FALHAS
CONCEITUAIS
"Novo
Código Penal é obscenidade, não tem conserto"
Consultor
Jurídico, 2/09/2012
De todas
as atividades que Miguel Reale Júnior já desempenhou na vida,
a que melhor o define, e que exerceu por mais tempo, é a de professor. É
livre-docente da Universidade de São Paulo desde 1973 e professor titular desde
1988. Foi lá também que concluiu seu doutoramento, em 1971. Tudo na área do
Direito Penal.
Fora das
salas de aula, foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, secretário
estadual de Segurança Pública de São Paulo durante o governo de Franco Montoro
(1983-1987), presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos desde
sua criação até 2001 e presidente do PSDB. Mas é a versão "professor"
que o jurista mais deixa aflorar nesta primeira parte da entrevista concedida à
revista Consultor Jurídico no dia 21 de agosto.
O texto
do anteprojeto de reforma do Código Penal, elaborado por uma comissão de
juristas nomeada pelo Senado, recém-enviado ao Congresso, é hoje o alvo
preferido do penalista. “O projeto é uma obscenidade, é gravíssimo”,
diz. Para ele, os juristas chefiados pelo ministro Gilson Dipp, do
Superior Tribunal de Justiça, não estudaram o suficiente. “Não têm nenhum
conhecimento técnico-científico”, dispara.
Segundo o
professor, faltou experiência à comissão. Tanto no manejo de termos técnicos e
científicos quanto na elaboração de leis. Entre os erros citados, o mais grave,
para Reale Júnior, foi a inclusão de doutrina e termos teóricos e a
apropriação, segundo ele, indiscriminada, da lei esparsa no código. “Não
tem conserto. Os erros são de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que
não tem mais como consertar.”
Leia a
primeira parte da entrevista:
ConJur —
Qual sua avaliação do projeto de reforma do Código Penal?
Miguel
Reale Júnior — É
uma obscenidade, é gravíssimo. Erros da maior gravidade técnica e da maior
gravidade com relação à criação dos tipos penais, de proporcionalidade. E a
maior gravidade de todas está na parte geral, porque é uma utilização
absolutamente atécnica, acientífica, de questões da maior relevância, em que
eles demonstram não ter o mínimo conhecimento de dogmática penal e da estrutura
do crime.
ConJur —
Onde isso aconteceu?
Miguel
Reale — Basta
ler. Para começar, no primeiro artigo. Está escrito lá: Legalidade. “Não há
crime sem lei anterior”. É anterioridade da lei penal! Não existe lei anterior.
E eles põem a rubrica de penal na legalidade. Nas causas de exclusão da
antijuridicidade, eles colocam “exclusão do fato criminoso”, como se fossem
excluir um fato naturalístico. Não é o fato criminoso que desaparece, é a
ilicitude que desaparece. É ilógico. De repente, desaparece o fato. Veja o
parágrafo 1º: “Também não haverá fato criminoso quando cumulativamente se
verificarem as seguintes condições: mínima ofensividade, inexpressividade da
lesão jurídica”. Mas uma coisa se confunde com a outra.
ConJur —
Onde esses erros interferem?
Miguel
Reale — Na
parte do princípio da insignificância, da bagatela, colocam lá como exclusão do
fato criminoso. E o que se conclui? Que é quando a conduta é de pequena
ofensa ou que a lesão seja de pequena mora. Ofensividade e
lesividade, para os autores que interpretam, são coisas diferentes. Tem de ter
as duas, a ofensividade e a lesividade. E colocam no projeto também como
condição, em uma linguagem coloquial, “reduzidíssimo”. Instituiu-se o direito
penal coloquial. “Reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento.”
“Grau de reprovabilidade reduzidíssimo”. A reprovabilidade é da culpabilidade,
não tem nada a ver com a antijuridicidade. Que haja um reduzidíssimo grau de
reprovação, que isso é uma matéria da culpabilidade, não tem nada a ver com
exclusão da antijuridicidade, que erroneamente eles chamam de fato criminoso.
