domingo, 9 de outubro de 2022

Roberto Campos, o Constituinte Profeta - Arnaldo Godoy (Conjur)

EMBARGOS CULTURAIS

Roberto Campos, o Constituinte Profeta

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Sob a orientação do ministro Gilmar Mendes e de Ives Gandra publicamos um estudo a respeito de Roberto Campos (1917-2001), o Constituinte Profeta. A publicação é da Almedina/IDP. Além de minha intervenção há textos de Bernardo Cabral, Lenio Streck, Ney Padro, Paulo Roberto de Almeida, Gastão de Toledo e do próprio Ives Gandra. 

Na sequência dos textos há uma recolha dos principais artigos de Roberto Campos, especialmente, entre outros, Na contramão da história. O diplomata Paulo Roberto de Almeida, que participa dessa edição, também reuniu e publicou os textos de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988, em primorosa edição da LVM, com um estudo introdutório avassalador, especialmente quando comenta o tema da instabilidade constitucional brasileira. 

Roberto Campos notabilizou-se como pensador liberal. Diplomata, político, economista e homem de letras, uma de nossas mais iluminadas inteligências. Participou da criação da ONU, retornou ao Brasil, acompanhou a instalação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, participou da criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico- BNDE, conviveu intelectualmente com Eugênio Gudin, colaborou no governo Castello Branco, foi senador constituinte. Lanterna na Popa, seu livro de memórias, é leitura fundamental para a compreensão dos dilemas do Brasil. No campo da memorialística com propósitos de explicação de nossos arranjos institucionais, parece-me nosso mais importante livro ao longo do século XX.

Roberto Campos criticou o ambiente conceitual da Assembleia Nacional Constituinte de 1986, que qualificou como a vitória do nacional-obscurantismo. Adiantou-se nas críticas ao modelo tributário da Constituição de 1988, reputando-o como hiperfiscalista, prevendo perda de receitas da União, que mais tarde seriam recuperadas com ampliação de bases tributárias, especialmente mediante a proliferação das contribuições. A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido-CSLL, cotejada com o Imposto de Renda, ilustra a assertiva. 

Boa parte das profecias de Roberto Campos ainda hoje se discutem, e cada vez mais, e de algum modo, reconheçamos, se realizam. Criticando a carta de 1988, Campos afirmou que "a cultura antiempresarial de que se impregnou a Constituição em breve fará o Brasil o país ideal onde não investir". A participação de Roberto Campos na preparação da Constituição de 1988 ilustra efusivamente interface entre o neoliberalismo e o direito brasileiro na medida em que boa parte das críticas do diplomata realizou-se no futuro. 

Roberto Campos, o mais instrumentalizado defensor do neoliberalismo no Brasil, e que foi constituinte, alertava para incompatibilidades entre a Constituição que então se escrevia e se promulgava e o mundo globalizado. A globalização tem hoje um outro sentido, há uma confusão tremenda entre globalismo, nacionalismo e cooperação internacional, tudo temperado pela confusão entre o conservadorismo dos costumes com o liberalismo econômico, e ainda com os temas do libertarianismo e do ordocapitalismo. Não sei como Roberto Campos explicaria isso tudo. 

Roberto Campos escreveu que a Constituição que então discutíamos e escrevíamos nos colocava na contramão do processo de globalização inspirado pelo neoliberalismo que o mundo então vivia. O excesso de regulamentação e o velho apego ao Estado de bem-estar social denunciado por F. Hayek, Milton Friedman e Karl Popper nos alijaria da distribuição das benesses que esse ambiente de globalização estaria prestes a nos proporcionar. Insisto, os tempos mudaram. 

Roberto Campos indignava-se com uma Constituição que reconhecia um salário mínimo nacionalmente unificado, garantindo "ao peão de Piancó salário igual ao do trabalhador do ABC paulista". Lamentava que a Constituição nos prometia "uma segurança social sueca com recursos moçambicanos". Lê-lo, em 2022, é um alivio historiográfico e uma importante ferramenta para que coloquemos os pingos nos is e os traços nos tes. 

Para Roberto Campos a Constituição de 1988 era "saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social". Para o criador do BNDE os constituintes extrapolaram o mandado conferido pelas urnas, avançado em todos os temas da vida nacional, de forma irresponsável e anacrônica, promovendo antinomia entre o processo de globalização e nossos arranjos institucionais. 

Roberto Campos divulgava que a nova Constituição seria insuficiente para promover melhora nas condições de vida dos brasileiros. Alertava que o excesso de apego à forma, que denominava de "constitucionalite", em nada resolveria problemas estruturais. 

A distância entre a realidade e o universo constitucional intrigava Roberto Campos, que denunciava a utopia que envolvia e emulava o modelo constitucional que então que se produzia. A Constituição de 1988 promovia uma catarse nacional, após o longo jejum que a Era Militar impusera ao país. Passados 34 anos, há algum distanciamento histórico que permita que esses temas sejam objeto de rigoroso escrutínio; e é nossa tarefa.


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