SEGUNDA-FEIRA,
12 DE JUNHO DE 2017
Estado e economia na
visão libera
Texto de Carlos Alberto Montaner,
publicado pelo Instituto Millenium, aborda as ideias liberais sobre Estado,
economia, liberdade etc. E faz bem em frisar: o liberalismo não é ideologia,
pois não é pacote fechado:
O liberalismo é um modo de
entender a natureza humana e uma proposta destinada a possibilitar que todos
alcancem o mais alto nível de prosperidade de acordo com seu potencial (em
razão de seus valores, atividades e conhecimentos), com o maior grau de liberdade
possível, em uma sociedade que reduza ao mínimo os inevitáveis conflitos
sociais. Ao mesmo tempo, o liberalismo se apóia em dois aspectos vitais que dão
forma a seu perfil: a tolerância e a confiança na força da razão.
Em quais
ideias se baseia o liberalismo?
O liberalismo se baseia em quatro
simples premissas básicas:
– Os liberais acreditam que o
Estado foi criado para servir ao indivíduo, e não o contrário. Os liberais
consideram o exercício da liberdade individual como algo intrinsecamente bom,
como uma condição insubstituível para alcançar níveis ótimos de progresso.
Dentre outras, a liberdade de possuir bens (o direito à propriedade privada)
parece-lhes fundamental, já que sem ela o indivíduo se encontra permanentemente
à mercê do Estado.
– Portanto, os liberais também
acreditam na responsabilidade individual. Não pode haver liberdade sem
responsabilidade. Os indivíduos são (ou deveriam ser) responsáveis por seus
atos, tendo o dever de considerar as conseqüências de suas decisões e os
direitos dos demais indivíduos.
– Justamente para regular os
direitos e deveres do indivíduo em relação a terceiros, os liberais acreditam
no Estado de direito. Isto é, crêem em uma sociedade governada por leis
neutras, que não favoreçam pessoas, partido ou grupo algum, e que evitem de
modo enérgico os privilégios.
– Os liberais também acreditam que
a sociedade deve controlar rigorosamente as atividades dos governos e o
funcionamento das instituições do Estado.
O liberalismo
é uma ideologia?
Não. Os liberais têm certas ideias
– ratificadas pela experiência – sobre como e por que alguns povos alcançam
maior grau de eficiência e desenvolvimento, ou a melhor harmonia social, mas a
essência desse modo de encarar a política e a economia repousa no fato de não
planejar de antemão a trajetória da sociedade, mas em liberar as forças criativas
dos grupos e dos indivíduos para que estes decidam espontaneamente o curso da
história. Os liberais não têm um plano que determine o destino da sociedade, e
até lhes parece perigoso que outros tenham tais planos e se arroguem o direito
de decidir o caminho que todos devemos seguir.
Quais são as
ideias econômicas em que se baseiam os liberais?
A ideia mais marcante é a que
defende o livre mercado, em lugar da planificação estatal. Já na década de 20 o
filósofo liberal austríaco Ludwig von Mises demonstrou que, nas sociedades
complexas, não seria possível planejar de modo centralizado o desenvolvimento,
já que o cálculo econômico seria impossível. Mises afirmou com muita precisão
(contrariando as correntes socialistas e populistas da época) que qualquer
tentativa de fixar artificialmente a quantidade de bens e serviços a serem
produzidos, assim como os preços correspondentes, conduziria ao
desabastecimento e à pobreza.
Von Mises demonstrou que o mercado
(a livre concorrência nas atividades econômicas por parte de milhões de pessoas
que tomam constantemente milhões de decisões voltadas à satisfação de suas
necessidades da melhor maneira possível) gerava uma ordem natural espontânea
infinitamente mais harmoniosa e criadora de riquezas que a ordem artificial
daqueles que pretendiam planificar e dirigir a atividades econômica.
Obviamente, daí se depreende que os liberais, em linhas gerais, não acreditam
em controle de preços e salários, nem em subsídios que privilegiam uma
atividade em detrimento das demais.
O mercado, em
sua livre concorrência, não conduziria à pobreza de uns em benefício de outros?