ConJur —
O que quer dizer "reduzidíssimo"?Miguel Reale — Boa pergunta. O que é reduzidíssimo?
Grau de reprovabilidade? A reprovabilidade é elemento da culpabilidade, é o
núcleo da culpabilidade, da reprovação. Não é antijuridicidade, não é
ilicitude. Estado de necessidade. Considera-se em estado de necessidade quem
pratica um fato para proteger bem jurídico. Bem jurídico é o núcleo, é o valor
tutelado da lei penal. Ele não sabe o que é bem jurídico? Não é bem jurídico, é
direito! Bem jurídico é um termo técnico. Qual é o bem jurídico tutelado pela
norma? O juiz vai procurar saber qual é o bem jurídico. O bem jurídico é a
vida, por exemplo. Bem jurídico é um conceito dogmático geral, é um valor
tutelado por um direito. O que isso mostra? Falta de conhecimento técnico
científico de direito jurídico.
ConJur —
Faltou conhecimento?
Miguel
Reale — Faltou
estudar. Falta conhecer, manobrar, manejar os conceitos jurídicos. É isso que
preocupa. E tem muitas teorias. Então, vamos em determinado autor, como a
teoria do domínio do fato. É uma determinada teoria. Não pode fazer teoria no
código. Mas existem coisas aqui que realmente ficam... Por
exemplo: “considera-se autor”. Vamos ver se é possível entender essa
frase: “Os que dominam a vontade de pessoa que age sem dolo atipicamente”. Isso
aqui é para ser doutrina. "Atipicamente." Dominam a vontade de pessoa
que age sem dolo "atipicamente". Trata-se de alguém que está sob
domínio físico, como uma pessoa com uma faca no pescoço. Ou quem é coagido.
Usaram uma linguagem que você tem que decifrar. "Dominam a vontade de
pessoa que age sem dolo". Como sem dolo? "Justificada" é quem
vai e atua em legítima defesa, não tem nada a ver com falta de dolo. Não é
dolo. Então, é agir sem dolo de forma justificada? Isso não existe! Não se
concebe isso porque são conceitos absolutamente diversos e diferentes.
ConJur —
São erros banais?
Miguel
Reale — Banais.
Em suma, trouxeram toda a legislação especial sem se preocupar em melhorar essa
legislação esparsa que estava aí, extravagante, que tinha erros manifestos já
anotados pela crítica e transpõe sem mudar nada. Crimes financeiros, crimes
ambientais. Eu defendo que a lei dos crimes ambientais foi a pior lei
brasileira. Mas esse projeto ganha por quilômetros...
ConJur —
A Lei de Crimes Ambientais é tão ruim?
Miguel
Reale — Ela
diz que a responsabilidade da pessoa jurídica só ocorrerá se houver uma decisão
colegiada pela conduta criminosa, cometida por decisão do seu representante
legal ou por ordem do colegiado, em interesse e benefício da entidade. Mas a
maior parte dos crimes ambientais são culposos, os mais graves. Quando vaza petróleo
na Chevron, por exemplo, não houve uma decisão: “Vamos estourar o cano aqui e
destruir ecossistemas...” Pela lei, precisa haver uma decisão de prática
do delito. Deixar escrito: “Vamos praticar o delito.” No projeto de Código
Penal, eles reproduzem a lei ambiental, mas têm a capacidade, que eu mesmo
imaginava inexistente, de aumentar ainda mais as tolices.
ConJur —
Por que aconteceram erros tão graves?
Miguel
Reale — Não
sei. Há pessoas até muito amigas, mas que não têm experiência na área
efetivamente acadêmica ou experiência legislativa. Eles não conhecem teoria do
Direito. Estão trabalhando com teoria do Direito com absoluto desconhecimento
técnico.
ConJur —
Como foi escolhida a comissão?Miguel Reale — Foi o Sarney. Foram pessoas conhecidas, do Sergipe,
de Goiás. É o "Código do Sarney", porque daqui a pouco acaba o
mandato dele, mas o código criado por ele precisa perdurar. O que mais me
impressiona é a forma como isso foi feito.
