Minha introdução ao excelente artigo (abaixo) de Lucas Carlos Lima:
Em 1931, o Japão invadiu a Manchúria e ali criou um Estado fantoche; em 1937, tropas do Estado militarista fascista expansionista do Japão invadiram o restante da China, um Estado membro da Sociedade das Nações, que mais uma vez permaneceu inerme. Em 1905, o Império japonês, antes da Grande Guerra e do surgimento da SDN, já tinha invadido e anexado a península coreana.
Em 1935, a Itália invadiu a Abissínia, o único Estado livre da África e também membro da SDN, que impôs débris sanções contra o Estado fascista da Itália, que abandou a SDN, como já tinha feito o Japão antes.
De 1936 a 1939, em face do neutralismo dos principais membros da SDN, a Itália fascista e a Alemanha nazista apoiaram um golpe de Estado e a guerra civil na Espanha republicana, Estado membro da SDN.
Em 1939-40, a Alemanha nazista e a União Soviética invadiram e deceparam a Polônia, um Estado membro da SDN, e a URSS invadiu e reconquistou os três Estados bálticos independentes desde 1919, e empreendeu uma guerra contra a Finlândia. Ela também saiu da SDN.
Em 2014, a Rússia invadiu e anexou ilegalmente a península da Crimeia, sob soberania da Ucrânia, independente desde 1991. A ONU não pode fazer nada, em virtude do direito de veto da Rússia no CSNU. Apenas alguns países introduziram sanções unilaterais limitadas contra ela. Em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia deslanchou uma feroz guerra de agressão e de anexações contra a Ucrânia, perpetrou bárbaros crimes de guerra, contra a paz e contra a humanidade. Tentativas do CSNU, da AGNU, da CIJ, do Conselho de Direitos Humanos de condenar e de fazer retroceder a invasão criminosa da Rússia contra um Estado soberano não tiveram qualquer efeito contra o Estado criminoso, que continua perpetrando atos terroristas bárbaros contra o povo ucraniano e seu patrimônio. Trata-se, simplesmente, da maior violação do Direito Internacional desde as anexações militares e dos crimes bárbaros perpetrados pela Alemanha nazista, pela Itália fascista e pelo Estado fascista militarista expansionista do Japão, desde antes da Segunda Guerra Mundial.
Chego a uma conclusão óbvia: a ONU está cada vez mais parecida com a Liga das Nações, a despeito de todas as condenações verbais feitas em seu âmbito, como evidenciado neste artigo do professor Lucas Carlos Lima. A ONU fez sanções morais; as materiais, políticas, diplomáticas e econômicas ficaram a cargo de poucos países, a ajuda na defesa militares foi assumida por um número ainda menor de países membros da ONU. O Brasil, infelizmente, não figura entre os países defensores da Carta da ONU e do Estado de Direito, pois que, a despeito de ter aprovado algumas resoluções, continua objetivamente a apoiar o Estado criminoso invasor.
Paulo Roberto de Almeida
Opinião
O repúdio às anexações russas na ONU
A atual interpretação dada por Moscou à autodeterminação dos povos é uma subversão do instrumento e cria margens para precedentes temerários.
Lucas Carlos Lima
O Estado de S.Paulo, 18 de outubro de 2022 | 03h00
Em meio à ferocidade da tempestade de fogo que assola as cidades ucranianas após quase oito meses de guerra, as instituições internacionais adotam posições bastante significativas. Por 143 votos a favor, 35 abstenções (entre elas China e Índia) e 5 votos contrários (Belarus, Coreia do Norte, Nicarágua, Rússia e Síria), a Assembleia-Geral da ONU adotou a resolução intitulada Integridade Territorial da Ucrânia: Defendendo os Princípios da Carta das Nações Unidas. A resolução veicula uma mensagem inquestionável de que nenhuma aquisição territorial resultante de ameaça ou uso da força será reconhecida como legal.
