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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Alain Peyrefitte, Meira Penna e o Mal Latino - Carlos U. Pozzobon, Paulo Roberto de Almeida

 Transcrevo, abaixo, nesta ordem, minha introdução no Facebook à postagem que fiz desta longa matéria que capturei  do grande intelectual e leitor voraz Carlos Pozzobon sobre o intelectual francês Alain Peyrefitte, seguida de considerações intermediárias não constantes do FB, para finalmente reproduzir a matéria de Pozzobon, que republica enorme artigo do embaixador Meira Penna sobre Peyrefitte.

1) Do FB de Paulo Roberto de Almeida:

Excepcional postagem de Carlos U. Pozzobon, transcrevendo artigo de 1999, do saudoso embaixador José Oswaldo de Meira Penna, que por sua vez analisa obras e o pensamento de Alain Peyrefitte, um excepcional intelectual francês que se situa na tradição de Tocqueville e de Max Weber. Minha primeira missão formal na diplomacia brasileira foi ter servido de acompanhante e intérprete a Alain Peyrefitte quando de sua viagem como ministro francês da Justiça, acompanhando a visita oficial do presidente Giscard D’Estaing ao Brasil em 1978. 

Falarei mais sobre essa visita, e sobre o artigo de Meira Penna na transcrição desta matéria em postagem de meu blog Diplomatizzando.

2) Considerações intermediárias:

Em 1977, eu havia recém voltado de um longo exílio na Europa, durante os momentos mais duros da ditadura militar, a qual eu havia combatido no Brasil e no exterior. Resolvi fazer o concurso do Itamaraty, entre outras razões para ver como andava minha ficha no SNI, depois de quase sete anos escrevendo e atuando, sob outros nomes, contra o regime militar. Fui ajudado pelo meu excelente Francês, e por isso me designaram, ainda como terceiro secretário, para ser o acompanhante do ministro Peyrefitte, como informei acima. 

A embaixada francesa cometeu um equívoco ao programar uma reunião de trabalho entre o “ministre de l’Intérieur et Garde des Sceaux” (ministro da Justiça) ao ministro brasileiro do Interior, que nada mais era do que o ministro do Desenvolvimento Regional. A visita principal foi feita ao ministro brasileiro Armando (“Nada a Declarar”) Falcão, um político esperto, mas muito ignorante. Ambos ministros ficaram bastante contentes com meu trabalho de interpretação simultânea, em lugar daquelas interrupções para síntese do que foi dito. Nas etapas de carro oficial, entre uma visita e outra, almoços e recepção oficial no Itamaraty (para a qual comprei um Smoking que só usei uma única vez na vida, a da visita de Giscard), eu ia explicando a Peyrefitte como era o Brasil real, bem diferente da propaganda oficial e ufanista do regime militar, e acredito que ele tenha gostado, pois me elogiou no momento da despedida na Base Militar. Pouco depois da visita encomendei a um colega na Europa um ou dois livros de Peyrefitte.

Sobre o excepcional artigo de Meira Penna dedicado ao grande intelectual francês — a quem só fui conhecer pessoalmente quande minha volta do doutorado e da primeira saída em missão, em 1985, mas já tendo escrito a ele quando ainda era embaixador na Polônia, que eu cobria em meu primeiro serviço no Itamaraty —, eu só discordo de sua visão de Pinochet, um bárbaro militar traidor, que tem muito muito pouco a ver com a transição do Chile a uma economia de melhor qualidade nas políticas públicas, o que só foi obtido depois de algum tempo de percalços na caminhada do país para um tipo de política econômica mais liberal. Como a maior parte dos militares obtusos em economia, o assassino Pinochet tinha uma concepção nazista da economia, feita de preço controlados  e intervenção do Estado na atividade empresarial. Depois de uma crise econômica e da persistência da inflação, e de uma visita de Milton Friedman ao Chile, a convite de ex-alunos de Chicago, professores na Universidad Catolica, Pinochet rendeu-se aos conselhos de alguns empresários para adotar um outro tipo de política econômica, e foi daí que veio o crescimento estilo tigres asiáticos.