ConJur —
Qual foi?Miguel Reale — Foi
picotado. Tanto que na exposição de motivos, cada artigo vem assinado por uma
pessoa. Não houve trabalho conjunto sistemático, não houve meditação. Eu
participei de várias comissões legislativas. O trabalho que dá é você pôr a
cabeça no travesseiro, pensar, trocar ideias, fazer reuniões, brigar.
ConJur —
Falhas teóricas prejudicam os méritos do texto?
Miguel
Reale — Seria
uma vergonha para a Ciência Jurídica Brasileira se saísse um código com erros
tão profundos. Quando você acha que encontrou um absurdo, leia o artigo
seguinte. O artigo 137 prevê que a pena para difamação vai de um a dois anos.
Já o artigo 140 diz que se a difamação for causada por meio jornalístico, a
pena é o dobro. A Lei de Imprensa, que foi declarada inconstitucional, e era
considerada dura demais, previa que a pena para isso era de três meses!
ConJur —
O texto recebeu elogios.Miguel Reale — Os elaboradores é que falaram bem! Fizeram um Código Penal que
jornalista gosta. Punham no jornal e se valiam dos meios de comunicação do STJ
ou do Senado para agitar a imprensa. Quem é que falou bem? Qual foi o jurista
que falou bem? Até porque não se conhecia o projeto, só se conhecia por noticia
de jornal. Isso que eu estou dizendo sobre o fato criminoso é gravíssimo. Mas
tem erros que já estavam incluídos nos dados preparatórios, como o nexo de
causalidade. Eles vão mexer em termos que estavam consagrados no Direito, que
ninguém.
ConJur —
Não estavam em pauta?
Miguel
Reale — Não
estavam pauta, já estavam consolidadas no Código Penal. Não é uma coisa para
ser mexida, nós mesmos não mexemos em 1984, quando fizemos a reforma da parte
geral. Mexemos na parte do sistema de penas, mas eles acabaram com o livramento
condicional sem justificativa.
ConJur —
Foi para diminuir as penas das condenações?
Miguel
Reale — Pelo
contrário, as penas são elevadíssimas! E para fatos irrelevantes. "Artigo
394: omissão de socorro para animal." A qualquer animal. Se você passa e
encontra um animal em estado de perigo e não presta socorro a esse animal, sem
risco pessoal, sabe qual é a pena? De um a quatro anos. Agora, omitindo socorro
a criança extraviada, abandonada ou pessoa ferida, sabe qual a pena? Um mês. Ou
seja, a pena por não prestar socorro a um animal é 12 vezes maior do que a pena
de não prestar socorro a uma pessoa ferida. Outro exemplo: pescar ou
molestar cetáceo. Sabe qual é a pena? Dois a quatro anos. Mas se você molestar
um filhote de cetáceo, é três anos. Se você só pesca o cetáceo é dois, mas se o
cetáceo morre, passa para quatro anos. Você vai pescar para quê? Para colocar a
baleia no aquário dentro de casa?
ConJur —
E sem livramento condicional.
Miguel
Reale — Pois
é. Acabar com o livramento condicional é uma violência. Eles criam uma barganha
com a colaboração da Justiça. A barganha elimina o processo sem a presença do
réu, e é feita pelo advogado ou defensor público que estabelece que não haverá
processo. Então, aceita-se uma negociação na qual haverá a imposição de uma
pena reduzida sem que se possa aplicar o sistema fechado.
ConJur —
De onde tiraram isso?
Miguel
Reale — Do
sistema americano. Para qualquer crime, qualquer delito, haverá barganha para
não manter o sistema fechado. E depois da colaboração, já mais vergonhosa de
todas, porque quebra com todos os sistemas éticos de vida, que é denunciar os
amigos para todos os delitos, vem a colaboração com a Justiça em qualquer tipo
de crime. Aí o sujeito não é apenado, em qualquer tipo de delito, se ele antes
da denúncia apresentar uma investigação, elementos suficientes para culpar os
coautores, os cúmplices. É uma coisa importada. Esse exemplo americano é
extremamente grave, porque nos Estados Unidos já se tem a comprovação, estudos
estatísticos, do número de pessoas que, na incapacidade de produzir provas a
seu favor, na falta de ter um advogado competente, aceitam a barganha porque
acham melhor, mais seguro aceitar uma pena menor do que enfrentar o processo.
