Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Brasil leva religião à ONU e mina projetos que citam educação sexual
Jamil Chade
UOL Noticias, 15/07/2020
Imagem: CAROLINA ANTUNES/PR
Nesta semana, duas resoluções sob consideração na ONU (Organização das Nações Unidas) mostram a influência dos grupos evangélicos na formulação da política externa brasileira. O posicionamento do governo brasileiro, calcado em noções ultraconservadoras e religiosas, gerou a incompreensão de diplomatas estrangeiros e foi recebido com choque pelas demais delegações.
O posicionamento do Brasil vai na direção de se colocar internacionalmente como nação contra o aborto, e para isso há um esforço na diplomacia nacional de abafar quaisquer menções a educação sexual e saúde reprodutiva, assim como evitar essas discussões até mesmo quando o assunto é a proteção a vítimas de mutilação genital na África, por exemplo.
O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas irá avaliar entre quinta e sexta-feira um projeto para combater a discriminação contra as mulheres e outro para lutar contra a mutilação genital feminina. Em ambos os textos, durante as reuniões de negociação, o delegado do Itamaraty na sala leu instruções de Brasília que pediam mudanças profundas nos textos. Todas elas interpretadas pelas demais delegações como tendo o objetivo de limitar — e não expandir — direitos.
No projeto contra discriminação na ONU, por exemplo, o Brasil se aliou à Arábia Saudita para vetar a inclusão do termo "educação sexual".
Já no texto proposto por países africanos para banir a mutilação genital feminina, o Itamaraty se opõe a citar "saúde sexual e reprodutiva".
Ainda que o governo brasileiro defenda lutar contra esse flagelo que atinge cerca de 3 milhões de meninas por ano, o temor da nova ultraconservadora representação do Brasil é que, no futuro, a expressão seja usada para justificar práticas de aborto.
Os autores dos textos negam qualquer relação com a interrupção da gravidez e apontam que, no caso da mutilação, o acesso a informações e direitos pode significar a diferença entre a vida e a morte dessas mulheres.
Na ONU, a posição do Brasil nas resoluções propostas não ganhará adeptos suficientes fora do mundo islâmico e os autores dos textos que serão considerados já indicaram que não irão acatar os pedidos do Itamaraty. Um dos cenários deve ser o da adoção do texto por consenso, e eventualmente um pedido de esclarecimento do governo brasileiro sobre sua posição.
Internamente, o Itamaraty se defenderá dizendo que tentou fazer a mudança solicitada e que marcou sua posição. Mas que não foi aceita.
Guinada conservadora isola Brasil entre latino-americanos
Em Brasília, na sede do Itamaraty, as orientações dadas pela cúpula do ministério também causaram indignação dos próprios funcionários na capital federal. A conduta também vem isolando o Brasil na América Latina, o único a adotar essa posição em toda a região.
O episódio está longe de ser inédito. A posição do Brasil vem sendo aplicada em diversas reuniões e propostas sob debate nas Nações Unidas. O Itamaraty passou a traduzir em sua política externa uma visão em que só existe o sexo biológico e que não existiria consenso sobre o acesso à saúde sexual e reprodutiva.
No entanto, o que surpreendeu os demais países é que, nesse caso, todos os estudos apontam para a importância do tema da saúde sexual e reprodutiva justamente no combate à mutilação genital, que é o corte ou a remoção deliberada de parte da genitália feminina externa.
Há um consenso mundial de que tal prática é uma violação de direitos humanos. A OMS (Organização Mundial da Saúde), por exemplo, explica que a mutilação "visa a assegurar a virgindade pré-matrimonial e a fidelidade conjugal", e que "em muitas comunidades acredita-se que a mutilação reduz a libido de uma mulher e, portanto, ajuda a resistir a atos sexuais extraconjugais". Para a agência e para especialistas, o acesso de mulheres à saúde sexual e reprodutiva, a que o Brasil se opõe, é um importante instrumento para garantir o direito dessas meninas.
Religião como formuladora de políticas
Uma das explicações dadas pelo Itamaraty por sua postura ao vetar tais termos é a de que ela seria um reflexo da vontade popular, expressa nas urnas em 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro com presidente.
Por anos, com as mesmas leis no Brasil, o Itamaraty não via problemas em aceitar o projeto na ONU como estava.
Outro esforço da diplomacia brasileira é o de tentar garantir que, nos textos oficiais, seja reconhecido o papel de entidades religiosas na formulação de políticas públicas para a defesa das mulheres e da igualdade de gênero. O temor das ONGs e de ativistas, porém, é de que tais inclusões poderiam significar a chancela às práticas de grupos religiosos que tentam limitar os direitos de mulheres, e não expandi-los.
Ministério de Direitos Humanos participa de formulações do Itamaraty
Com pastores evangélicos como chefes dos ministérios de Direitos Humanos, Justiça e Educação, o posicionamento do Brasil sobre os textos oficiais da ONU passou a ser visto como um esforço de uma ala do governo em buscar reconhecimento internacional.
Hoje, o processo de formulação da política externa passa, nesses casos, por consultas com o Ministério dos Direitos Humanos, liderado por Damares Alves, também pregadora. A pasta, porém, contou com outros nomes de vertente evangélica. Um deles era o pastor Sérgio Queiroz, que tem feito viagens para reuniões da ONU. Ele atuou como secretário nacional de Proteção Global e, em 2020, foi nomeado secretário especial do Desenvolvimento Social, cargo que faz parte do Ministério da Cidadania.
