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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

O futuro da diplomacia brasileira e mundial, nos próximos anos - Entrevista de Paulo Roberto de Almeida ao jornalista Bruno Cirillo

 Uma entrevista que deveria ter sido editada para publicação na mídia, e que acabou não saindo, por ter sido atropelada pela campanha eleitoral: 

4225. “O futuro da diplomacia brasileira e mundial, nos próximos anos”, Brasília, 29 agosto 2022, 6 p. Comentários em torno de questões colocadas pelo jornalista Bruno Cirillo. Feita gravação via Google Meet (link: https://1drv.ms/u/s!AmN_flw6aTBIjBgh0y_VC6Jw_iwH).

Como sempre faço antes de uma entrevista ou palestra, formulo comentários escritos para meu próprio esclarecimento, como transcrevo abaixo, o que não se reflete necessariamente na entrevista realizada, que permaneceu como arquivo gravado apenas, sem transcrição para texto escrito.

A entrevista está aqui

Segue a entrevista completa:
Um abraço,
Bruno C.
_repórter

PS.: Na entrevista cometo vários erros, de troca de nomes e de datas, pois tudo foi muito improvisado, bem diferente do texto preparado, como abaixo.

O futuro da diplomacia brasileira e mundial, nos próximos anos

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Nota sobre temas do cenário internacional e o papel da ONU.

 

 

1. O passado recente e o futuro imediato da diplomacia brasileira

Depois de treze anos e meio de lulopetismo diplomático, entre 2003 e meados de 2016, e após dois anos e meio de quase normalidade institucional, no período 2016-2018, a diplomacia brasileira passou a defrontar-se, desde 2019, com o maior desafio político e moral em toda a sua história, ao ter sido submetida a diretrizes de política externa inéditas, tanto no plano propriamente substantivo, quanto no da sua administração. Foi o que se convencionou chamar de bolsolavismo diplomático, ainda que atenuado numa segunda fase, a partir de abril de 2021, com a demissão do primeiro chanceler, em março de 2021, seguida da morte, em janeiro de 2022, do suposto inspirador da exótica política externa, o polemista escritor Olavo de Carvalho, animar de correntes de extrema direita e partidárias de teses conspiratórias contra o chamado globalismo na política mundial.

Na verdade, não existe qualquer equivalência entre essas duas deformações da diplomacia brasileira, pois que o lulopetismo correspondia a um conjunto de teses e posturas bem conhecidas da esquerda latino-americana, animadas por um partido político consolidado e por um líder político dotado de bastante experiência nos cenários doméstico e internacional. O bolsolavismo diplomático, do seu lado, não correspondia a nada estruturado, sendo antes uma espécie de amálgama artificial entre dois fenômenos totalmente distintos entre si: teses requentadas da nova direita americana e de velhos doutrinários da extrema-direita europeia – diversos muito próximos do fascismo –, oferecidas pelo finado polemista da direita brasileira, de um lado, e, de outro, posturas confusas, contraditórias, várias irracionais, de um político do baixo clero militar reciclado numa medíocre carreira parlamentar, totalmente desprovido de qualquer ideia organizada sobre a agenda mundial ou sobre a política externa brasileira. 

Independentemente da completa falta de fundamentação do chamado bolsolavismo diplomático no campo doutrinal e das amplas evidências quanto à sua inconsistência prática, para fins da defesa dos interesses nacionais e para a atuação do Brasil no plano internacional, o fato é que a junção dessas duas nulidades conceituais – o olavismo doutrinário e o bolsonarismo prático – representaram a quase demolição do Itamaraty enquanto instituição empenhada na ação externa do Brasil, pelo menos enquanto duraram os dois fenômenos nas suas fases respectivas de maior ativismo concreto, de outubro de 2018 até março de 2021. Nesse período, o Brasil se isolou completamente, tanto no plano regional quanto no internacional, ao defender um absurdo antimultilateralismo, uma política externa orientada ideologicamente apenas para parceiros da extrema direita e ao tornar a política externa brasileira caudatária dos interesses pessoais do então presidente americano Donald Trump. 