No mais estou perfeitamente de acordo com o longo artigo de Meira Penna, que não conhecia, sobre Peyrefitte, com meus enfáticos agradecimentos ao Carlos Pozzobon por tê-lo trazido à tona. Vou buscar na minha caótica biblioteca os livros de Meira Penna e de Peyrefitte e colocá-los juntos.

3) Agora, o menu principal:

12 de fevereiro de 2021

Alain Peyrefitte e a Sociedade de Confiança 

J. O. DE MEIRA PENNA 

Foi diplomata e escreveu livros importantes sobre o Brasil, especialmente Em Berço Explêndido e Opção Preferencial Pela Riqueza, ambos comentados no blog Fragmentos do menu Livros e Mais Livros. Foi aluno e discípulo de Jung na Suíça, e seus livros sempre são introduzidos pelo método da psicologia analítica de seu mestre. Por isso, sua compreensão de nossa herança cultural baseada nos valores da Contra-Reforma são fundamentais para o conhecimento da Identidade Brasileira tanto cultural quanto de nosso psiquismo carregado de atavismos antimodernos. Nascido em 1917 e falecido aos 100 anos de idade, deixou muitos admiradores no meio intelectual brasileiro e seguramente é uma das referências nacionais nos assuntos do século XX. 

A morte de amigos e pessoas ilustres é uma fatalidade com a qual jamais nos reconciliamos. Por mais que saibamos ser parte inevitável da condição humana, o sentimento de revolta que nos atinge é tanto mais pronunciado quanto mais a essa pessoa estamos presos por laços de afeto e admiração. Foi assim que reagi à notícia do falecimento de Alain Peyrefitte, com o qual havia marcado um encontro, no início do mês passado, para comunicar-lhe os esforços do Instituto Liberal do Rio de Janeiro no sentido de publicar um de seus livros. Homem extremamente discreto, até o último momento Peyreffite escondeu a moléstia que o consumia. Disseram-me que na antevéspera de seu falecimento, ainda foi entregar ao editor as provas finais de sua última obra, o terceiro volume de C'Était De Gaulle

Escritor, político ativo e teórico, membro do Institut e da Academia Francesa, senador, oito vezes ministro, maire da cidade medieval de Provins, Peyrefitte era uma combinação excepcional daquele ideal platônico, tão frequentemente frustrado, de filósofo e governante ao mesmo tempo. Julgo que, como amiúde ocorre, acabou preferindo as letras ao exercício do poder. Em sua enormemente prolífica atividade como escritor, dedicou-se a três temas favoritos, com um quarto ocasional. 

Foi em primeiro lugar o cronista de De Gaulle e alguns de seus contemporâneos o compararam a outros, como Commines, Saint Simon e Las Cases, os de Luís XI, Luís XIV e Napoleão. No terceiro volume, por falar nisso, esperemos que faça referência à viagem do general à América do Sul em 1966 em que, presumivelmente, encontraremos observações sobre nosso país. Como historiador de um dos períodos mais importantes da história moderna da França (e da Europa), Peyrefitte tem seu nome já consagrado como intérprete do renascimento de sua pátria após o colapso que a afetou na primeira metade do século. Inicialmente diplomata, formado na famosa ENA, a escola superior que prepara a elite da administração francesa, e havendo alcançado o grau de ministro plenipotenciário, serviu em Bonn, na Cracóvia e na Conferência de Bruxelas após o que, em 1958, entrou para a política, sendo sucessivamente reeleito deputado até tornar-se senador em 1995. 

Como um dos mais fiéis gaullistas, foi ministro da Informação e ministro da Ciência e Tecnologia Atômica (1966/67), em cuja capacidade contribuiu para a entrada da França no clube fechado das potências nucleares. Como ministro da Educação, colocou-se no centro do chienlit estudantil de maio de 1968, que conseguiu conter sem violência. 

Foi como ministro da Justiça (Garde des Sceaux) que Peyrefitte visitou o Brasil, em outubro de 1978, com o presidente Giscard d'Estaing, quando tive a honra de conhecê-lo, interessado como estava em um de seus primeiros e mais importantes livros, Le Mal Français, publicado dois anos antes. Traduzido para o inglês, e para o espanhol e italiano com o título O Mal Latino, tenho tentado em vão interessar editoras brasileiras na soberba análise crítica empreendida por Peyrefitte, já agora como sociólogo, dos fundamentos religiosos, culturais e morais dos males que têm prejudicado o desenvolvimento e a modernização de toda a área latina. 

