Ricardo Lobo Torres e o direito ao mínimo existencial
Ricardo Lobo Torres (que faleceu em 2018) deixou-nos extensa bibliografia de Direito Tributário. Sua obra, no entanto, é marcada por aliciantes intervenções filosóficas. Deve-se essa característica, creio, à sua dupla formação: licenciou-se em Filosofia (1962/UERJ), bacharelou-se em Direito (1958/UFF) e compôs tese de doutoramento que aproximou esses dois campos (1990/Gama Filho). No doutorado, escreveu sobre a liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal [1].
Foi um pesquisador interdisciplinar. Aproximou o que de comum havia nas disciplinas que explorava e metodicamente estudava. Entre seus livros, deixou-nos "O Direito ao Mínimo Existencial", publicado em 2009 pela Editora Renovar. Há nesse texto uma concepção humanista da normatividade. Lobo Torres compreendia o Direito como uma técnica a serviço da construção de uma sociedade mais justa. No Direito Tributário, contrapunha-se aos positivistas da tipicidade cerrada, defensores de um formalismo intransigente para com qualquer rompimento interpretativo com a legalidade absoluta. Para Lobo Torres, o Direito deveria se orientar para a plena realização dos ideais de dignidade da pessoa humana. Transcendeu seus pares. Era um visionário.
Em "O Direito ao Mínimo Existencial", Lobo Torres especulou em torno de mecanismos de luta contra a exclusão social, as desigualdades e miséria de um modo geral. O que denominava de mínimo existencial comporia núcleo inegociável no conjunto dos direitos fundamentais. O livro foi estruturado em duas sessões. Trata inicialmente da positivação da teoria do mínimo existencial, explicitando conceito, estrutura normativa, bem como valores e princípios jurídicos que o sustentariam e que justificariam sua plena realização. Na segunda sessão trata-se de sua efetividade, com base na doutrina do status, atribuída a Georg Jellinek (1851-1911), autor alemão cujo trabalho Lobo Torres bem conhecia.
Colocando-se a questão em termos mais simples, e no ambiente da tributação, o mínimo existencial consiste na vedação de qualquer forma de tributação que resulte na impossibilidade de uma pessoa hipossuficiente ter acesso a bens e produtos essenciais para a sobrevivência. É relevante quando pensamos em termos de tributação indireta, que atinge bens e serviços. Trata-se da regressividade fiscal: a tributação acaba pesando mais nos mais pobres.
Lobo Torres realçou — do ponto de vista histórico — o papel exercido pela Igreja, incumbindo-se do cuidado para com os pobres. Lembrou que essa formulação poderia ter estimulado a mendicância. É o que justifica (acrescento) o fato de que a mendicância fosse enquadrada entre nós como contravenção penal (decreto-lei 3.688-1941), no núcleo das infrações contra os costumes. É o caso de quem pedia esmolas por "ociosidade ou cupidez". Essa disposição vinha desde o Código Criminal de 1890. Foi revogada em 2009. Também do ponto de vista histórico, Lobo Torres predicou a defesa do mínimo existencial em certa tradição europeia que defendia a tributação progressiva, invocando a autoridade de Jeremias Bentham, de David Hume e de Montesquieu. Estava ao lado dos utilitaristas, dos céticos e dos iluministas.
Exemplificou que entre nós há preocupação com o assunto desde a Constituição de 1824, que dispunha sobre garantia de "socorros públicos" (artigo 179, 31). Lobo Torres mapeou essa tradição, caminhando até o dispositivo constitucional atual sobre erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais (artigo 3º, III). Em seguida, motivou o mínimo existencial em padrões de ética, de liberdade, de felicidade, de igualdade e de dignidade. Entendo que há uma fundamentação metafísica, o que revela influencia kantiana exercida sobre o professor fluminense.
Lobo Torres reconheceu que o mínimo existencial é conceito operacional que carece de conteúdo normativo específico. O assunto é pulverizado, do ponto de vista de suposta definição de campos de estudo. Encontra-se nos Direitos Tributário, Financeiro, Previdenciário, Civil, Penal e Internacional. Em passo reducionista, Lobo Torres afirmou que o mínimo existencial ocuparia posição de centralidade, em torno da qual gravitariam o direito ao desenvolvimento humano, à qualidade de vida e à redistribuição de rendas. A teoria do mínimo existencial seria um subsistema da teoria dos direitos fundamentais.