As posturas bizarras dessa primeira fase foram parcialmente corrigidas quando da substituição do desequilibrado primeiro chanceler por um profissional mais conforme aos padrões tradicionais dos funcionários da carreira diplomática, mas apenas no plano da gestão do Itamaraty, uma vez que determinadas opções de política externa continuaram a ser defendidas pelo próprio chefe de governo. A diplomacia profissional respirou aliviada com a saída do chanceler olavista, mas continuou a ser confrontada com a reafirmação teimosa das preferências bolsonaristas em matéria de prioridades diplomáticas, que representam, na verdade, uma negação completa dos valores e princípios tradicionais da diplomacia brasileira. 

Tais manifestações se tornaram flagrantes com a continuada divisão entre direita e esquerda no relacionamento regional e mundial, assim como com a insistência do chefe de Estado em desafiar a comunidade internacional nos terrenos da política ambiental, do respeito ao próprio processo eleitoral brasileiro ou, de forma ainda mais eloquente, pelo inédito distanciamento da diplomacia brasileira dos padrões tradicionais seguidos pelo Itamaraty no campo do Direito Internacional a propósito da cruel guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. A despeito do fato de que a delegação do Brasil na ONU – Conselho de Segurança, Assembleia Geral e Conselho de Direitos Humanos – acompanhou o consenso geral no sentido de se condenar a invasão da Rússia de um país soberano, o Brasil, na prática, se mostrou objetivamente favorável ao agressor, ao rejeitar as sanções que as principais democracias estavam impondo ao violador da Carta da ONU e do Direito Internacional, assim como se manifestou contrariamente até ao fornecimento de meios de defesa ao país agredido, como se dissesse à Ucrânia que toda resistência era inútil e sem sentido. 

Antes, porém, dos malabarismos verbais quando da apreciação da guerra de agressão pelos órgãos da ONU, Bolsonaro insistiu em fazer uma visita de trabalho a Putin, quando já eram notórias as preparações para a invasão, e a despeito de fortes recomendações do próprio Itamaraty e do governo americano para que ela não fosse realizada. Na ocasião, Bolsonaro ousou revelar sua “solidariedade” a Putin, e com isso induziu ou mesmo forçou a diplomacia brasileira a se mostrar muito mais tortuosa do que normalmente seria, em face de uma série inteira de flagrantes transgressões da Carta da ONU e dos princípios mais elementares do Direito Internacional. Nesse particular, uma provável sucessão do bolsonarismo diplomático pelo lulopetismo diplomático, a partir de 2023, talvez não represente uma alteração visível da postura do governo brasileiro no tocante ao tratamento do agressor, uma vez que persiste, no campo do lulismo, uma notória ojeriza à “arrogância unilateral do imperialismo americano”, assim como uma utópica preferência por uma “ordem mundial alternativa”, aspiração que parece representada, no momento, por uma coalizão de países mais ou menos alinhados às teses do BRICS, foro de consulta e coordenação notoriamente dominado pela China. Ao fim e ao cabo, os estragos já provocados pelo bolsolavismo diplomático à política externa do Brasil talvez não sejam todos sanados por uma volta ao lulopetismo diplomático.

 

2. O Brasil e a ONU no atual momento

O Brasil foi um dos países fundadores do multilateralismo contemporâneo, tendo estado presente na criação das principais organizações da ordem econômica e política do mundo atual, partindo de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial, 1944), passando por San Francisco (ONU, 1945), por Genebra (Gatt, 1947) e continuando por todas as demais instituições relevantes das relações internacionais contemporâneas. Ainda antes, na segunda conferência internacional da paz da Haia (1907), ele já tinha defendido, pela voz de Rui Barbosa, o eixo central e a coluna vertebral do multilateralismo, que é a igualdade soberana dos Estados, princípio totalmente confrontado, junto com os artigos mais relevantes da Carta da ONU, pela guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. Trata-se do maior desafio à comunidade internacional em toda a história da ONU, que tinha sido criada justamente para se revelar mais ativa do que a antiga Liga das Nações na defesa da paz e da segurança internacionais.