A presença da religião na política externa brasileira ficou evidenciada já no ano passado quando o governo enviou delegações para participar de eventos promovidos por Viktor Orban, o líder ultraconservador húngaro. Num dos encontros, Damares Alves debateu o fortalecimento da família. Em outro, foi o Itamaraty que participou para a defesa do cristianismo.
A pasta liderada por Damares ainda conta com secretária nacional da Família, Angela Vidal Gandra, considerada dentro do Itamaraty como a principal formuladora das posições do governo nesses assuntos.
Em um recente artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, ela deixou clara sua visão sobre debates que ocorrem nas Nações Unidas. Segundo ela, iniciativas da ONU que se apresentam em termos de "ajudas humanitárias" incluem "paradoxalmente, o 'serviço essencial' de aborto seguro durante a pandemia, enquanto todo foco deveria estar centrado em salvar os mais vulneráveis e em preservar vidas".
"Ideia fixa" de saúde sexual reprodutiva
A secretária Angela ainda escreveu que "os que têm a oportunidade de transitar na instituição conhecem suas agendas paralelas forçadas, incluindo a ideia fixa na saúde sexual reprodutiva —em detrimento de tantos direitos humanos constantes da Declaração Universal que deixam de ser viabilizados com a velocidade desejada devido ao monotema—, contrariando a vontade da ampla maioria das famílias e destacando sua autoridade acima dos próprios Estados", escreveu.
Ela também tece duras críticas contra a OMS. "Uma proposta nesse campo, que pode ser denominada de anti-humana, é a veiculação do programa da OMS para crianças menores de quatro anos de idade contendo homossexualidade, pornografia e masturbação, que oferece diretrizes em substituição àquelas preconizadas pelas suas famílias para que possam "gozar do prazer" desde a infância, como "parte normal da vida de cada um", incluindo as relações com colegas do mesmo sexo", escreveu.
O escritório da OMS na Europa de fato trabalhou em um documento com um instituto alemão, com o objetivo de ajudar os pais na educação sexual de crianças. Não há, porém, a promoção da pornografia.
Mas o documento que serve de referência internacional sobre educação sexual foi publicado em 2018 pela Unesco e é chancelado pela OMS. Ele de fato tece um plano para que escolas e educadores possam lidar com a questão da sexualidade entre as crianças. Mas o guia começa a partir dos cincos anos, com conceitos como amor, respeito e o reconhecimento de gênero. Além disso, o guia admite que, entre cinco e oito anos, "é natural ter curiosidade a seu respeito, inclusive os órgãos sexuais e reprodutivos". Cabe aos educadores ajudarem as crianças a ter conhecimento sobre as partes genitais e "descrever sua função básica".
Na ONU, a campanha vai no mesmo sentido de garantir a educação sexual como uma forma de evitar a gravidez precoce, de combater a violência, lutar contra doenças e defender os direitos das mulheres.
Alinhamento com os Estados Unidos
Angela Gandra tem ampla circulação nos meios americanos mais conservadores. No ano passado, ela participou de uma reunião em Washington (EUA) que está gerando polêmica entre ativistas de direitos humanos: a Comissão dos Direitos Inalienáveis, uma iniciativa do Departamento de Estado norte-americano para rever o conceito de direitos humanos. O projeto é do Secretário de Estado, Mike Pompeo, um cristão evangélico.
Ao explicar seu objetivo, ele deixou claro que quer um enfoque num escopo específico de direitos. "Sei de onde vieram esses direitos. Eles vieram de nosso Senhor", disse Pompeo.
Para os críticos e especialistas, o esforço de focar os trabalhos em "direitos inalienáveis" é, na realidade, uma tentativa de restringir os direitos que o governo tem a obrigação de proteger. Tal iniciativa poderia afetar direitos sexuais e a proteção de minorias, entre elas a comunidade LGBTQ e imigrantes.
ONG conservadora internacional tem canal aberto com governo Bolsonaro
Parte do governo ainda mantém boas relações com a entidade americana, a ADF International. Representantes da organização têm feito parte de reuniões entre a pasta de Direitos Humanos e o Itamaraty.
No último dia 22 de maio, por exemplo, um encontro ocorreu envolvendo deputados brasileiros, representantes do Itamaraty, do Ministério de Direitos Humanos e Tomás Henriquez, da ADF Chile. A pauta: a frente parlamentar latino-americana.
No site da entidade, Henríquez é descrito como a pessoa que lidera os trabalhos de lobby em instituições internacionais e "auxilia aliados regionais" em temas como a "santidade da vida, casamento, família, direitos parentais e liberdade religiosa".
Na ONU, em 2019, o Brasil ainda participou de um seminário organizado pela ADF.
Em 2017, a organização submeteu à ONU um documento em que alertava que a luta contra o zika vírus fosse transformado em um caminho para legalizar o aborto no Brasil.
"Escritório evangélico" na Suíça
A postura dos grupos evangélicos promete ganhar força. Nas últimas semanas, em Genebra (Suíça), ONGs internacionais relatam que têm sido procuradas por uma entidade evangélica brasileira que busca estabelecer um escritório nas proximidades da ONU para servir de base de uma campanha de lobby por temas caros ao governo brasileiro.
Na ONU, em Nova York, a comissão que avalia a candidatura de ONGs para que recebam o status oficial e possam estar nas reuniões diplomáticas também indica que vem recebendo consultas e solicitações por parte de grupos evangélicos nacionais.
Uma vez dentro da ONU, essas entidades poderão organizar debates, submeter textos com seus pontos de vista e fazer campanhas com governos.
Mas a postura brasileira em temas de direitos humanos começa a gerar questionamentos internos. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, terá de prestar esclarecimentos formais sobre sua postura na ONU. Num requerimento enviado ao Itamaraty, a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados cobra do chanceler informações sobre como tais posturas são tomadas.