Tocqueville e Weber 

Revela-se aí fiel discípulo de Tocqueville e Weber. Responsabiliza inclusive a contra-reforma, como fazemos nós, liberais brasileiros, e a tradição do autoritarismo absolutista pelas mazelas que embaraçam, senão impedem, nossa emergência como democracias liberais, abertas ao mercado e sobrepujando o ranço patrimonialista de nossa estrutura social. Creio que em nenhuma outra obra de sociologia as origens de nossos vícios coletivos foram tão objetiva e sabiamente perscrutados em suas profundas raízes culturais ou psicossociais. Talvez seja o vezo weberiano da crítica ao romanismo centralizador e interventor de nossa estrutura sociopolítica o motivo das suspeitas de que alimentasse convicções huguenotes. 

Peyrefitte, infelizmente, não estendeu suas pesquisas sociológicas à América Latina e, particularmente ao Brasil como eu esperava, após a segunda visita que realizou a nosso país, em 1987, a convite do Estado e da Associação Comercial de S. Paulo. Nessa ocasião lhe servi de intérprete, em conferência pronunciada na Avenida Paulista, e de cicerone no Rio e Brasília. Estava, na ocasião, acompanhado do filho mais moço, Benoit. Ao invés, o ilustre acadêmico preferiu desviar sua atenção para um outro tema que desde então o fascinou. 

Paixão de aprender 

Sofrendo, como notou o jornalista e autor liberal Guy Sorman, da "paixão de aprender", Peyrefitte publicou uma série de obras sobre a China, que visitou mais de uma dúzia de vezes. Talvez tenha almejado realizar para os chineses o mesmo que Tocqueville com sua De la Démocratie en Amérique. Em 1973, parafraseando uma frase célebre de Napoleão publicou Quand la Chine s_Éveillera... le Monde Tremblera. Esse livro foi seguido de Chine Immuable, L_Empire Immobile (1989), La Tragédie Chinoise (após o episódio do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial) e de um pequeno ensaio, com fotografias, terminando com La Chine s_Est Éveillée (1996), ocasião em que manteve uma longa entrevista com o atual presidente chinês Jian Zemin. 

Em todos esses ensaios, julgo tenha o autor compensado seu deslumbramento com o Império do Meio (Djung Guó), graças a uma crítica objetiva da complexa problemática levantada pela necessidade da China se abrir ao mundo global, enquanto procura preservar sua identidade confuciana e a difícil unidade do povo de Han, de mais de 1 bilhão de pessoas. 

Teimosia oriental

O Império Imóvel foi publicado em português em 1997 pela Casa Jorge Editorial do Rio. Acompanhado de mais três volumes complementares, relata a embaixada chefiada em 1792/94 por lorde Macartney, na primeira e frustrada tentativa dos ingleses de provocarem a abertura do imenso império, então governado por seu último grande imperador, Kien Long. A China obstinava-se na arrogância de ser a potência mundial hegemônica, postura estimulada pela desconfiança da classe dominante imperial manchu. Os volumes anexos cobrem uma enorme documentação relativa às reações dos jesuítas de Pequim, dos ingleses e dos próprios chineses àquela missão diplomática sui-generis — que demorou dois anos e comportou o envio de uma esquadra e 2.000 homens de comitiva. Macartney não pôde contornar, contudo, a teimosa insistência dos mandarins no sentido de lhe exigir o humilhante kowtow, as nove prosternações diante do Filho do Céu, obrigatórias para os representantes dos vassalos. 

Surpresa 

Peyrefitte manifestou sua surpresa quando descobriu que eu conhecia a extrema pertinência desse episódio, no relacionamento entre o Ocidente e Ásia. Expliquei-lhe que minha carreira se iniciou na China (1940/42 e 1947/49) e que, durante anos, estudei sua história e cultura. O que destaca a tese central da obra é o contraste entre a inflexível imobilidade e introversão autárquica dos chins, postergando durante dois séculos a abertura do Império Central, até o esforço de modernização encetado por Deng Xiaoping — e a flexibilidade com que, em meados do século 19, os japoneses se adaptaram à inevitável globalização. Se o Japão é hoje a segunda potência econômica do mundo enquanto só agora "a China acorda para fazer tremer o mundo", a origem do descompasso se coloca nas peripécias dessa missão diplomática. 

