Rio Branco (1)
Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida,
a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.
Por
que decidi escrever estas memórias?
Escritores são, em geral, fantasistas
notórios; alguns deles, inclusive, chegam a ser mentirosos, o que, aliás, é
próprio do seu ofício. Por isso, decidi rabiscar eu mesmo estas linhas,
resumindo, embora a largos traços, a minha vida. Mirando-a retrospectivamente, não
posso deixar de julgá-la bem-vivida, até agraciada pela Sorte, essa madrasta
que nos persegue os passos, pensando causar-nos troças a cada etapa de nosso
itinerário terrestre. Mas não pretendo lhe deixar esse prazer: ubique, eu mesmo cuido de minhas
memórias, sobretudo se elas tratam da pátria!
Por que o faço agora? Porque, justamente,
quero registrar de meu próprio punho uma longa trajetória de vida, antes que
algum desses áulicos que me seguem fielmente no meu reduto diplomático, ou que
alguns, dentre os muitos jornalistas que me têm apreço nos pasquins e mesmo nos
jornalões cariocas, decidam empreender, eles mesmos, alguma biografia não
autorizada. Qualquer que seja seu caráter, simpática ou não ao que venho
fazendo para engrandecer a pátria, acredito que ela não será muito fiel ao que
penso deva ser um relato seletivo da minha vida e das minhas atividades à
frente do único ministério capaz de fazer orgulho a um Brasil nem sempre
admirado no cenário internacional. Mas, confessemos, cá entre nós: esta nossa
Casa, que nos velhos tempos do Império se chamava Repartição dos Negócios Estrangeiros,
de tão nobre memória, sempre foi a maior admiradora de si mesma...
Também o faço porque alguns dos meus
colaboradores, e até os senadores da República, vêm se mostrando incomodados
com a falta de relatórios da minha gestão à frente do Itamaraty, uma decisão
que tomei desde o dia da posse, naquele, agora longínquo, dia de dezembro de
1902, numa das mais importantes inversões da minha já longa trajetória de vida.
Sete anos atrás, não sabia se era justa a minha decisão de trocar a absorvente vida
diplomática na capital da Alemanha imperial por esta cidade ainda cheia de
mosquitos, de doenças endêmicas, com sua quota excessiva de miasmas, o que me
obriga a subir regularmente a serra em direção ao meu chalé de montanha.
Não pretendo desculpar-me com meus colegas
diplomatas pela falta dos relatórios anuais: pelo menos não corro o risco de lhes
amarrotar a autoestima. Por isso, deixo o julgamento definitivo de meus atos aos
historiadores do futuro, que por certo saberão encontrar o que buscam nos
muitos documentos já acumulados em minha gestão; talvez até encontrem estas
memórias – que não sei bem quando terminarei – entre as pilhas de papéis que
locupletam, na mais perfeita desordem, as várias mesas de meu gabinete. On n’est jamais si bien servi que par
soi-même. Mais, passons...
Também quero deixar agora consignadas,
neste mês de abril de 1909, as razões que me levaram a recusar, de maneira
peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma candidatura,
praticamente vitoriosa, à presidência da República, certamente o cargo mais
honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer época.
Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum tempo
do futuro, que não tenho a menor vontade – não digo de disputar eleições, já
que estas, no Brasil, são feitas a bico de pena, e o candidato saído da convenção
dos congressistas já é uma aceitação nacional – de assumir um cargo que me
obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que considero
particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para conduzir
um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena internacional.
O próximo presidente da República será,
provavelmente, esse marechal teimoso como uma mula, mas timorato nas decisões, e
que hesitou diversas vezes em lançar-se ao cargo, quando todos sabem que minhas
preferências – a despeito das diferenças que acumulamos desde a conferência da
Haia – estariam naquele brilhante advogado baiano, arrogante e vaidoso em suas
pretensões de jurista internacionalista, ainda assim melhor preparado do que a
mula fardada que se prepara para dirigir um país difícil como o Brasil. E
talvez eu já não tenha mais forças para fazê-lo...