Sempre é bom reler Janer Cristaldo, não só para relembrar coisas antigas, mas também pelo prazer da ironia, que na verdade é sinceridade, sem a hipocrisia do politicamente correto.
Pois é mesmo de hipocrisia que ele fala neste artigo republicado no ebook O Supremo Apedeuta (quase um profeta), que vocês podem ler neste link: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/supremo.html
Destaco de sua crônica uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, de 1976: “A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias
acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado
ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o
espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática”.
Paulo Roberto de Almeida
Hipocrisia muçulmana
Janer Cristaldo, 07/02/2006
Tudo começou em 1989, quando o indiano Salman Rushdie publicou Versículos
Satânicos. Neste livro, Rushdie reproduziu os versículos Gharanigh, não aceitos pelos
canonistas do Corão. Trocando os queijos de bolso – ou mutatis mutandis, como preferem os juristas – é como se no Ocidente fossem publicados os evangelhos apócrifos ou
gnósticos, não aceitos pela Igreja Católica, que aliás são publicados em várias línguas do
Ocidente. Embora fosse indiano com nacionalidade britânica, Rushdie foi alvo de uma
fatwa do aiatolá Khomeini, então todo-poderoso da “revolução” no Irã:
“Eu informo o orgulhoso povo muçulmano do mundo inteiro que o autor do livro Os Versículos Satânicos,
que é contrário ao Islã, ao Profeta e ao Corão, assim como todos os
implicados em sua publicação e que conhecem seu conteúdo são condenados à
morte. (...) Apelo a todo muçulmano zeloso a executá-los rapidamente,
onde quer que eles estejam. (...) Todo aquele que for morto nessa
empreitada será considerado mártir”.
A Europa aceitou tranquilamente a sentença do aiatolá. Em vez de
isolar o Irã, o Reino
Unido passou a dar proteção a Rushdie. Os demais países da comunidade se
mantiveram
em silêncio obsequioso. Sem atinar que não se tratava apenas de proteger
um escritor
perseguido. Mas de repudiar a pretensão megalômana de um padre persa,
que pretendeu
legislar inclusive no estrangeiro. A apostasia, ou crime, segundo os
muçulmanos, havia
ocorrido em Londres, com a publicação do livro. Do alto dos minaretes de
Teerã,
Khomeiny ordenou não só a condenação à morte – como também a execução da
sentença –
de Rushdie, assim como todos os implicados na publicação do livro… em
território
europeu ou onde quer que estes “criminosos” estivessem. Em 1991, o
tradutor do livro para o japonês foi assassinado e em 1993 o editor de
Rushdie na Noruega foi atacado quando saía de casa.
Só a apatia dos países europeus, na época, pode explicar a reação
desmesurada dos árabes às caricaturas anódinas de um obscuro jornal do
sudoeste da Dinamarca. Se as democracias ocidentais cortassem relações
com o regime do aiatolá naqueles dias, provavelmente não estaríamos
vendo hoje as fogueiras histéricas em toda a Europa e países muçulmanos,
onde se queimam bandeiras da Dinamarca e Noruega.
Reação tardia, diga-se de passagem. As doze caricaturas de Maomé foram publicadas dia
30 de setembro do ano passado, no Jyllands-Posten, e reeditadas no 10 de janeiro passado pelo jornal norueguês Magazinet.
Jornais que não circulam no mundo árabe e muito menos na Europa, mas
apenas na Dinamarca e Noruega, dois países de minorias lingüísticas. A
reação muçulmana revelou-se uma estratégia de jerico. As charges
publicadas no jornal da Jutlândia estão hoje reproduzidas na Internet e
nos principais jornais do Ocidente.
Embora uma das charges mostre a cabeça de Maomé formada por uma
bomba, não é isto o que preocupa os muçulmanos. Seria absurdo protestar
contra caricaturas, um recurso rotineiro do jornalismo desde priscas
eras. Alegam então que a religião islâmica proíbe
imagens do profeta ou de Alá. O que não passa de um esfarrapado pretexto
para agredir a
Europa. Iconografia sobre Maomé é o que não falta no Ocidente e
inclusive no mundo
árabe. Enciclopédias, livros e jornais publicaram desde sempre imagens
de Maomé e só
hoje, em 2006, os muçulmanos houveram por bem manifestar indignação.
Hipocrisia
deslavada.
Sem ir muito longe, dou dois passos até minhas estantes e apanho o Diccionario Literario Bompiani,
editado em Barcelona, 1963. No segundo volume de Autores, no verbete
Mahoma, há nove gravuras do profeta, na maioria da Universidade de
Edimburgo, desde seu nascimento até a colocação da pedra negra na Caaba e
o encontro com o arcanjo
Gabriel. Estas duas últimas gravuras estão em miniaturas de manuscritos
árabes. Há
também uma miniatura persa do século XV, na qual Maomé monta um camelo
ante sua
mulher Khadigia. Ou seja, mesmo em universo muçulmano a imagem do
profeta já era
reproduzida. Este soberbo dicionário (15 volumes) está publicado nas
principais línguas da
Europa e nunca vi muçulmano algum condená-lo por blasfêmia. A julgar-se
pela escalada
da violência, vão acabar pedindo a proibição da Divina Comédia, onde Dante joga o profeta no oitavo círculo do Inferno, destinado aos semeadores de discórdia.
Em vez de protestar contra os jornais, os muçulmanos queimam bandeiras e embaixadas
dos países envolvidos na affaire. Dirigem-se não aos jornalistas, mas aos Estados.
Para um muçulmano, é óbvio que todo Estado tem controle da imprensa.