Absolutamente não. Quando as
pessoas, atuando dentro das regras do jogo, buscam seu próprio bem-estar
costumam beneficiar a coletividade. Outro grande filósofo liberal, Joseph
Schumpeter, também austríaco, estabeleceu que não há estímulo mais positivo
para a economia do que a atividade incessante dos empresários e industriais que
seguem o impulso de suas próprias urgência psicológicas e emocionais. Os benefícios
coletivos que derivam da ambição pessoal superam em muito o fato, também
indubitável, de que surgem diferenças no grau de acúmulo de riquezas entre os
diferentes membros de uma comunidade. Porém, quem melhor resumiu tal situação
foi um dos líderes chineses da era pós-maoísta ao reconhecer, melancolicamente,
que “ao impedir que uns poucos chineses andassem de Rolls Royce, condenamos
centenas de milhões de pessoas a utilizar bicicletas para sempre”.
Se o papel do
Estado não é planejar a economia nem construir uma sociedade igualitária, qual
seria sua principal função de acordo com os liberais?
Essencialmente, a principal função
do Estado deve ser a de manter a ordem e garantir que as leis sejam cumpridas.
A igualdade que os liberais almejam não é a utopia de que todos obtenham os
mesmos resultados, e sim a de que todos tenham as mesmas possibilidades de
lutar para conseguir os melhores resultados. Nesse sentido, uma boa educação e
uma boa saúde devem ser os pontos de partida para uma vida melhor.
O liberalismo é um modo de
entender a natureza humana e uma proposta destinada a possibilitar que todos
alcancem o mais alto nível de prosperidade de acordo com seu potencial.
Como deve ser
o Estado idealizado pelos liberais?
Assim como os liberais têm suas
próprias ideias sobre a economia, também possuem sua visão particular do
Estado: os liberais são inequivocamente democratas, acreditando no governo
eleito pela maioria dentro de parâmetros jurídicos que respeitem os direitos
inalienáveis das minorias. Tal democracia, para que faça jus ao nome, deve ser
multipartidária e organizar-se de acordo com o princípio da divisão de poderes.
Embora esta não seja uma condição
indispensável, os liberais preferem o sistema parlamentar de governo porque
este reflete melhor a diversidade da sociedade e é mais flexível no que se
refere à possibilidade de mudanças de governo quando a opinião publica assim o
exigir.
Por outro lado, o liberalismo
contemporâneo tem gerado fecundas reflexões sobre como devem ser as
constituições. Friedrich von Hayek, Prêmio Nobel de economia, produziu obras
muito esclarecedoras a esse respeito. Mais recentemente, Ronald Coase, também
agraciado com o Prêmio Nobel (1991), tratou em seus trabalhos da relação entre a
lei, a propriedade intelectual e o desenvolvimento econômico.
Essa é a
ideia sucinta de Estado liberal; mas como os liberais vêem o governo, ou seja,
aquele grupo de pessoas selecionadas para administrar o Estado?
Os liberais acreditam que o
governo deve ser reduzido, porque a experiência lhes ensinou que as burocracias
estatais tendem a crescer parasitariamente, ou passam a abusar dos poderes que
lhes são conferidos e empregam mal os recursos da sociedade.
Porém, o fato de que o governo
tenha tamanho reduzido não quer dizer que ele deva ser débil. Pelo contrário,
deve ser forte para fazer cumprir a lei, manter a paz e a concórdia entre os
cidadãos e proteger a nação de ameaças externas.
Um governo
com essas características não estaria abdicando da função que lhe foi
atribuída, de redistribuir as riquezas, eliminar as injustiças e de ser o motor
da economia?
Os liberais consideram que, na
prática, infelizmente os governos não costumam representar os interesses de
toda a sociedade, e sim que se habituam a privilegiar seus eleitores ou
determinados grupos de pressão. Os liberais, de certa forma, suspeitam das
intenções da classe política e não têm muitas ilusões a respeito da eficiência
dos governos. Por isso o liberalismo sempre se coloca na posição de crítico
permanente das funções dos servidores públicos, razão pela qual vê com grande
ceticismo essa função do governo de redistribuidor da renda, eliminador de
injustiças ou “motor da economia”.
Outro grande pensador liberal,
James Buchanan, Prêmio Nobel de economia e membro da escola da Public Choice
(Escolha Pública), originária de sua cátedra na Universidade de Virgínia, EUA,
desenvolveu esse tema mais profundamente. Resumindo suas ideias sobre o
assunto, qualquer decisão do governo acarreta um custo perfeitamente
quantificável, e os cidadãos têm o dever e o direito de exigir que os gastos
públicos revertam em benefício da sociedade como um todo, e não dos interesses
dos políticos.