Essa guerra de agressão representa, igualmente, um desafio jurídico e prático aos princípios e valores defendidos pela diplomacia brasileira em toda a sua história, mesmo durante a ditadura do Estado Novo, quando o Itamaraty do governo Vargas continuou mantendo relações diplomáticas com o governo no exílio da Polônia duplamente invadida pelos seus dois vizinhos totalitários, assim como não reconheceu a usurpação, pela União Soviética, dos três estados bálticos invadidos pelo império comunista, continuando a acolher as representações diplomáticas e consulares dos três países até os anos 1960. No entanto, em 2014, o governo petista de Dilma Rousseff mostrou-se completamente indiferente e alheio à crise criada pela mesma Rússia quando ela invadiu e anexou a península da Coreia, num ato já flagrantemente contrário não só à Carta da ONU, assim como a vários outros instrumentos acatados solenemente pela maior parte da comunidade internacional. Na ocasião, tendo vários países democráticos imposto sanções econômicas e políticas contra a Rússia de Putin, a presidente Rousseff afirmou que “não se meteria em assuntos internos [sic!!!] de outros países” e que, portanto, sequer se pronunciaria sobre a “questão” (invasão seria o termo).

Bolsonaro, completamente alheio à dimensão da questão, e absolutamente inepto para exercer uma legítima condução de uma política externa condizente com os interesses do Brasil e compatível com os grandes princípios da diplomacia nacional, agiu simplesmente tangido por seus instintos e aconselhado pelos poucos assessores dotados de alguma capacidade de formulação de políticas: ao visitar Putin, e ao obrigar o Itamaraty a adotar uma postura conciliatória em relação à Rússia, ele estava pensando primariamente no seu próprio interesse eleitoral, buscando garantir o fornecimento de fertilizantes russos para a sua base política no agronegócio, assim como uma eventual compra de combustíveis russos (gasolina e, sobretudo, diesel), numa fase de alta dos preços internacionais. Essa postura, combinando uma aparente censura à Rússia nos foros da ONU, mas atuando objetivamente em favor de Putin em todos os demais aspectos das reações dos países democráticos, ficou sendo a resposta padrão do Brasil ao mais dramático desafio à ordem global desde a Segunda Guerra.

A política externa brasileira deve mudar radicalmente caso Bolsonaro seja derrotado nas eleições de outubro de 2022, e o principal candidato de oposição, Lula, assuma o poder em janeiro de 2023, mas não tanto no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. Em qualquer hipótese, um novo Brasil, pós-Bolsonaro, estará mais propenso a dialogar com todos os parceiros tradicionais do Brasil e atuar de forma independente e ativa, nos quadros da ONU, no plano regional, bilateralmente no contexto mundial, retomando, assim, parte da credibilidade perdida nos últimos quatro anos no domínio da sua diplomacia. Os próximos meses, talvez bem mais, serão ainda dominados pela guerra na Ucrânia, sem que a ONU tenha condições de intervir no sentido de algum armistício, cessar-fogo, ou qualquer outro tipo de mediação. A aparente liberação negociada com a intervenção do SG-ONU, Antonio Guterres, e do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, das exportações de cereais de portos da Ucrânia pode ser interrompida ou dificultada pelas ações sempre imprevisíveis do líder russo Vladimir Putin, assim como a guerra pode entrar em novas fases, sem que a ONU ou uma coalizão suficientemente relevante de países consigam colocar um termo ao conflito.

Um Brasil diferente do atual nas suas principais orientações de política externa, poderia, teoricamente, liderar uma coalizão diplomática de países aparentemente “neutros” para impulsionar, na ONU, pressão política suficiente para levar, não a uma simples “cessação de hostilidades” – como já evidenciado em declarações de voto da delegação do Brasil no CSNU, na AGNU e no Conselho de Direitos Humanos –, mas numa condenação formal das ações claramente violadoras das normas básicas da Carta da ONU praticadas pela Rússia e num comando firme para que a invasão e as ações militares da potência agressora sejam imediatamente interrompidas. Tal determinação já foi feita em “Ordem” da Corte Internacional de Justiça, com base na Convenção sobre o Genocídio, aprovada por consenso por todos os juízes – à exceção, justamente, dos juízes russo e chinês –, mas não implementada porque a CIJ carece de poderes e meios para fazê-lo, dependendo para isso de uma decisão do Conselho de Segurança. Seria, porém, duvidoso que o Brasil atual, do presidente Bolsonaro, ou um futuro governo Lula, adotassem tal postura, tendo em vista cálculos oportunistas no primeiro caso, e uma predisposição, no segundo, a se colocar do lado da Rússia pelo seu pertencimento ao BRICS (criado por Lula) e por um evidente antagonismo ao “imperialismo americano” e seu esquema da OTAN.