Esta é a norma nas teocracias árabes, onde não há liberdade alguma de
expressão. Estes senhores precisarão de mais alguns séculos para
entender que, em países democráticos, a imprensa é uma
instituição que limita inclusive os desmandos do Estado.
Se criticar religiões ou deuses fosse proibido no Ocidente, a Europa
ainda chafurdaria nas trevas da Idade Média. O Ocidente sempre foi
crítico em relação a seus deuses, e mesmo
Jeová, o único, teve de ouvir poucas e boas de pensadores e poetas como
Voltaire, Diderot,
Guerra Junqueiro ou Nietzsche. Ainda há pouco, eu escrevia: na Europa de
hoje você pode
dizer o que quiser até mesmo da mãe do Cristo. Só não pode criticar
Maomé. Y a las pruebas me remito, como dizem os espanhóis. Ano passado, terminei a leitura de La Virgen María – Biografia no autorizada,
do jornalista britânico Michael Jordan. Neste gordo ensaio de 400
páginas, com base nos evangelhos apócrifos, o autor sustenta a tese de
que Maria teria sido uma das prostitutas sagradas. A tradução que tenho
em mãos foi publicada em Barcelona e o texto original em Londres.
Escândalo algum no Ocidente. Ora, na escatologia cristã Maria tem quase o
status de uma deusa. Nem por isso alguém saiu a queimar embaixadas ou
livros em protesto contra o autor. Imagine o leitor se alguém afirmar
que Maomé seduziu e violou Zainab, a mulher de um pupilo. Ou que
casou-se com Aisha, quando esta tinha nove anos.
Que a religião islâmica proíba imagens de Maomé, nada temos contra. Mas não venham
estes cortadores de clitóris pretender que países não islâmicos proíbam a seus jornais,
enciclopédias, bibliotecas publicar as ditas imagens. Os alaridos do mundo árabe não
passam de mera farsa. Que acesso têm à imprensa habitantes de um universo
majoritariamente analfabeto? Que acesso tem o mundo árabe a dois jornais da Escandinávia?
A onda de protestos não passa de uma agressão planejada à Europa, fruto do
ressentimento de habitantes e imigrantes do Terceiro Mundo muçulmano.
Chefes de Estado europeus estão se desmanchando em salamaleques aos árabes, pedindo
desculpas pelas ofensas ao Islã. No fundo, negam – ou propositadamente esquecem – o
acórdão de Handyside, reconhecido pela Corte Européia de Direitos do Homem, em 1976.
Que reza: “A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias
acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado
ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o
espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática”.
Mas de nada adianta falar de democracia para brutos.
Será um sucesso editorial absoluto, e os exemplares se venderão como des petits pains, se os editores me permitem a comparação talvez pouco apropriada.
Se eu pudesse compraria o meu exemplar, mas vou pedir a algum colega de Paris, para comprar um para mim. Um número histórico, ainda que na tragédia e no sofrimento de tantos colaboradores e dos jornalistas e de suas famílias.
Mas essa é a resposta apropriada aos bárbaros: mostrar que a liberdade, ainda quando reprimida, é a maior força civilizatória, e que ela termina vencendo qualquer ditadura, qualquer repressão.
Todos os franceses, com a possível exceção de um punhado de fundamentalistas de várias tendências religiosas e políticas, irão comprar o seu exemplor de Charlie Hebdo. Allons, enfants, de certa forma, será un jour de gloire qui est arrivé, ainda que na dor... Marchons, marchons...
Paulo Roberto de Almeida
Colunista do jornal Charlie Hebdo diz que publicação irá sair na próxima semana
Correio do Brasil, 8/1/2015 12:22
Por Redação, com ABr - de Paris
O colunista do jornal Charlie Hebdo, Patrick Pelloux
O colunista do jornal Charlie Hebdo, Patrick Pelloux,
afirmou nesta quinta-feira que o jornal será publicado na próxima
semana, mesmo após o ataque terrorista desta quarta que matou oito dos
seus jornalistas e cartunistas.
– Vamos continuar, decidimos sair na próxima semana. Estamos todos de
acordo – disse Pelloux, adiantando que a equipe do jornal deve se
reunir em breve.
Pelloux, que também é médico de emergência, disse que os escritórios
do jornal satírico não estão acessíveis por causa da investigação
policial. Ele assegurou que a equipe trabalhará em casa. “Vamos nos
arranjar”, acrescentou.
– É muito duro, estamos todos com a nossa dor, os nossos medos, mas
vamos fazê-lo porque não é a estupidez que vai ganhar. Charb [diretor da
publicação, morto no atentado] dizia sempre que o jornal deveria sair
custasse o que custasse – disse o colunista. Doze pessoas, entre as quais cinco dos principais caricaturistas
do semanário (Charb, Wolinski, Cabu, Tignous e Honoré) e o economista
Bernard Maris, foram mortas no ataque aos escritórios do jornal, no
centro de Paris.
O atentado, o mais violento dos últimos 50 anos na França, provocou
uma onda de comoção e solidariedade, principalmente entre os veículos de
comunicação que já propuseram ajudar oCharlie Hebdo.
Em 2011, quando os escritórios do jornal foram incendiados,
presumivelmente em represália pela publicação de caricaturas do profeta
Maomé, o diário Libération acolheu a redação do Charlie Hebdo. Afetado pelo ataque, o Charlie Hebdo
já estava ameaçado de falência. Deficitário, vende em média cerca de 30
mil exemplares e lançou recentemente um apelo por doações para que não
encerrasse os trabalhos.