Criminalidade

O quarto tema que interessou o eminente escritor francês foi o problema da Justiça e da criminalidade no mundo moderno, fruto de sua experiência como ministro da Justiça. Les Chevaux du Lac Ladoga — la Justice entre les Extrêmes apareceu em 1982 e lhe custou caro: quase foi morto por uma bomba terrorista que explodiu na frente de sua residência, em Provins, sacrificando seu motorista. Peyrefitte defende uma legislação mais rigorosa contra bandidos, assassinos e terroristas — antecipando a ideia central que estamos emergindo da Idade das Guerras para entrar na Idade do Crime

Mas retornemos agora ao tema principal das preocupações de Peyrefitte, expresso em escritos que vão desde 1947, Le Sentiment de Confiance, ao Du Miracle en Économie e, finalmente, a La Société de Confiance, de 1995. Com tradução patrocinada pelo Instituto Liberal, essa obra será brevemente publicada pela Editora Topbooks, sob o comando esclarecido e corajoso de José Mário Pereira e com tradução primorosa de Cylene Bittencourt. 

Comentemos a questão levantada por Peyrefitte. Num artigo de 2 de março de 1997, Roberto Campos se pergunta por que, apesar das celebrizações de economistas e sociólogos, o desenvolvimento econômico continua a ser essencialmente um mistério. Campos oferece como exemplos de problemas não esclarecidos o despertar da China de um sono de 500 anos, o "milagre brasileiro" da década dos 70 que desembocou na "década perdida" dos 80, e os "dominós" asiáticos que se tornaram "dínamos". 

A pergunta levantada é daquelas a que inúmeros pesquisadores têm tentado responder desde que, em 1776, Adam Smith pesquisou As Causas da Riqueza das Nações, ora salientando o ambiente cultural; ora favorecendo o tipo de estrutura institucional no mercado aberto; ora apontando para a iniciativa de governantes excepcionais que, convencidos dos méritos superiores da receita do livre câmbio sobre o planejamento socialista centralizador e uma pertinaz tradição patrimonialista, tomaram a iniciativa de atos concretos de sábia política, graças aos quais um surto de desenvolvimento milagrosamente se registrou. Estou, neste caso, pensando especialmente em Pinochet, no Chile, e em Deng Xiaoping, na China. As duas nações registram índices inéditos de desenvolvimento acelerado, que a "crise" atual não parece haver senão temporariamente interrompido. 

Um caso particular que desperta nossa curiosidade é o da França. Trata-se, afinal de contas, da quarta economia mundial (depois dos EUA, Japão e Alemanha). É também uma nação que, por não se decidir francamente nem por um lado, nem pelo outro, continua dividida, angustiada e sofrendo de uma espécie de incurável moléstia social. A pátria de Alain Peyrefitte não parece haver superado a fatídica cisão esquerda X direita que a dialética do jacobinismo revolucionário em 1793 engendrou, com seu contraponto no bonapartismo ditatorial; nem tampouco o absolutismo ("O Estado sou Eu") herdado do Rei Sol, Luís XIV. 

Para a integração profícua na comunidade regional e num mundo globalizado, deve todo cidadão convencer-se que a liberdade de iniciativa, a confiança na honestidade dos outros, o espírito inventivo e o estado de direito, forte e limitado, são definidos como as causas da riqueza coletiva — não havendo outras. 