A decisão da ONU não foi tomada fora de contexto. No final de setembro, Moscou oficializou a acessão de quatro territórios pertencentes ao Estado ucraniano: as autoproclamadas repúblicas de Luhansk e Donetsk e os oblasts de Kherson e Zaporizhzhia. A decisão, tomada numa cerimônia eivada de alta voltagem nacionalista, afirma que ditas regiões se tornariam parte da Federação Russa, em virtude de referendos supostamente conduzidos nos territórios em questão – mesmo expediente empregado para justificar a anexação da Crimeia, internacionalmente considerada como ilegal. O argumento jurídico da Rússia seria a invocação da autodeterminação dos povos. Há problemas profundos nessa linha de defesa.
O princípio da autodeterminação dos povos não é uma chave mestra que abre todas as portas para justificar processos de anexação com base no uso da força. Sua construção jurídica é baseada nos processos de descolonização e de luta contra a opressão de um povo sobre outro. A atual interpretação dada por Moscou é uma subversão do instrumento e cria margens para precedentes temerários. Ao fim e ao cabo, nenhum Estado deseja avançar a ideia de que referendos conduzidos ao apagar das luzes possam produzir a fragmentação de seus territórios.
Em síntese, a resolução da ONU condena mais uma vez a agressão conduzida pela Rússia e reforça o valor da integridade territorial do Estado, demandando a cessação das hostilidades. Adicionalmente, ela repudia os referenda conduzidos pela Rússia. Há um compromisso da maioria da comunidade internacional com a soberania, independência, unidade e integridade da Ucrânia dentro das suas fronteiras internacionalmente reconhecidas. A assembleia-geral demandou explicitamente que a Federação Russa reverta imediata e incondicionalmente suas decisões relativas a essas regiões.
Em termos práticos, o que muda a resolução adotada no dia 12 de outubro? Será apenas mais uma vez a letra fria dos órgãos diplomáticos diante da desmesurada violência a poucas horas de distância das capitais europeias? Três argumentos podem ser esposados aqui.
Em primeiro lugar, a resolução reflete o contundente não reconhecimento da comunidade internacional do presente status das regiões. Em outras palavras, apesar dos contestáveis referendos, a comunidade internacional (inclusive o Brasil) não irá reconhecer as perdas territoriais da Ucrânia em virtude da ocupação por exércitos russos. A resolução foi clara: os referendos não têm nenhuma validade perante o Direito Internacional.
Em segundo lugar, ela confere legitimidade política para os atos associados a esse não reconhecimento. Reconhecer que a Rússia está errando ao considerar este território como seu é, indiretamente, legitimar ações contrárias a esse ato. Segundo o Direito Internacional, as graves violações das normas mais importantes da ordem jurídica demandam respostas e esforços de toda a comunidade, como o dever de cooperar para que o ilícito termine e a obrigação de não auxiliar no ilícito (como alegadamente faz a Bielorrússia).
Por fim, ela é um acréscimo jurídico a todo um arcabouço legal que se consolida em relação à situação da Ucrânia. Trata-se de mais uma reação coordenada da comunidade internacional diante de ações da Federação Russa. Cada um desses atos, cada um dos eventuais crimes cometidos deverá ser apurado. Não há retorno possível diante da produção de um instrumento tão vocal e consensual.
A votação favorável do Brasil a essa resolução é igualmente bem-vinda. O presidente da França, Emmanuel Macron, em seu último discurso perante a assembleia-geral, foi espartano em relação aos Estados que assumem uma posição de neutralidade em relação à Rússia. Segundo ele, “aqueles que hoje estão calados servem a contragosto ou secretamente com certa cumplicidade à causa de um novo imperialismo, de um cinismo contemporâneo que está desintegrando nossa ordem internacional, sem a qual a paz não é possível”.
A mensagem da assembleia-geral e dos líderes do mundo é clara. Resta verificar o quanto ela irá ressoar e impactar os destinos da violência desmesurada que continua a desestabilizar as relações jurídicas internacionais contemporâneas e o direito do povo ucraniano de não ter seu território indevidamente apropriado.
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PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG), É PESQUISADOR VISITANTE NA UNIVERSITÉ PARIS I – PANTHEÓN SORBONNE