Um texto da mesma época do debate sobre os cartoons dinamarqueses. Não reivindico nenhum conhecimento especializado sobre as religiões em geral, e sobre algumas religiões em particular. O que escrevi reflete meu próprio pensamento, num determinado momento. Estou aberto ao debate e ao confronto de ideias...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 7 de janeiro de 2015
12 FEVEREIRO 2006
218) Sobre a intolerância
Religiões são construções humanas, profundamente humanas (no sentido social ou “societal”, da palavra). Elas podem ter sido elaboradas por algum “profeta” individual, mas são mais exatamente uma construção envolvendo mais de um ator. Como resultado de seu processo de “fabricação”, elas guardam íntima relação com os valores e as crenças normalmente partilhados por uma dada sociedade num determinado momento histórico. Este é o caso das grandes religiões modernas – cristianismo, islamismo, budismo –, criadas entre os últimos séculos da antiguidade (inclusive o judaismo moderno) e os primeiros séculos da “era Cristã” (não há como evitar, aqui, o padrão universal de contagem do tempo, criado pelo cristianismo, uma das mais poderosas forças sociais de todo o mundo). Excluo das presentes considerações o hinduismo, que não se tornou tão “universal” como as duas grandes religiões concorrentes, o cristianismo e o islamismo. Todas as grandes religiões apresentam “benfeitorias”, do ponto de vista da “ideologia” e da “vida social” de uma certa época, sem o que elas não teriam tido sucesso e se disseminado de modo tão amplo. Nem todas essas benfeitorias representam, contudo, progresso absoluto do ponto de vista dos direitos humanos e dos direitos da mulher, mais especificamente, se é possível aceitar o conceito de “progresso” num sentido lato (não parece haver progresso moral da humanidade, stricto senso, como uma interpretação estritamente darwinista da vida social poderia deixar entender). O judaismo, por exemplo, ao ressaltar os valores da vida humana, da igualdade entre os seres, da submissão a um conjunto de regras para a conduta em sociedade – como evidenciado na lei mosaica –, representou um progresso em relação às religiões de cunho vingativo então existentes. O cristianismo, por sua vez, enfatizou a fraternidade dos homens, ao amor ao próximo, o perdão e a caridade como “benfeitorias” que muito fizeram para elevar o padrão moral da humanidade. Da mesma forma, o budismo trouxe o respeito à vida humana, ou melhor, a qualquer forma de vida a um patamar certamente elevado, enfatizando, como o cristianismo, o respeito a todo ser humano, como pincípio universalmente válido. Essas três religiões me parecem assumir plenamente a tolerância como regra de conduta válida na vida social, mesmo se variantes “fundamentalistas” do cristianismo militante (“evangelizador”, ou de “conversão”) tenham conspurcado a mensagem cristã da aceitação das opiniões de terceiros. Em momentos diversos de suas trajetórias históricas, as sociedades que abrigaram essas três grandes religiões com vocação “universalista” passaram por processos reais de secularização e de laicização que diminuiram em muito o papel da religião (e da liturgia, isto é a forma organizada e talvez “burocratizada” da religião) na organização da vida social, na socialização das pessoas, na condução da vida diária. A religião passou à esfera do privado e a vida política e social passou a ser organizada em bases legais e racionais. Este “caminho weberiano” não parece ter sido experimentado, ainda, pelo islamismo, que permanece como um “bloco” indivisível e praticamente impermeável a variações interpretativas. Não houve, como na história do cristianismo, por exemplo, nenhuma divisão entre escolas dotadas de liturgias diferentes (como ocorreu, primeiro, com a cisão entre ortodoxia e catolicismo, depois com a divisão deste na reforma protestante). O islamismo “penetra” e domina a vida individual como nenhuma outra religião de vocação universalista o faz. Ele comanda uma submissão total, ocupando não apenas os espaços da vida familiar e social, mas também, em grande medida, os campos político e econômico. Mesmo sociedades islâmicas contemporâneas que passaram por processos de relativa secularização ressentem uma enorme pressão para a aplicação da sharia, isto é, a lei costumeira dos tempos do profeta, cujos princípios parecem ser mais vingativos do que propriamente retributivos. Essa submissão não se submete, ela mesma, ao crivo da razão, isto é, ao trabalho exegético, eventualmente contestador, que caracteriza o cristianismo como um todo. A “profissão” de teólogo, ou intérprete dos preceitos “divinos” – típica dos povos da Bíblia – praticamente inexiste no islamismo, que abriga apenas “conhecedores” da palavra do profeta. Não há propriamente um “diálogo” com deus, ou com seus “intérpretes oficiais”, uma vez que o que está escrito no livro sagrado é considerado como a própria palavra de deus, insuscetível, portanto, de interpretações ou de “aperfeiçoamentos”. A característica mais importante a separar essas religiões, porém, não é apenas a capacidade de interpretar a palavra divina, e sim a faculdade de contestá-la. É possível, dentro da religião cristã, contestar a palavra de Deus, o que pode levar, no máximo, à excomunhão do “incréu”, o que em outros tempos poderia resultar na fogueira. O fato histórico é que essas sociedades evoluiram ao ponto de abolir a condenação da pregação anti-religiosa. É possível ser ateu, iconoclasta, blasfemo militante e até mesmo apóstata, sem incorrer nas iras da lei ou no castigo da instituição religiosa. É possível abandonar ou trocar de religião, sem ter de temer acusação de apostasia ou de crime contra a religião. Nada disso é possível na religião islâmica: viver à margem ou contra a religião é extremamente perigoso, proclamar publicamente apostasia ou blasfêmia constitui um grave crime contra a religião do profeta, passível da pena de morte. Mas é possível, publicamente, em terras do Islã, repudiar a religião cristã, ou qualquer outra, que não a do profeta. É possível, à esposa não muçulmana de um verdadeiro “crente”, conservar a sua fé, mas ela não poderá educar os seus filhos senão na religião do profeta. Trata-se de um verdadeiro “imperialismo” da religião, que assume aspectos por vezes trágico na vida individual ou no relacionamento com pessoas de outros credos. O assunto das charges dinamarquesas, no início de fevereiro de 2006, revelou, por outro lado, todo o potencial de conflito embutido numa religião que pode ser utilizada para fins de mobilização popular. O que esta questão revela é, sobretudo, a intolerância total em relação a “contestações” do sentimento religioso dos seguidores do profeta: mesmo os incréus são passíveis da “pena de morte”, na interpretação dos verdadeiros crentes. Não se trata, aqui, de um “conflito entre civilizações”, como muitos proclamam, mas simplesmente de um conflito entre “religião” e “sociedade”, ou seja, de uma dada configuração da estrutura mental das sociedades islâmicas, que as impede de conciliar, ou mais propriamente de separar, manifestações de pensamento e expressões da crença. Não há fissura entre ambas, daí o totalitarismo da palavra se convertendo em totalitarismo da ação. Isso se chama intolerância. Ela constitui, no meu modo de ver, uma das mais poderosas barreiras ao necessário processo de “aggiornamento” do islamismo, sem o qual ele será incapaz de juntar às correntes modernas de produção científica e intelectual, ou de oferecer um terreno seguro para o desenvolvimento de formas de organização políticas mais democráticas e abertas à inovação e à criatividade individuais. Essa é uma batalha que vai separar profundamente o islamismo, mas que terá de ser travada algum dia.
Brasília, 12 de fevereiro de 2006
P.S.: Remeto, igualmente, a meu artigo “Tradicionalismo e modernização nas sociedades islâmicas: uma impossível transição entre o fundamentalismo e a tolerância?”,Espaço Acadêmico(Ano I, nº 6, novembro de 2001;http://www.espacoacademico.com.br/06almeida_isla.htm).
Mesmo não aderindo às teses de Samuel Huntington, sobre o conflito de civilizações, parece que existe, tanto no caso do recente atentado contra os jornalistas de Charlie Hebdo, em Paris (na manhã de 7 de dezembro de 2015), quanto no caso anterior dos cartoons sobre o profeta Maomé num jornal dinamarquês, um claro conflito entre duas noções do mundo: uma que é baseada (não sem conflitos) na liberdade total de crítica às religiões, e outra que vê como uma grave ofensa qualquer crítica ou zombaria às religiões, ou a uma religião em particular.
Justamente, sobre o caso precedente dos cartoons dinamarqueses, eu havia escrito um texto, publicado unicamenente num antigo blog meu, do qual me lembrei agora.
Eis a ficha do trabalho:
Sem pretender "reanimar" o conflito, vou postar novamente aqui estas notas, como simples curiosidade. Mas, na mesma época, acabei divulgando outros textos, que também talvez seja o caso de reler agora:
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 7 de dezembro de 2015
Clash of civilization (this time for real...)
Paulo Roberto de Almeida (2006)
Parece que o conflito teorizado por
Samuel Huntington passou da fase latente para o estado de guerra larvar: mais
jornais ocidentais publicam as charges veiculadas num jornal dinamarquês e o
debate se instalou de vez sobre a liberdade de expressão e o respeito às
sensibilidades religiosas.
Mas o que houve, finalmente?
O problema começou, há vários meses,
com duas polêmicas charges de Maomé publicadas originalmente num jornal
dinamarquês e que têm gerado protestos em todo o mundo islâmico.
Num dos desenhos, Maomé pede aos
terroristas islâmicos que parem com os atentados, porque já não há virgens
suficientes no Paraíso. No outro, o profeta aparece com uma bomba no turbante.
Confesso que ainda não vi essas
caricaturas: não tive tempo de buscar, nem tenho interesse real em vê-las. Meu
interesse aqui é outro: discutir os limites recíprocos entre liberdade de
expressão e manifestação de sentimento religioso.
Jornais ocidentais publicam dezenas de
charges, ironizando prelados católicos, criticando padres de comportamento
duvidoso e fazendo troça com o próprio Papa. Nada disso gera comoção ou
tumulto, no máximo algum protesto localizado.
No mundo ocidental, em geral, é assim:
a liberdade de expressão é praticamente absoluta, consituindo um dos valores
fundamentais de seus regimes democráticos, algo praticamente inexistente em
vários países islâmicos. Em caso de abuso desse direito, os atingidos têm
também o direito de buscar justiça nos tribunais.
Os muçulmanos que se sentiram ofendidos
dizem que a religião islâmica proibe a reprodução pictorial do profeta e de
qualquer outra forma de vida. Dizem que não se pode reproduzir uma criação de
Alá.
Parece-me que existe aqui um problema
real de conflito de civilização, mas ele não se dá entre o islâmismo e as
demais correntes religiosas existentes no mundo, e sim dentro da própria
civilização islâmica. Daí o singular, utilizado em meu título, diferente do
conceito no plural empregado por Huntington.
Parece evidente que a arte pictórica
existia antes da criação da religião islâmica, historicamente datada em torno
do século VII da era cristã. Ela continuou a existir durante a vida do profeta
Maomé e mesmo depois que seus ensinamentos foram propagados, sendo exercida,
por exemplo, em sociedades islamizadas como a Pérsia, que cultivou a arte
pictórica dentro da religião islâmica.