ConJur —
Mesmo sendo inocentes?
Miguel
Reale — Mesmo
sendo inocentes. O número de inocentes que acabam aceitando a barganha, com a
ameaça de que haverá uma pena muito maior de outra forma, é muito grande. Por
outro lado, a colaboração da Justiça é o sujeito ficar praticando o delito até
a hora que a barca vai afundar. Na hora que a barca afunda, ele pula fora e
entrega os outros. Quer dizer, é o Estado se valendo da covardia e da falta de
ética do criminoso. É a ética do delator. É premiar o mal caráter, premiar o
covarde. Porque há de ter pelo menos um código de ética entre aqueles que
praticam o crime.
ConJur —
O novo Código Penal vai acabar com isso?
Miguel
Reale — Todas
as leis internacionais querem introduzir normas de delação. Delação demonstra o
seguinte: incapacidade de apuração. É o juiz, recebendo os fatos, considerar o
perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade. Se imputado como
primário, ou reduzirá a pena de um terço a dois terços ou aplicará somente a
pena restritiva. Quer dizer, não tem pena de prisão ao acusado que tenha
colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação. Mas como
voluntariamente? Ele está com um processo em cima dele.
ConJur —
Como funcionaria essa delação?
Miguel
Reale — Você
delata, sua delação fica sigilosa, e depois que é delatado é dado conhecimento
dela aos advogados das partes, ou dos réus, que foram delatados pelo
beneficiário. É delação de coautor. Os coautores vão ser processados por causa
da delação. Está dizendo aqui que não basta a delação para ser prova, tem que
ter outros elementos. Mas ele delatou. E se não tiver nenhuma outra prova? Não
está escrito aqui. Aqui diz a total ou parcial identificação dos demais
coautores, e não prova.
ConJur —
Ou seja, é preciso correr para delatar primeiro e não ser delatado por um
comparsa.
Miguel
Reale — Sim.
E a delação tem de ter como resultado: "a total ou parcial identificação
dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa; a localização da vítima
com a sua integridade física preservada". Aqui é no caso de um sequestro.
Recuperação total ou parcial do produto do crime.
ConJur —
Dispositivos como esses são para ganhar manchetes?
Miguel
Reale — É
isso que estou dizendo, não se faz Código Penal com o jornalista à porta. A
cada pérola produzida, punham na imprensa. Os notáveis não têm o menor
conhecimento técnico-científico, o menor conhecimento jurídico. O que me
espantou foi, na parte geral, encontrar isso. Confusões gravíssimas conceituais. Algumas
coisas são mais técnicas. “A realização do fato criminoso exige ação ou
omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou ofensiva.” Tem
vários crimes que não têm ofensa potencial ou efetiva. Por exemplo: tráfico de
drogas, não tem. Qual a ofensa potencial que o tráfico de drogas oferece a
um determinado bem jurídico? Não tem. São chamados crimes de perigo abstrato,
em que você presume que há um perigo em decorrência dele. Porte de
entorpecentes, por exemplo. Porte de arma é crime grave hoje. Não tem nenhuma
ofensa potencial ou efetiva. Porque é um crime de perigo abstrato, é um crime
chamado de "de mera conduta". E hoje isso se repete. Em vários tipos
de delito há a figura do crime de perigo abstrato. Quando fala do fato criminoso,
você já está incluindo todos os crimes de perigo abstrato. Isso tem que ser
comedido. Têm de ser limitados os crimes de perigo abstrato, mas com o novo
texto, acaba-se com os crimes de perigo abstrato. Tem ainda uma frase que eu
não consegui entender: “A omissão deve equivaler-se à causação”. Como ela
mesma vai se equivaler? Não dá para entender. Tem outra coisa aqui: “o
resultado exigido.” Exigido por quem?
ConJur —
Seria o resultado obtido?