Isso quer
dizer que os liberais não atribuem ao governo a responsabilidade de lutar pela
justiça social?
Os liberais preferem que essa
responsabilidade repouse nos ombros da sociedade civil e se canalize por
intermédio da iniciativa privada, e não por meio de governos perdulários e
incompetentes, que não sofrem as conseqüências da freqüente irresponsabilidade
dos burocratas ou de políticos eleitos menos cuidadosos.
Finalmente, não há nenhuma razão
especial que justifique que os governos se dediquem obrigatoriamente a tarefas
como transportar pessoas pelas estradas, limpar as ruas ou vacinar contra o
tifo. Tais atividades devem ser bem executadas e ao menor custo possível, mas
seguramente esse tipo de trabalho é feito com muito mais eficiência pelo setor
privado. Quando os liberais defendem a primazia da propriedade não o fazem por
ambição, mas pela convicção de que é infinitamente melhor para os indivíduos e
para o conjunto da sociedade.
Em inglês a
palavra liberal tem aparentemente um significado diverso do que aqui se
descreve. Em que se diferencia o liberalismo norte-americano daquilo que na
Europa ou na América Latina se chama de liberalismo?
O idioma inglês se apropriou da
palavra liberal do espanhol e lhe deu um significado diferente. Em linhas
gerais, pode-se dizer que em matéria de economia o liberalismo europeu ou
latino-americano é muito diferente do liberalismo norte-americano. Isto é, o
liberal norte-americano costuma tirar a responsabilidade dos indivíduos e
passá-la ao Estado. Daí o conceito de estado de bem-estar social ou “welfare
state”, que redistribui por meio de pressões fiscais as riquezas geradas pela
sociedade. Para os liberais latino-americanos e europeus, como se viu antes,
esta não é uma função primordial do Estado, pois o que se consegue por essa via
não é um maior grau de justiça social, mas apenas níveis geralmente
insuportáveis de corrupção, ineficiência e mau uso de verbas públicas, o que
acaba por empobrecer o conjunto da população.
De qualquer forma, o pensamento
dos liberais europeus e latino-americanos coincide com o dos liberais
norte-americanos em matéria jurídica e em certos temas sociais. Para os
liberais norte-americanos, europeus e latino-americanos o respeito das
garantias individuais e a defesa do constitucionalismo são conquistas
irrenunciáveis da humanidade.
Qual a
diferença entre o liberalismo e a social-democracia?
A social-democracia realça a busca
de uma sociedade igualitária, e costuma identificar os interesses do Estado com
os dos setores proletários ou assalariados. O liberalismo, por seu turno, não é
classista e sobrepõe a seus objetivos e valores a busca da liberdade
individual.
Em que se diferenciam
os liberais dos conservadores?
Embora haja uma certa coincidência
entre liberais e conservadores no que se refere à análise econômica, as duas
correntes se separam no campo das liberdades individuais. Para os conservadores
o mais importante é a ordem; já os liberais estão dispostos a conviver com
aquilo de que não gostam e são sempre capazes de tolerar respeitosamente os
comportamentos sociais que se afastam dos padrões das maiorias. Para os
liberais, a tolerância é a chave da convivência, e a persuasão é o elemento
básico para o estabelecimento das hierarquias. Essa visão nem sempre prevalece
entre os conservadores.
Em que se
diferenciam os liberais dos democrata-cristãos?
Mesmo quando a democracia cristã
moderna não é confessional, uma certa concepção transcendental dos seres humanos
aparece entre suas premissas básicas. Os liberais, por sua vez, são totalmente
laicos e não julgam as crenças religiosas das pessoas. Pode-se perfeitamente
ser liberal e crente, liberal e agnóstico ou liberal e ateu. A religião
simplesmente não pertence ao mundo das preocupações liberais (ao menos em
nossos dias), embora seja essencial para o liberal respeitar profundamente esse
aspecto da natureza humana. Por outro lado, os liberais não compartilham com a
democracia cristã (ou, pelo menos, com algumas das tendências que se abrigam
sob esse nome) um certo dirigismo econômico que normalmente é chamado de
social-cristianismo.
Este texto, publicado em português pelo
Instituto Liberal, é uma tradução de “¿Que és el liberalismo?”, originalmente
publicado em Tópicos de Actualidad, do Centro de Estudios Economicos-Sociales.
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