É bem verdade que muitos desses
desenhos e pinturas tiveram depois as faces do profeta ou de outros personagens
humanos apagadas dessas obras de arte, como vemos em muitas obras de arte de
museus ocidentais e mesmo em museus de sociedades islâmicas. Trata-se de um
esforço de "descontruir" obras de arte feitas dentro de sociedades
islâmicas, por alguns intérpretes zelosos de alguns preceitos do Corão.
Se o sentimento religioso dos
muçulmanos impede a reprodução de personagens humanos (e também de plantas e
animais) isto deve ser considerado uma particularidade de sua religião, nos
lugares nos quais ela é estritamente aplicada, mas obviamente esse tipo de
prática não pode ter validade universal.
Aliás a proibição de reprodução de
seres humanos, assim como de quaisquer outros seres vivos, atua, em minha
opinião, como um sério impedimento ao desenvolvimento das ciências naturais
(biológicas em especial), dificultando a apreensão de disciplinas científicas
que se apoiam na reprodução de corpos e partes de corpos de seres vivos para o
aprendizado de sua manipulação (para fins médicos e econômicos).
Trata-se, ao meu ver, de um grave
conflito – existem outros, mas não pretendo agora debruçar-me sobre eles – que
divide as sociedades islâmicas, internamente e em relação a outras sociedades
humanas. Uma interpretação rigorosa de determinadas preceitos, ou de fato a
ausência mesmo de possibililidade de interpretação – aquilo que na tradição
cristã é conhecido por “exegese” –, dificulta a modernização das sociedades
islâmicas e o seu relacionamento com as demais sociedades humanas, aderentes a
outras correntes religiosas.
Esse problema terá de ser resolvido
pelos próprios muçulmanos, uma vez que a origem do problema – ou seja, o
conjunto de proibições – deriva de sua própria forma de encarar a religião, e
não decorre do comportamento de outras crenças religiosas.
Quanto às sensibilidades religiosas,
pode-se admitir que um cristão aderente se sinta ofendido por alguma charge
ironizando Cristo na cruz, por alguma caricatura maldosa de padres
“desviantes”, mas não se tem notícia de redações de jornais incendiadas por
isso, ou de assassinatos de caricaturistas por suposta ofensa aos “sentimentos
cristãos”. Mas, já tivemos exemplos de ocidentais assassinados por
fundamentalistas islâmicos – um último eloquente exemplo foi o de um cineasta
holandês, Theo Van Gogh, por ter feito um documentário sobre práticas
costumeiras em algumas sociedades islâmicas – como protesto contra um suposto
atentado a “valores islâmicos”.
Quer me parecer que estamos, de fato,
em face de um grave problema civilizatório...
Post scriptum em 6 Fev 06: Tendo em
vista que o site original de publicação das charges foi descontinuado, um outro
site ofereceu-se para mantê-los on-line. Sem qualquer desejo de ofender
ninguém, e tendo verificado sua relativa inocuidade, indico aqui o link de
acesso a essas charges: http://cryptome.org/muhammad.htm
O Oriente Médio, palco de incessantes conflitos com profundas raízes históricas, viu surgir recentemente um ator que é motivo de preocupação tanto regional quanto internacionaljá que prega a abolição de fronteiras, o desmantelamento dos estados nacionais e a imposição estrita da sharia, a lei islâmica. Trata-se do grupo que ficou conhecido como ISIS ou ISIL, siglas referentes às denominações de Islamic State of Iraq and Syria ou Islamic State of Iraq and Levant,uma organização muçulmana sunita que defende a jihad para alcançar seu objetivo final, o retorno ao califado extinto em 1924, e que deverá se sobreporà ideia de pertencimento nacional. Para o ISIS o califado, e portanto aumma, comunidade dos muçulmanos, é a única referência legítima de união dos fiéis.
A decisão das lideranças do ISIS de apoiar os rebeldes sírios coloca o grupogeograficamentepróximo ao Iraque cujo governo xiita tem discriminado sua população sunita. Esta, então, tende a ver os jihadistas com certa simpatia. Além disto, fazendo causa comum com os rebeldes que desejam a queda do ditador sírio Assad, o ISIS se fortalece,levantando uma bandeira que não necessariamente tem a ver com o fundamentalismo religioso mas que, no momento atual,granjeia diversos apoios. O sucesso do grupo na região e sua eventual chegada a um poder, ainda que parcial, na Síria ou no Iraque, onde játomou territórios, poderá conduzir à consolidação do sunismo em sua vertente mais radicale, numa etapa seguinte, a um estrito controle não apenas político mas de comportamentosdos próprios sunitas moderados.
Uma das vozes mais lúcidas no Iraque tem sido a do Grande Aiatolá Ali al-Husayni al-Sistanique no passado foi duramente perseguido pelos sunitas no governo de Saddam Hussein. Al-Sistani pertence à corrente denominada “quietista” do xiismo, com pouco envolvimento em assuntos políticos, mas tem insistidona necessidade de que o Iraque impeça o avanço do ISIS em suas fronteiras, o que o grupo vem fazendo a partir de suas bases na Síria. Eleargumenta que a luta contra o ISIS deve ser de todos e não apenas dos xiitas pois o projeto do califadolevará ao fim das nacionalidades e consequentemente do Iraque como país.Como pode ser visto na versão eletrônica do jornal libanês Daily Star, o ISIS distribuiu fotos mostrando sua ação nas fronteiras da Síria e do Iraque, sob o título de Smashing the Sykes-Picot border, uma clara contestação das fronteiras do Oriente Médio (Daily Star, 2014). Al Sistani conclamou a população a se unir contra este tipo de agressão que, segundo ele, coloca em risco a independência do país que é múltiplo tanto do ponto de vista religioso quanto étnico. De acordo com suas próprias palavras: “Nossa chamada [à luta contra o ISIS] foi para todos os iraquianos e não para uma seita particular [a dos xiitas]” (NPR, 2014).