Minha aspiração – sem pretender chocar os
que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente – é
a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem
preparados para o cargo, tribunos competentes e educados, estadistas
comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de
corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal
que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que
procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis. No
momento, quero apenas estar em paz com minha consciência, mesmo sabendo que
minha recusa em aceitar a candidatura à presidência praticamente colocará nesse
mais alto cargo da República, em lugar de um jurista pretensioso, um militar
que pode aprofundar o desmantelamento de nossas instituições de Estado, propenso
como ele parece ser a continuar com essas viciosas políticas de intervenções
nos estados. Não quero ser parte dessas vergonhas nacionais e pretendo encerrar
minha gestão tão pronto o presidente Affonso Penna apenas termine a sua. Tenho
ainda a resolver negociações já em curso de tratados de limites com o Peru e com
o Paraguai, e antecipo uma concessão adicional ao Uruguai, para dar por
encerrada minha obra de fixação definitiva de todas as nossas fronteiras. Depois
disso abandono fraques e polainas, tão incômodos no calor carioca, e coloco definitivamente
as chinelas...
O
que tenho a dizer sobre a minha maior obra diplomática?
Não me cabe, em causa própria, relatar tudo
o que fiz, desde a primeira questão de arbitragem contra nossos vizinhos
platinos, passando por todos os outros casos de limites, arbitrados ou
negociados, ao longo dos primeiros anos da República, ou como ministro da mesma
nos últimos sete anos. A vida me deu muito mais do que eu poderia querer, já
que minha intenção, enquanto ainda estava em Liverpool – por obra e graça da
princesa regente, diga-se de passagem, pois seu pai imperador nunca me designou
para nada –, era juntar dinheiro suficiente para comprar um fazendola de café
no interior de São Paulo, juntar os meus livros de história e passar o resto
dos meus dias especulando com o nosso “ouro negro” e, finalmente, terminar a
minha prometida história militar e diplomática do saudoso Império.
Quis a História, essa outra madrasta sempre
misteriosa e tão cheia de surpresas, que não fosse assim: a morte infeliz do
primeiro negociador do território das missões me tirou de um plácido
esquecimento em Liverpool – na verdade, trocada frequentemente pela mais
vibrante capital francesa –para me jogar no centro da mais importante questão
de limites a dividir castelhanos e portugueses desde os tempos coloniais,
problemas nunca resolvidos satisfatoriamente pelos tratados de Madri, de El
Pardo e Santo Ildefonso. Além da justeza das nossas posições, bem fundamentadas
na documentação colonial – parte da qual coletada décadas antes por Ponte
Ribeiro em suas andanças sul-americanas – creio que o Brasil foi beneficiado
pela simpatia natural que o presidente da grande república do Norte tinha pela
sua contraparte no hemisfério meridional. Depois, apoiado no meu primeiro
sucesso diplomático, fui novamente convocado a servir ao país, desta vez
enfrentando os franceses, na chamada questão do Oiapoque: confesso ter me
utilizado de todos os meios disponíveis, inclusive os menos confessáveis, facilitados
pelo amigo Emilio Goeldi, em Berna, para colocar o presidente da neutra
Confederação do nosso lado, a despeito dos laços tradicionais de amizade que
uniam a Suíça à França vizinha, em especial desde os tempos de Napoleão.
O cansaço físico e o desejo de, por uma
vez, gozar de uma vida diplomática normal – já que eu tinha sido apenas cônsul
por longos anos – me impeliram a recusar uma nova arbitragem nas fronteiras do
norte, desta vez contra a pérfida Albion, que pretendia abocanhar boa parte do
nosso território amazônico para incorporar à sua Guiana. Indiquei para a tarefa
o meu amigo dos tempos monárquicos, Quincas Nabuco, e procurei ajudá-lo em tudo
o que estivesse em meu alcance. Mal sabia eu que a aceitação do rei da Itália como
árbitro iria trazer-nos tantos dissabores, já que Vitório Emanuel agiu franca e
desonestamente em favor da Grã-Bretanha, subtraindo-nos milhares de quilômetros
quadrados a que tínhamos direito, pela força dos braços e pernas dos nossos exploradores
lusitanos e pelos traçados detalhados dos cartógrafos que lhes seguiram.