Revela-se uma teoria normativa, na medida em que dirigida à concretização e eficácia de seus valores. Seria também interpretativa, justamente porque implicaria em determinada compreensão dos direitos fundamentais. Essencialmente, a concepção de mínimo existencial seria dogmática também, porquanto somente se realizaria a partir de disposições legais e de intervenções judiciais. Lobo Torres relacionou o mínimo existencial com as teorias da justiça, com especial atenção às críticas formuladas por Hans Kelsen.
Há uma inegável relação do conceito de mínimo existencial com os postulados do Direito natural, criticados por Kelsen. O Direito natural, afirmou Kelsen, não responderia a uma objeção central, que consiste na impossibilidade de formular normas de conduta reta com caráter geral, válidas em todas as circunstâncias. Isto é, a impossibilidade real de um direito natural imutável levou a uma concepção de Direito natural variável. Para Kelsen, não se consegue fixar um parâmetro comum e constante. Lobo Torres contrapõe-se à essa concepção, invocando o caráter absoluto desse Direito, dada sua inegável dimensão valorativa humana.
Os direitos sociais, concede, estariam sujeitos à reserva do possível, de feição orçamentária. Transpõe-se esse óbice destacando-se o mínimo essencial dessa contingência, de vínculo com os direitos sociais. Discorreu sobre intuições de justiça na tradição filosófica ocidental mais recente, com base em John Rawls, em Robert Alexy e em Jurgen Habermas.
Referiu-se a Rawls a propósito de um quadro protetivo do mínimo social, que visaria a assegurar uma igualdade de oportunidades que seria potencialmente imparcial. Socorre-se também do Tribunal Constitucional Alemão, ao qual imputou, inclusive, a noção mais acabada de reserva do possível. Referiu-se ao julgamento dos alunos aprovados, mas não convocados para a Escola de Medicina. A mera aprovação não garantiria a vaga, por falta de orçamento que garantisse a fruição do curso. Comentou a decisão da Corte Alemã.
Lobo Torres considerou com deferência a obra singular de Ingo Sarlet (a quem prioritariamente dedicou o livro). Ingo, maior autoridade brasileira no assunto, inovou na discussão, apresentando a multidimensionalidade de uma reserva do possível que denominou de "fática". Nesse sentido, há de se considerar aspectos financeiros, orçamentários, de recursos humanos, jurídicos, de competência de entes federados, de direitos conflitantes, de proporcionalidade e de isonomia.
O tipo ideal conceitual — reserva do possível — sujeita-se a fatos concretos, com implicações diretas na aplicação do mínimo existencial, também estruturado na reserva do possível, em seu contexto prático. Lobo Torres insistia na necessidade de se desvencilhar esses dois núcleos conceituais e operativos. Argumentou que a doutrina brasileira "desinterpretou" o conceito de mínimo existencial. Teríamos perdido o sentido originário desse conceito humanista de direito.
De tal modo, argumentou, a estrutura normativa da "reserva do possível" mostra-se como regra (porque demanda subsunção) e não como valor ou princípio. Transita-se no campo dos "limites dos limites", referente à intervenção do Estado, pautada também pela reserva de lei e pelas destinações orçamentárias, em que não há espaço para qualquer forma de discricionariedade.
Lobo Torres defendia a maximização do mínimo existencial com a consequente otimização dos direitos sociais. No plano fático apontava para a teoria das imunidades tributárias. Cuidou de imunidades implícitas (cestas básicas, disposições da legislação do Imposto de Renda, direito à moradia) bem como de imunidades explícitas (acesso à Justiça e certidões, instituições de educação e de assistência social, entidades de previdência privada). Discorreu sobre a legitimação das imunidades, discussão que permanece em aberto na jurisprudência brasileira. Talvez contraditoriamente percebeu no Sistema Único de Saúde-SUS um modelo utópico de gratuidade nos serviços de saúde.
"O Direito ao Mínimo Existencia
l", de Ricardo Lobo Torres, é livro de defesa do resgate humanitário da função do Direito. É documento literário e jurídico de época, datado. Mas, ao mesmo tempo, é presente e permanentemente inspirador. Dessa inspiração recorrente é que se colhe o legado de um grande mestre, de quem sentimos muita saudade.
[1] Dedico esse pequeno ensaio a Agostinho Nascimento Netto, preparadíssimo e estudioso colega na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, com quem comungava imensa admiração e respeito por Ricardo Lobo Torres.
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