http://bndigital.bn.br/francebr/ferdinand_denis_port.htm
Ferdinand Denis
Entre os franceses que seguiram para o Brasil no início do século XIX, Ferdinand Denis (1798-1890) ocupa um lugar excepcional. Após o período de uma estadia que o levou do Rio a Salvador, com uma incursão até Jequitinhonha, e durante o qual teve alguns contatos com os Taunay (1816-1819), ele consagrou uma dezena de obras à apresentação do Brasil aos franceses. A primeira é fruto justamente de uma colaboração com um dos filhos do pintor Nicolas Taunay, Hippolyte, e é publicada no ano da proclamação da independência. Os seis volumes de Le Brésil, ou Histoire, mœurs, usages et coutumes des habitants de ce royaume (Paris: Nepveu, 1822) serão rapidamente condensados em um Résumé de l’Histoire du Brésil, suivi du Résumé de l’Histoire de la Guyane (Paris: Lecointe & Durey, 1825), dessa vez tendo ele como único autor. E depois, após o sucesso dos dois primeiros volumes de Voyage pittoresque, o de Jean-Baptiste Debret e o de Rugendas (1835), virá o seu Brésil, associado à Colombie et Guyanes, de César Famin (Paris: Firmin Didot Frères, col. “L’Univers. Histoire et Description de Tous les Peuples”, 1837).
Por seu desejo de reunir os “documentos que constituem a história”, Ferdinand Denis surge como o pai dos estudos brasileiros na França, o primeiro, por exemplo, a assinar um artigo sobre o Brasil na então recente Revue des Deux Mondes (1831, tomo 2, sobre Saint-Hilaire). Como muitos dos seus livros foram escritos nos anos 20, dentro do contexto perturbado do processo de independência de um país em busca de equilíbrios políticos e identitários, F. Denis se mostra particularmente atento aos diferenciais brasileiros. Ele vai buscar a partir da era colonial as sementes do sentimento nacional que progressivamente vão afastar o território da metrópole portuguesa. Numa época em que a Inglaterra se beneficia de acordos comerciais privilegiados, ele se esforça para brigar pela causa das trocas franco-brasileiras, destacando, sempre que pode, os laços que unem os dois “povos” desde o “descobrimento”: “[…] no Brasil, os franceses são amados, e os ingleses poderosos.” (Résumé…, p. 224). Daí o seu cuidado em realçar os momentos fortes desta relação, como, a partir de fontes do século XVI, em Une Fête Brésilienne, célébrée à Rouen en 1550, suivie d’un fragment du XVIe siècle roulant sur la théogonie des anciens peuples du Brésil, et des poésies en langue tupique de Christovam Valente (Paris: J. Techener, 1850).
O chamado para reequilibrar as relações internacionais em proveito dos franceses não tem apenas um alvo econômico; ele encontra um terreno de expressão simbólica através do indianismo: a especificidade da “nação brasileira” se inscreve em origens ameríndias que havia pouco tempo Chateaubriand se empenhara a enaltecer. Reavivando a chama do primeiro romantismo francês, Ferdinand Denis oscila entre a preservação de culturas ameaçadas de extinção (“[…] possam ser conservadas essas respeitáveis ruínas de nações poderosas!” (Résumé…, p. 124)) e a “pacificação”: “Esperemos que novas tentativas façam a maioria das tribos tomar parte da população ativa e útil.” (Résumé…, p. 242). Atrás desta atividade útil se esboça uma crítica da colonização predatória e um encorajamento ao desenvolvimento através da agricultura e o comércio.