Foi por isso que no próximo caso que se me
apresentou – já nos preparativos para assumir o ministério, a que
relutantemente acedi depois de muita insistência de Rodrigues Alves – decidi
não mais recorrer a essas arriscada arbitragens, preferindo entabular
negociações diretas com os volúveis bolivianos, que nesses tempos andavam
cedendo sua soberania nacional a sindicatos de aventureiros imperialistas. Para
tanto, reuni, na tarefa de ajudar-me a construir o caso do Brasil, uma penca de
jovens diplomatas ambiciosos, tendo, no entanto, de dispensar os serviços do
mais experiente Oliveira Lima, um espírito por demais cheio de si para
consentir auxiliar-me junto aos peruanos, inquietos com o que se lhes podia vir
em prejuízo, dada minha intenção de separar as duas questões. Mas, dessa e de
outras negociações de limites eu tratarei mais adiante, bastando-me mencionar
agora que encontrei o ministério bem cuidado, sob o olhar vigilante, mesmo se
cansado, do velho Cabo Frio, ainda que excessivamente vetusto nas maneiras e
conservador nas suas práticas, necessitando ademais de alguns empurrões aqui e
ali para mostrar do que o Brasil era capaz, nas Américas e no mundo.
Felizmente Campos Salles e Murtinho realizaram
oportuna obra saneadora de nossas finanças, o que me habilitou a requisitar
novos meios e fundos públicos para investir num mais do que bem-vindo processo
de modernização deste velho ministério de tradições ainda muito lusitanas. Como
sempre, a velha Albion fornece o modelo ideal segundo o qual deveria funcionar
nossa diplomacia, já que o seu Foreign
Office é, por outras vias, uma verdadeira “esquadra inglesa”.
Sobre isso falarei um outro dia...
Petrópolis,
20 de Abril de 1909
Paulo, o senhor tem alguma notícia do diplomata brasileiro José Osvaldo de Meira Penna? Abraço.
ResponderExcluirEduardo Rodrigues,
ResponderExcluirContate-me pelo meu e-mail (tem um formulario de contato la) que eu lhe mando o endereco eletronico dele, em Brasilia.
Estava escrevendo memorias.
Paulo Roberto de Almeida
Paulo,
ResponderExcluirtrabalho espetacular. Se tiver mais textos do saudoso Rio Branco estarei pronto a lê-los prazerosamente.
Parabéns,
Allan
Um apreciador (de quem não preciso revelar o nome) escreveu-me o que segue:
ResponderExcluir"Caro Paulo Roberto,
Xxxxxxx me passou a sua preciosa descoberta e sua excelente introdução. Que verdadeira jóia você garimpou! O homem escrevia bem e pensava claro! Adorei as críticas à "mula fardada" e o profético receio de que a presidência fosse ocupada por ignorantes e aventureiros. A crítica à soberba do Oliveira Lima tampouco parece deslocada, embora o pernambucano provavelmente atribuísse defeito semelhante ao grande Chanceler...
Adorei ler o seu blog "diplomatizzando", que não lia há tempos.
Vou ver se ligo para você para conversarmos. Só queria registrar os meus cumprimentos e a minha admiração por sua pesquisa e divulgação do caderno do Paranhos. Se houvesse imprensa no Brasil, isto amanhã estaria na primeira página de tudo o que é jornal...
Saudoso abraço,
Xxxxxxx Xxxxxxxxx"
Bem, só posso ficar vaidoso com estes elogios, e achar que minha "descoberta" foi uma excelente trouvaille.
Paulo Roberto de Almeida
Mais um comentário de um leitor que visivelmente apreciou a minha trouvaille:
ResponderExcluir"Muitíssimo obrigada pela lembrança e parabéns pelo belo trabalho.Que delícia ler as anotações íntimas do Barão, nas quais já encontrei menção ao OL. Espero que tenha mais!"
Soit!
Paulo Roberto de Almeida
Paulo, apenas gosto muito dos textos de Meira Penna, e há muito tempo não encontro nada escrito por ele. Não desejo entrar em contato. Obrigado pela resposta. Abraço
ResponderExcluirEspero que a publicação das memórias do Barão continue a ser postada. Não só pelas sua revelações muito interessantes mas também pelo ótimo português do autor.
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