Miguel
Reale — Claro!
Resultado exigido? Por quem? O resultado exigido pela norma?
ConJur —
O senhor havia falado da questão do dolo.
Miguel
Reale — Isso.
O artigo 18, inciso I, diz: “doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal
ou assumiu o risco de realizá-lo”. Eu quis o tipo penal? O tipo penal tem
vários elementos constitutivos. É falta de conhecimento técnico no uso dos
termos técnico-jurídicos. O tipo penal é um conceito da estrutura do crime,
dogmático. Não se "quer o tipo penal", se quer a ação. O texto
diz também que há um início de execução quando o autor realiza uma das condutas
constitutivas do tipo ou, segundo seu plano delitivo, pratica atos
imediatamente anteriores à realização do tipo. Se você não realizou, são os
atos preparatórios que exponham a perigo o bem jurídico protegido. Isso é o
samba do crioulo doido! Por isso que eu disse que o problema não é ser técnico,
é ser compreensível e se ter um pouco de lógica, de fundamento, de
conhecimento. São coisas que realmente me deixam extremamente preocupado.
ConJur —
Pode melhorar no Congresso?
Miguel
Reale — Não
tem conserto. Os erros são de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que
não tem mais como consertar. Eu sei que o Executivo não põe suas fichas nesse
projeto. O projeto é realmente de envergonhar a ciência.
ConJur —
O desinteresse do governo é aberto?
Miguel
Reale — Não.
Eu tive notícias de que o Executivo não teria interesse porque sabe dos
comprometimentos, das ausências técnicas que estão presentes nesse projeto.
ConJur —
Já lhe consultaram?
Miguel
Reale — Não.
E o membro mais importante que tinha nessa comissão, que tinha experiência
legislativa, era um acadêmico. Era o professor Renê Dotti, que saiu dizendo que
não tinha condições de permanecer ali do jeito que os trabalhos estavam sendo
conduzidos.
ConJur —
No seu ponto de vista, qual é o erro principal?
Miguel
Reale — É
você estabelecer uma punição, uma interferência do Direito Penal em fatos que
devem ser enfrentados pelo processo educacional, processo de educação na
escola, processo de educação na família, e não com a repressão penal.
ConJur —
Tentar resolver todos os problemas com punição pode ser visto como reflexo do
momento social em que vivemos?
Miguel
Reale — Também.
Imaginar que trazer punição do Direito Penal para resolver as coisas, que vamos
dormir tranquilos porque o Direito Penal está resolvendo tudo. É a ausência dos
controles informais, a escola, a igreja, a família, o sindicato, o clube, a
associação do bairro, a vizinhança etc. São todas formas naturais, sociais, de
controle social. Quando os controles informais já não atuam, se reforça o
Direito Penal como salvação. Passa a ser o desaguador de todas as expectativas.
ConJur —
Isso mostra uma hipertrofia do Estado?
Miguel
Reale — Uma
grande hipertrofia e uma fragilidade política e uma fragilidade social.
Políticas de sociabilidade, políticas de agonia social. É um agigantamento do
Direito Penal.
ConJur —
Passamos também por um afã acusatório, ou seja, é mais importante fazer uma
acusação do que se chegar a uma solução?
Miguel
Reale — Sim.
Isso passa um pouco pela dramatização da violência, pelo Direito Penal presente
nos meios de comunicação diariamente, uma exacerbação. Ao mesmo tempo em que
existe uma crença no Direito Penal, há uma descrença, porque se chega a um
momento de grande decepção. Ao mesmo tempo em que depositam todas as
fichas no Direito Penal, as pessoas dizem: “Mas ninguém vai ser punido” ou “só
vão ser punidos os pequenos, e os grandes nomes vão se safar”. A pesquisa
da Folha de S.Paulo sobre o mensalão é um exemplo. As pessoas
acham que os réus são culpados, mas 73% acham que eles não serão punidos. Ou
seja, é ao mesmo tempo ter o Direito Penal como único recurso, e saber que esse
recurso não vai funcionar. Aí vem um grande desânimo que acaba, talvez, levando
negativamente a uma grande permissividade.