Ora, foi justamente Peyrefitte quem melhor procurou analisar o que chama le mal français. Ao vislumbrar as condições da sociedade de confiança que favorece o progresso, o grande ensaísta enfrentou um de seus maiores desafios. No esforço hercúleo de penetrar no "mistério" ou "milagre" do desenvolvimento (uma de suas obras prévias chama-se, justamente, Du Miracle en Économie), nosso amigo é o maior participante francês num debate ardente que data da publicação, em 1835/40, da Démocratie en Amérique e, em 1905, de um das obras fundamentais da sociologia moderna, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 

Falsidades perversas 

A polêmica que esses livros provocaram muito longe ainda está de se esgotar — e confesso me haver dedicado, com furor, a promovê-la no Brasil. O propósito weberiano era escaparmos das perversas falsidades do determinismo materialista que fez a fortuna inidônea do marxismo. Peyrefitte elaborou extensamente o tema da preeminência dos fatores morais, desde a publicação daquele primeiro título há 20 anos, até seus mais recentes. E é esta obra fundamental precisamente, a Sociedade de Confiança, que foi precedida de um compte-rendu do colóquio internacional, realizado no Institut de France em setembro de 1995 — em que me surpreendendi com a identidade dos problemas levantados, na França e no Brasil, quanto às condições morais e culturais do desenvolvimento e às políticas adequadas a seu sucesso. 

No livro, o pensador francês coroou seu trabalho monumental com um estudo histórico e sociológico exaustivo da ética de livre iniciativa e incentivos ao setor privado da economia, suscetíveis de assegurarem o progresso. Renovando com o inquérito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de descobrir, na liberdade e na simpatia, o segredo do progresso, ele acentua o paralelismo entre o que chama a "divergência" religiosa entre os latinos, autoritários, patrimonialistas e desconfiados — e os holandeses e anglo-saxões, mais liberais, mais tolerantes, mais racionais e livres, e nutrindo maior confiança nos méritos da troca e divisão do trabalho. 

Questão de confiança

A divergência explicaria o ritmo diverso de crescimento e progresso das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um lado, pelos sentimentos de confiança dos cidadãos uns nos outros; e, do outro, pela capacidade do estado de direito de fazer cumprir o princípio pacta sunt servanda. Pois não devem os contratos e a propriedade ser respeitados, sendo a honestidade pressuposto de toda transação econômica? 

O descompasso histórico no ritmo de desenvolvimento se foi acentuando. Peyrefitte compara, por exemplo, o take-off inglês a partir do século 18 com o declínio espanhol. Chegando a nossos dias, diagnostica a mentalidade desconfiada, com o pressuposto generalizado que, até prova em contrário, todo o mundo é desonesto e sem-vergonha, se não pertence a nosso círculo de amizades e família. Os governantes podem ser tacanhos, mas só a eles o povo acredita que cabe a tarefa altruísta de nos salvar do egoísmo entranhado de todo capitalista. E insiste no fato de que a resistência enfadonha a qualquer inovação e o conservadorismo inquisitorial da Igreja cooperam para erguer barreiras burocráticas e impasses legais a qualquer oportunidade de avanço nos países obedientes à ética tridentina sob a qual fomos educados e sofremos. 

Introversão

Peyrefitte amplia e aprofunda estudos setoriais que, em The Moral Basis of a Backward Society, foram realizados pelo sociólogo americano Edward Banfield ao analisar o comportamento familista, desconfiado e introvertido numa aldeia do mezzogiorno italiano, dominada pela Máfia; e pelo nipo-americano Francis Fukuyama que, em seu livro Trust, tenta explicar o sucesso das sociedades da Ásia oriental por motivações oriundas da disciplina da moral confuciana. 

Os dados elementares do desenvolvimento são a liberdade, a criatividade e a responsabilidade. Mas utilizar os recursos da liberdade com autonomia individual e explorar essas virtudes na fase educacional da vida fazem supor uma confiança muito forte no homem, trabalhando dentro das normas de uma sociedade livre. É esse o fator, por excelência, do desenvolvimento. 

Querer o desenvolvimento, o progresso, o enriquecimento do país comporta, na conclusão do livro, a "confiança na confiança". Peyrefitte é otimista. O tom hortativo do trabalho representa o esforço de um homem que, tendo ao morrer alcançado o topo da elite intelectual francesa, incentiva seus compatriotas à superação dos traços culturais viciosos que configuram o "mal francês". Estamos em suma, em presença de um novo Tocqueville cujo valor e reputação tenderão, estou certo, a crescer e se estender fora do âmbito da língua e cultura francesas. 


Publicado em O Estado de S. Paulo, Domingo, 19 de dezembro de 1999


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