Mesmo não aderindo às teses de Samuel Huntington, sobre o conflito de civilizações, parece que existe, tanto no caso do recente atentado contra os jornalistas de
Charlie Hebdo, em Paris (na manhã de 7 de dezembro de 2015), quanto no caso anterior dos cartoons sobre o profeta Maomé num jornal dinamarquês, um claro conflito entre duas noções do mundo: uma que é baseada (não sem conflitos) na liberdade total de crítica às religiões, e outra que vê como uma grave ofensa qualquer crítica ou zombaria às religiões, ou a uma religião em particular.
Justamente, sobre o caso precedente dos cartoons dinamarqueses, eu havia escrito um texto, publicado unicamenente num antigo blog meu, do qual me lembrei agora.
Eis a ficha do trabalho:
Sem pretender "reanimar" o conflito, vou postar novamente aqui estas notas, como simples curiosidade. Mas, na mesma época, acabei divulgando outros textos, que também talvez seja o caso de reler agora:
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 7 de dezembro de 2015
Clash of civilization (this time for real...)
Paulo Roberto de Almeida (2006)
Parece que o conflito teorizado por
Samuel Huntington passou da fase latente para o estado de guerra larvar: mais
jornais ocidentais publicam as charges veiculadas num jornal dinamarquês e o
debate se instalou de vez sobre a liberdade de expressão e o respeito às
sensibilidades religiosas.
Mas o que houve, finalmente?
O problema começou, há vários meses,
com duas polêmicas charges de Maomé publicadas originalmente num jornal
dinamarquês e que têm gerado protestos em todo o mundo islâmico.
Num dos desenhos, Maomé pede aos
terroristas islâmicos que parem com os atentados, porque já não há virgens
suficientes no Paraíso. No outro, o profeta aparece com uma bomba no turbante.
Confesso que ainda não vi essas
caricaturas: não tive tempo de buscar, nem tenho interesse real em vê-las. Meu
interesse aqui é outro: discutir os limites recíprocos entre liberdade de
expressão e manifestação de sentimento religioso.
Jornais ocidentais publicam dezenas de
charges, ironizando prelados católicos, criticando padres de comportamento
duvidoso e fazendo troça com o próprio Papa. Nada disso gera comoção ou
tumulto, no máximo algum protesto localizado.
No mundo ocidental, em geral, é assim:
a liberdade de expressão é praticamente absoluta, consituindo um dos valores
fundamentais de seus regimes democráticos, algo praticamente inexistente em
vários países islâmicos. Em caso de abuso desse direito, os atingidos têm
também o direito de buscar justiça nos tribunais.
Os muçulmanos que se sentiram ofendidos
dizem que a religião islâmica proibe a reprodução pictorial do profeta e de
qualquer outra forma de vida. Dizem que não se pode reproduzir uma criação de
Alá.
Parece-me que existe aqui um problema
real de conflito de civilização, mas ele não se dá entre o islâmismo e as
demais correntes religiosas existentes no mundo, e sim dentro da própria
civilização islâmica. Daí o singular, utilizado em meu título, diferente do
conceito no plural empregado por Huntington.
Parece evidente que a arte pictórica
existia antes da criação da religião islâmica, historicamente datada em torno
do século VII da era cristã. Ela continuou a existir durante a vida do profeta
Maomé e mesmo depois que seus ensinamentos foram propagados, sendo exercida,
por exemplo, em sociedades islamizadas como a Pérsia, que cultivou a arte
pictórica dentro da religião islâmica.
É bem verdade que muitos desses
desenhos e pinturas tiveram depois as faces do profeta ou de outros personagens
humanos apagadas dessas obras de arte, como vemos em muitas obras de arte de
museus ocidentais e mesmo em museus de sociedades islâmicas. Trata-se de um
esforço de "descontruir" obras de arte feitas dentro de sociedades
islâmicas, por alguns intérpretes zelosos de alguns preceitos do Corão.
Se o sentimento religioso dos
muçulmanos impede a reprodução de personagens humanos (e também de plantas e
animais) isto deve ser considerado uma particularidade de sua religião, nos
lugares nos quais ela é estritamente aplicada, mas obviamente esse tipo de
prática não pode ter validade universal.
Aliás a proibição de reprodução de
seres humanos, assim como de quaisquer outros seres vivos, atua, em minha
opinião, como um sério impedimento ao desenvolvimento das ciências naturais
(biológicas em especial), dificultando a apreensão de disciplinas científicas
que se apoiam na reprodução de corpos e partes de corpos de seres vivos para o
aprendizado de sua manipulação (para fins médicos e econômicos).
Trata-se, ao meu ver, de um grave
conflito – existem outros, mas não pretendo agora debruçar-me sobre eles – que
divide as sociedades islâmicas, internamente e em relação a outras sociedades
humanas. Uma interpretação rigorosa de determinadas preceitos, ou de fato a
ausência mesmo de possibililidade de interpretação – aquilo que na tradição
cristã é conhecido por “exegese” –, dificulta a modernização das sociedades
islâmicas e o seu relacionamento com as demais sociedades humanas, aderentes a
outras correntes religiosas.
Esse problema terá de ser resolvido
pelos próprios muçulmanos, uma vez que a origem do problema – ou seja, o
conjunto de proibições – deriva de sua própria forma de encarar a religião, e
não decorre do comportamento de outras crenças religiosas.
Quanto às sensibilidades religiosas,
pode-se admitir que um cristão aderente se sinta ofendido por alguma charge
ironizando Cristo na cruz, por alguma caricatura maldosa de padres
“desviantes”, mas não se tem notícia de redações de jornais incendiadas por
isso, ou de assassinatos de caricaturistas por suposta ofensa aos “sentimentos
cristãos”. Mas, já tivemos exemplos de ocidentais assassinados por
fundamentalistas islâmicos – um último eloquente exemplo foi o de um cineasta
holandês, Theo Van Gogh, por ter feito um documentário sobre práticas
costumeiras em algumas sociedades islâmicas – como protesto contra um suposto
atentado a “valores islâmicos”.
Quer me parecer que estamos, de fato,
em face de um grave problema civilizatório...
Post scriptum em 6 Fev 06: Tendo em
vista que o site original de publicação das charges foi descontinuado, um outro
site ofereceu-se para mantê-los on-line. Sem qualquer desejo de ofender
ninguém, e tendo verificado sua relativa inocuidade, indico aqui o link de
acesso a essas charges: http://cryptome.org/muhammad.htm
Brasília, 5 fevereiro 2006, 3 p.
Post n. 207, do Blog “Cousas Diplomáticas”.
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