O atual governo iraquiano do Primeiro MinistroNuri al-Maliki, porém, não tem dialogado comos demais grupos do país e são constantes as críticasda parte de curdos, de árabes sunitas, de cristãos e até mesmo de outros xiitas.A brigada Mahdi, criada pelo clérigoMuqtada al-Sadr em 2003,e que enfrentou as forças americanas após a invasão,está entre os que não confiam em al-Maliki,declarando que combaterá os jihadistas sunitas mas sem nenhuma associação com o atual governo.
Com o avanço do ISIS no norte e oeste do Iraque e com a tomada de Mosul, a segunda maior cidade do país, estratégica em virtude de seus poços de petróleo, os jihadistas passaram a ameaçar diretamente as populações curdas e cristãs.O líder curdo Massoud Barzani declarou, no dia 27 de junho, que não pretende abrir mão do controle de Kirkuk,uma rica cidade multiétnica que os curdos,graças às suas bem equipadas forças militares, conseguiram defender dos violentos ataques do ISIS (Daily News, 2014). No rastro, portanto, destes enfrentamentos, os curdos do Iraque reafirmaram sua autonomia e se posicionaram de modo a deixar claro seu peso estratégico e político. Bem organizados e acostumados a viver em prontidão, são essenciais na defesa das fronteiras do norte do país, e o primeiro ministro al-Maliki ou qualquer outro governo que o suceda, não poderáprescindir de seu auxilio.
Vali Nasr, analista atento das questões sectárias no Oriente Médio já se referiu, antes mesmo da emergência do ISIS, à difícil situação que se delineava no Iraque com aascensão ao poder dos xiitas, majoritários no país. Para Nasr, durante a fase inicial de reestruturação após a derrubada de Saddam, os grupos xiitas consideraram o novo Estado como o “seu estado” enquanto para os sunitas, as forças de segurança que estavam se organizando eram xiitas, e não nacionais.Os confrontos foram frequentes e as divergências sectárias se mantiveram constantes (Nasr, 2006).
Com tantos conflitos, não é de se admirar que o ISIS tire partido da situação para fomentar o desmembramento do Iraque, o que servirá a seu propósito de enfraquecer sentimentosnacionais que possam se sobrepor à ideia do califado. No entanto, como o grupo jihadistaameaça outros poderes também sunitas,comoa Jordânia, a Arábia Saudita e a Turquia, é possível que se aperte o cerco a ele, com apoios heterogêneos em torno do inimigo comum.
Os Estados Unidos continuam, ainda que de forma limitada, a auxiliar os rebeldes da Síria e apostam na possibilidade de que os grupos moderados venham a derrubar Assad. Trata-se, porém, de um cálculo perigoso que pode levar à abertura de maisespaço para o ISIS dentro do país. A Turquia teme a fragmentação do Iraque e o fortalecimento das reivindicações independentistas curdas nas suas fronteiras. O crescimento do fundamentalismo interno também é motivo de preocupação na sociedade turca e um hipotético retorno ao califado questionará, em última análise, todo o seu processo de modernização no decorrer do século XX, bem como sua aproximação com a Europa. Quanto aos xiitas iranianos e iraquianos, sua preocupação maior é o crescimento do terrorismo jihadista por parte dos sunitas radicais que atacam com muita frequência
mesquitas e outros lugares sagrados do xiismo.
Entre as informações mais recentes chegadas da região está a de que o atual governo do Iraque, embora alinhado aos americanos, começa a demonstrar simpatia pelas ações de Assad no combate ao ISIS. Al-Maliki declarou ao BBC’s Arabic Service que apoia os ataquesaéreos que o governo sírio realiza na fronteira entre o Iraque e a Síria (BBC, 2014).
Neste contexto, o que se pode esperar, no Iraque, é o acirramento da violência sectária, e na Síria, o fortalecimento de Assad que cada vez mais contará com o apoio dos xiitas iranianos e mesmo iraquianos, como al-Maliki já sinalizou. Quanto ao Irã, este pode se beneficiar de um certo alívio das pressões norte-americanas na medida em que se torneum ator importante para conter a agressiva expansão do ISIS.
Nas próximas semanas deve haver uma recomposição de forças que inclua diversos países na tentativa de assegurar as fronteiras iraquianas mas também de impedir que o grupo fundamentalista se apodere de todas as ações contra Assad. Os Estados Unidos continuam fornecendo alguma ajuda aos rebeldes sírios moderados, o que, no entanto, talvez já seja um pouco tarde dada a considerável infiltração do radicalismo do ISIS no país.No Iraque, é possível que se tente um governo de união nacional e al-Maliki poderá ter dificuldades para se manter no poder, já que desagrada não apenas a curdos e sunitas mas também a diversos grupos xiitas, tendo recusado por diversas vezes o pedido de um encontro da parte do respeitado aiatolá Sistani. São muitas as mudanças que podemocorrer e é difícil fazer previsões de médio prazo para um conflito de tamanha complexidade. A única certeza é a de que o atual equilíbrio de forças na região dificilmente se manterá por muito temposemalterações significativas.
Carmen Lícia Palazzo é Doutora em História pela Universidade de Brasília -mUnB, Pesquisadora associada do Centro Universitário de Brasília – UniCeub, Consultora do PEJ/UnB e Pesquisadora do Grupo Officium da Universidade Federal da Paraíba – UFPB (carmenlicia@gmail.com).