 

3. A ONU está habilitada para os desafios da presente fase?

Tanto no antigo Gatt, quanto na atual OMC, o sistema de solução de controvérsias funciona com base na adoção de decisões emitidas por um painel de árbitros especialistas nas leis e normas de política comercial adotadas mediante tratados internacionais ou seguindo regras costumeiras do comércio internacional. A grande diferença é que, no regime exclusivo do Gatt, nenhuma adoção de um painel de julgamento era adotada sem um consenso positivo, ou seja, sem a oposição de qualquer parte contratante ao Gatt, para o começo dos trabalhos. No sistema da OMC, mesmo o “veto” da parte apelada não impede a formação do painel e o começo dos trabalhos. No sistema da ONU algo semelhante deveria ocorrer, mas isso não se dá pelo fato do abusivo direito de veto decidido entre as grandes potências lá atrás, quando se decidia sobre o funcionamento da futura ONU, e se impôs essa salvaguarda que pode ser usada de forma absolutamente irregular, quando o que está em causa é justamente uma violação das normas da Carta da ONU por um dos próprios detentores do privilégio indevido.

Além de confrontar o princípio básico do multilateralismo contemporâneo, que é a igualdade soberana de todos os membros da ONU, essa norma confronta a regra elementar prevalecente na quase totalidade dos países segundo a qual um juiz não pode ser chamado a decidir sobre um caso no qual possa haver conflito de interesses, ou seja, alguma conexão familiar, envolvimento corporativo, negócios de qualquer tipo. No caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, a primeira está usando o seu abusivo direito de veto para bloquear qualquer decisão mais incisiva numa ocorrência que se choca frontalmente com os principais artigos da Carta da ONU, os que justamente proíbem guerras de conquista e de agressão unilateral. Registre-se que no antigo regime da Liga das Nações, foram adotadas sanções contra a Itália quando de sua agressão contra a Etiópia, o único membro africano da Liga, ainda que essas sanções não fossem tão decisivas ao ponto de interromper os ataques da Itália fascista contra o reino da antiga Abissínia. 

No atual regime onusiano, algo semelhante deveria ocorrer, ou seja, o direito de veto não poderia ser exercido por qualquer membro permanente do Conselho de Segurança caso este esteja implicado numa violação primária dos principais dispositivos da Carta que tratam da paz e segurança internacionais. Esta parece ser uma das mais importantes reformas da Carta e de melhoria do seu processo decisório numa eventual discussão ampla sobre a evolução dos dispositivos aplicáveis nesse terreno. Observando-se, contudo, o atual cenário de divisão internacional entre as grandes potências, não parece haver qualquer chance de que um debate desse tipo ocorra num horizonte previsível, sobretudo quando parece se consolidar a emergência de dois “blocos ideológicos”, antagônicos, quanto à conformação de alguma “ordem internacional alternativa” àquela multilateral desenhada e implementada no imediato pós-Segunda Guerra pelas principais potências ocidentais, e que acabou prevalecendo em todo o mundo com a implosão do socialismo, o desaparecimento da União Soviética e a transição para o sistema de Bretton Woods de todos os antigos países comunistas.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4225: 29 agosto 2022, 6 p.

 

Perguntas Bruno Cirillo:

1) Por que o senhor considera o bolsolavismo como o fim da diplomacia brasileira?

2) No âmbito da ONU, como está posicionado o país? 

3) E quanto às Nações Unidas, de modo geral, também passa por mudanças? Com efeitos positivos ou negativos?

4) Há duas semanas, o presidente da entidade, Antonio Guterrez lançou uma chamada pública divulgada pelo Avaaz.org questionando qual deve ser o papel da entidade e o nível de participação popular nas deliberações e decisões do órgão – iniciativa que motivou esta pauta. O senhor vê insegurança nessa pesquisa? O órgão está em busca de novos caminhos?

5) O que mais provocou mudanças na ONU? E o que mudou em termos práticos, seja no trabalho interno dos funcionários, diplomatas e adidos, seja nas relações entre países-membros e com outras instituições?

6) Qual é a expectativa do senhor para os próximos anos, em termos de mudanças, considerando o pós-pandemia, a guerra na Ucrânia e outras questões, como o desenvolvimento da China, a paridade entre o euro e o dólar e o enfraquecimento da economia alemã?

7) Como tem agido a ONU em relação à guerra, se por um lado não defendeu a Ucrânia como se poderia pretender e de outro precisa viabilizar acordos para manter as exportações russas, e como o senhor enxerga o papel da entidade no conflito?

 

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