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sábado, 27 de fevereiro de 2021

Desafios da pandemia e pós-pandemia para o desenvolvimento da diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

 Desafios da pandemia e pós-pandemia para o desenvolvimento da diplomacia 



Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivonotas para palestra oralfinalidade3º. CONRI; dia 27/02; 20:00hs]

 

O mundo pós-pandemia não será muito diferente do que temos hoje, assim como o mundo pós-Peste Negra, no século XIV, não foi muito diferente daquele que existia no cenário pré-pandemia, que dizimou, ao que parece, entre 25% e 30% da população da Europa ocidental em suas diversas ondas. O que ocorreu foi, se ouso dizer, até “positivo”, uma vez que, com a diminuição de uma oferta abundante de mão-de-obra (que vinha sendo garantida por progressos lentos, mas reais, na produção de alimentos ao longo do período final da Idade Média), tanto o custo do trabalho quanto a produtividade do trabalho registraram ganhos expressivos. Tampouco o mundo pós-Gripe Espanhola, que na verdade era americana em sua origem, foi muito diferente daquele que existia ao final da Grande Guerra, apenas que, talvez, mais propenso a acelerar as pesquisas científicas que levaram, alguns anos depois, a novas vacinas e ao milagroso antibiótico, assim como a melhores cuidados com saneamento básico e medidas associadas a tratamentos preventivos e curativos.

O mundo, tal como ele existe em suas estruturas braudelianas de longa duração, não se altera radicalmente como resultado das pandemias; tampouco as diplomacias nacionais conhecem mudanças significativas, apenas que determinadas tendências existentes são aceleradas, ao passo que outras podem ser relegadas a segundo plano. A Peste Negra trouxe várias mudanças nas relações de trabalho e nos ganhos de produtividade, assim como a Gripe Espanhola gerou progressos gerais nos serviços de saneamento básico e nas instituições estatais cuidando da saúde pública. No plano da psicologia coletiva, o mundo do século XV e o mundo da terceira década do século XX não conheceram mudanças significativas no comportamento das pessoas, dada a tendência a esquecer os horrores vividos, esquecer os mortos e tratar dos sobreviventes e dos novos vivos. A humanidade tende a esquecer grandes tragédias, como ocorreu, talvez, ao final da Grande Guerra e no seguimento do Holocausto da segunda Guerra Mundial, que só começou verdadeiramente a ser relembrado duas ou três décadas depois. Não ocorreu nenhum Tribunal de Nuremberg ao final da Grande Guerra e o que foi realizado em 1945-46 não produziu instituições permanentes de condenação de criminosos de guerra, até o surgimento do mais recente Tribunal Penal Internacional. 

As mudanças foram mais significativas no campo das relações internacionais. A diplomacia da segunda metade do século XX deu grandes passos para aprofundar a nova modalidade do multilateralismo, mas essa já era uma tendência que vinha sendo reforçada desde as grandes conferências do final do século XIX – propriedade intelectual, comunicações, direito internacional da guerra e da paz, acordos setoriais, etc. – e que conheceu um grande impulso com o surgimento da Liga das Nações, mas ela foi mais o resultado dos 14 pontos de Wilson do que da Gripe Espanhola, que começou a se propagar desde que os soldados americanos chegaram à França em 1917; o presidente Wilson pode, aliás, ter sido vítima dessa gripe, pois nunca se recuperou quando retornou de vários meses de estada na Europa. 

O desafio ao principal ponto de seu plano de paz, a própria Liga, veio mais do Senado americano do que da pandemia, e assim parte do grande exercício de “pacificação” das relações internacionais no pós-Grande Guerra se perdeu, inclusive porque surgiram problemas para acomodar os interesses das grandes potências militaristas e fascistas – Itália mussoliniana, Alemanha hitlerista, Japão expansionista e União Soviética stalinista – e o ambiente de crises e depressões econômicas tampouco ajudou no restabelecimento de relações de cooperação entre os principais atores das relações internacionais. Foi preciso uma nova e devastadora guerra, impulsionada por essas mesmas potências desafiadoras para que, a partir de Ialta, Potsdam e San Francisco, se desenhasse uma espécie de “paz cartaginesa”, com a derrota completa, a destruição e ocupação das potências agressoras, que permitiu o surgimento de um arranjo neo-westfaliano capaz de impor a paz e a segurança internacional com base em mecanismos fortemente oligárquicos (como aliás já tinha sido o caso no modelo original do século XVII, em Viena em 1815, e em Paris em 1919). 

Depois de Bretton Woods, os progressos do multilateralismo foram realmente vários e relevantes, embora o processo decisório nas grandes agências do sistema multilateral das Nações Unidas tenha permanecido mais ou menos oligárquico entre 1945 e 1980. Apenas na terceira onda da globalização, as novas dinâmicas econômicas, a partir da consolidação do processo de convergência – depois de quase dois séculos da Grande Divergência –, criaram uma abertura nos processos decisórios, embora tenha sido apenas dez anos atrás que o “resto do mundo” superou, pela primeira vez na história, o pequeno pelotão das economias mais avançadas na formação do PIB global. Esse processo começou nos anos 1960, quando a industrialização das nações periféricas aumenta a participação do Terceiro Mundo na oferta de produtos manufaturados. Desde então, graças sobretudo à Ásia Pacífico, em especial a China, que tinha sido a maior economia mundial até o século XVIII, e a mais avançada cientificamente até o início da era moderna, quando a Europa ocidental conhece sua fulgurante ascensão para a hegemonia mundial. Mas, já no final da Guerra da Secessão, uma nova potência ascendente marca sua presença dominante no contexto da segunda Revolução Industrial. O mundo tinha sido europeu do século XVI ao XIX, e passa a ser americano, a partir do século XX, talvez desde 1898, e mais acentuadamente a partir de 1917, quando os boys desembarcam pela primeira vez nos campos de batalha do velho mundo.