No plano literário, ele vê, na paisagem grandiosa e na generosidade do clima, material para inspirar uma poesia sublime, uma mensagem que em um primeiro momento se destina aos seus compatriotas, mas que chegará também aos brasileiros. Este é o sentido de suas Scènes de la nature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie. Suivies de Camoens et Jozé Indio (Paris: Louis Janet, 1824), ilustração do poder poético daquelas terras e populações exóticas. Na sequência, o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal [suivi du] Résumé de l’histoire littéraire du Brésil (Paris: Lecointe & Durey, 1826) consagra o reconhecimento de uma “jovem” literatura e cristaliza a consciência nacional dos escritores brasileiros. “O pequeno livro de Denis parece hoje insignificante, mas foi sem dúvida o que teve maiores consequências em toda a nossa crítica, porque foi o primeiro a conceber a literatura brasileira como algo diferenciado e a indicar quais deveriam ser os rumos do futuro.”, constata Antônio Cândido (O Romantismo no Brasil, São Paulo: Humanitas-FFLCH/USP, 2002, p. 22.). O pensamento de F. Denis vai de fato nutrir e orientar o programa da geração romântica que, num primeiro momento, se reuniu em torno da revista Nitheroy (1836). Traduzido no Brasil em 1835, este livro entrará para o programa do Imperial Colégio de Pedro II, inaugurado em 1837. Hoje, sem se aperceberem que o que está em jogo é quase sempre a sina de uma construção identitária, certos críticos assinalam o paradoxo de ter exaltado sua singularidade nacional à partir de uma matriz exógena.
Com gosto pelos livros e arquivos, F. Denis trabalhou de 1841 a 1883 na biblioteca Sainte-Geneviève, em Paris, primeiro como funcionário da biblioteca, depois como administrador. Recebendo os visitantes, mantendo uma abundante correspondência, durante estas décadas ele foi um ponto de passagem incontornável de inúmeros franceses, escritores, historiadores ou viajantes, e de brasileiros, entre os quais o próprio Imperador D. Pedro II. Acumulando e exumando vários documentos, ele deixou à biblioteca um acervo importante, somente um pouco disperso, do qual o pintor Cícero Dias estabeleceu um primeiro levantamento: Catalogue du Fonds Ferdinand Denis, Paris: Bibliothèque Sainte-Geneviève & Institut Français des Hautes Études Brésiliennes, 1972.
DOCUMENTOS ANEXOS
As considerações programáticas, e os desdobramentos narrativos de Scènes de la nature…, de F. Denis, sobre os “machakalis” — e em uma medida menor “Palmarès” —, deixam suas marcas na adaptação francesa de Caramuru, de Santa Rita Durão (1871), por Eugène Garay de Monglave, Caramuru ou la découverte de Bahia (Paris: Eugène Renuel, 1829) e no romance de Daniel Gavet e Philippe Boucher, Jakaré-Ouassou ou Les Tupinambas. Chronique brésilienne (Paris: Timothée Dehay, 1830).
O polígrafo Eugène Garay de Monglave (cujo nome verdadeiro era Eugène Moncla, de origem basca), que chegou a pensar em se naturalizar brasileiro, foi próximo de D. Pedro I, de quem traduziu a correspondência com o pai, D. João VI. Frequentou vários círculos institucionais, em particular sendo o secretário perpétuo do Institut Historique de Paris, fundado em dezembro de 1833. Dos cerca de vinte livros que disse querer traduzir, ele conseguiu realizar apenas Marilia (a partir dos poemas de Marilia de Dirceu, do poeta arcadista Tomás Antônio Gonzaga — Paris: C. L. F. Panckoucke, 1825), e o já citado Caramuru, cuja tradução é dedicada à filha do imperador, D. Maria da Glória, futura rainha de Portugal.
Daniel Gavet também passou alguns anos no Brasil, sete precisamente. O prefácio do romance a quatro mãos no qual apareciam em segundo plano o português “Alvarez”-“Caramourou” e sua esposa índia “Paragouaçou”-“Catherine”, proclama o desejo contrariado de ter desejado fazer “apenas uma sequência de quadros de costumes, sob uma forma dramática”, sem “diminuir tudo o que os selvagens e a natureza do Novo Mundo inspiram tão profundamente.” Mas foi preciso criar uma intriga…
Nenhum comentário:
Postar um comentário