ConJur —
O nosso sistema penal está preparado para isso?
Miguel
Reale — Não,
inclusive com esse problema de não haver o livramento condicional. O que eu
vejo é o seguinte: grande parte da população carcerária está presa por crime de
roubo, violência, crime contra patrimônio, ou seja, roubo comum, roubo à mão
armada, latrocínio e tráfico de drogas. Esses são os crimes, os núcleos que
mais levam à prisão. A maior parte é por latrocínio e tráfico de drogas, que
são crimes hediondos. Ser crime hediondo não levou a uma redução da incidência
criminal. E os crimes de roubo, que crescem vertiginosamente, crime de roubo
comum ou roubo à mão armada, ou mesmo, infelizmente, com mais gravidade, o
latrocínio, cresceram vertiginosamente, pelo menos em São Paulo, e é um crime
hediondo. Por que se dissemina? Porque existe uma grande impunidade. Essa
impunidade vem do quê? Da falta de apuração dos fatos delituosos.
ConJur —
Então o problema é da falta de polícia e não de lei?
Miguel
Reale — Nem
da falta de lei, nem da falta de polícia. É da falta de investigação. O
percentual dos crimes de roubo cuja a natureza é descoberta é de apenas 2%.
Então, se nós temos 500 mil presos a maioria desses presos é por roubo, imagina
se você descobrisse dez vezes mais, ou 20%. Qual seria a população carcerária?
Eu mesmo fui assaltado duas vezes e não registrei boletim de ocorrência. O
problema todo é imaginar que a lei penal em abstrato tenha efeito intimidativo.
O que tem efeito intimidativo é a lei quando é efetivada ou quando se mostra
possível de efetivar. Vou dar um exemplo: se você está em um estrada e passa um
carro no sentido contrário e dá um sinal de luz, você diminui a velocidade
porque tem guarda rodoviário pela frente. Quando você passa o guarda
rodoviário, você acelera. Quando você está na estrada e tem lá o radar, você
diminui. Então o que é? É a presença efetiva, ou humana ou por via de
instrumentos de controle.
ConJur —
Neste ano, o Código Civil, cujo anteprojeto foi elaborado pelo seu pai, Miguel
Reale, faz dez anos. Foi um projeto que demorou 25 anos para ser aprovado,
aparentemente sem pressa.
Miguel
Reale — E
foi um trabalho imensamente meditado. Depois veio a Constituição Federal, daí
houve 400 emendas oferecidas, um grande trabalho do relator no Senado, e meu
pai respondeu as 400 emendas sozinho, à mão. Nós temos tudo isso feito à mão
por ele, anotado. Eu guardo tudo isso em um instituto que nós temos.
ConJur —
Quanta gente havia na comissão elaboradora?
Miguel
Reale — Pouca
gente. E o Código Civil está produzindo efeitos, tem novidades e contribuições
importantes. Há erros, mas ao mesmo tempo foi reconhecido o imenso avanço que o
Código Civil trouxe na consagração de valores importantes do Direito Civil,
como a função social, como a sociabilidade. Um código voltado para um futuro aberto
graças a normas que têm cláusulas abertas, cláusulas gerais. Foi um código
muito pensado, muito meditado, meu pai discutia muito com outros professores,
como o professor Moreira Alves, com quem trocava ideias, e havia troca de
ideias no Congresso Nacional. Assim que se faz uma legislação de tamanha
grandeza.
ConJur —
O fato de o Direito mudar muito rápido não exige que se aprove uma lei antes
que seja tarde demais?
Miguel
Reale — Aí
é que fica tarde demais, porque já nasce mal feito. Não se pode fazer uma
legislação dessa maneira, de afogadilho. Aliás, tem coisas ali no projeto de
reforma do Código Penal que são notáveis, como toda a questão da parte geral,
que exige um profundo conhecimento da estrutura do crime, da dogmática penal. E
já foi visto que não existe nem de longe o conhecimento técnico-jurídico penal
na parte geral, que é a parte central.
Revista Consultor
Jurídico, 2 de setembro de 2012
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