O século americano, inclusive na diplomacia, teve uma vigência de apenas um século, e o século XXI começa pela fulgurante ascensão da China, retomando posições que ela já tinha tido num passado distante. O impacto dessa ascensão será sentido pelo resto do século, mas sua influência nas relações internacionais, e nas práticas diplomáticas, tem muito mais a ver com as dinâmicas econômicas do que com os efeitos sistêmicos da pandemia. Esta será superada em relativamente breve tempo, graças aos avanços fantásticos das tecnologias farmacêuticas, e ela terá consequências sobretudo na aceleração de tendências já presentes anteriormente na economia e na política mundiais, não tanto em mudanças estruturais de grande monta. Ou seja, o mundo não será muito diferente no pós-pandemia, a não ser que diversas atividades – inclusive a diplomacia – terão continuidade no terreno virtual, o que antes seguia um ritmo de tartaruga, dadas as facilidades de transportes e comunicações. A partir de agora, contatos, reuniões e viagens serão mais facilmente substituídos pela versão digital, aliás, com menos despesas e maior frequência.

 

Uma grande consequência tem a ver com a nova geopolítica do restante do século XXI, mas ela depende mais da postura americana no “enfrentamento” da ascensão chinesa do que propriamente das novas modalidades de práticas diplomáticas. Não tenho tempo de desenvolver aqui essa questão, que vem sendo muito mal conduzida pelos acadêmicos dos EUA em relações internacionais, que aparentemente foram contaminados pela paranoia dos generais do Pentágono, na adoção de uma postura confrontacionista em relação à China. Parto do princípio que a segunda Guerra Fria, que tem um caráter sobretudo econômico, já foi vencida pela China, que tem uma estratégia correta, assim como foi a estratégia da Grã-Bretanha no estabelecimento de sua hegemonia no século XIX, que foi a globalização e o livre comércio, assim como a exportação de capitais, assim como a consolidação de meios e instrumentos de pagamentos que mantiveram Londres no centro das relações econômicas mundiais durante um século e meio. O eixo financeiro só se deslocou de Londres para Nova York com o deslanchar da Segunda Guerra Mundial, embora desde a Grande Guerra os EUA já fossem um grande credor e investidor internacional. Esse eixo vai ter uma base sólida na Ásia Pacífico, em especial na China, inclusive por meio de criptomoedas que vão oferecer concorrência ao dólar, dominante neste século americano (e ainda influente nas próximas décadas). 

A própria pandemia revelou enormes fragilidades do sistema americano de saúde, inclusive pelo efeito acrescido da grande desigualdade social que ainda caracteriza o gigante norte-americano, comparativamente a estruturas mais igualitárias na Europa ocidental. Mas a China acaba de proclamar a eliminação da pobreza, ou da miséria, em seu território, o que é um feito extraordinário para um país que tinha falhado sua inserção nas duas primeiras revoluções industriais e que só se encaixou realmente na globalização no decurso da quarta revolução industrial. O mundo do futuro não será necessariamente chinês, mas ele será forçosamente mais diversificado, inclusive com a ascensão do segundo gigante asiático, a Índia, embora ela continua persistentemente protecionista, a ponto de ter preferido não integrar o RCEP, o grande bloco comercial liderado pela China. 

Quanto ao Brasil, ele é a grande decepção mundial nas últimas três ou quatro décadas, e não parece perto de ser capaz de superar suas enormes dificuldades políticas para vencer obstáculos estruturais – educação, produtividade, nova industrialização e redução das desigualdades sociais e regionais – que se opõem à sua inserção econômica global. Na verdade, o Brasil exibe uma não inserção na interdependência mundial, dado seu renitente protecionismo e a introversão típica de um país dotado de elites tacanhas e mesquinhas (não fosse assim não teriam demorado tanto tempo para extinguir o tráfico e abolir a escravidão). No plano diplomático, aliás, o Brasil é um dos raros países no mundo a ter perpetrado uma espécie de suicídio diplomático, ao ter deliberadamente escolhido ser pária, um pouco como a Coreia do Norte e Mianmar. É algo realmente vergonhoso para um país que tinha construído, ao longo dos quase dois séculos de independência, uma diplomacia tida por excelente, e que teve um papel decisivo na construção da nação, como já argumentou o embaixador Rubens Ricupero em sua obra clássica A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (2017). Mas, imagino que sua leitura, atualmente, teria o dom de provocar depressão em boa parte do corpo diplomático profissional, assim como na quase totalidade dos analistas e estudiosos das relações internacionais do Brasil. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3860, 27 de fevereiro de 2021

Texto de apoio para exposição oral de 30 minutos no 3º. Congresso de Relações Internacionais, dia 27/02, 19h45, via WebinarJam;.

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