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terça-feira, 5 de outubro de 2021

Roberto Campos, diplomata, economista e político: o constituinte profeta, livro em sua homenagem - 6/10/2021, 10:00hs (IDP)

 

Como informado na nota acima, participarei, nesta quarta-feira, 6 de outubro, às 10hs, do lançamento virtual do livro preparado em homenagem ao grande estadista brasileiro Roberto Campos, como um dos autores de um dos capítulo, ao lado de colegas acadêmicos (como Arnaldo Godoy, Lênio Streck), advogados, políticos, além do filho e do neto de Roberto Campos.


 O livro contém contribuições de diferente qualidade, mas abrindo com um ensaio de rico conteúdo analítico, da pena de meu colega e amigo Arnaldo Godoy, cujo título já constitui todo um programa: "Roberto Campos: o profeta da catástrofe institucional e dos desacertos econômicos da Constituição de 1988", e fechando com uma contribuição de minha autoria, tratando de todos os artigos publicados na imprensa diária sobre esses desacertos (reunidos na segunda parte do livro), cujo título também é revelador: "
Roberto Campos e a utopia constitucional brasileira", 


Faremos o lançamento nesta quarta-feira, dia 06/10, às 10h, pela plataforma Zoom, mas que pode ser assistido por todos os interessados, neste kink do Youtube: https://youtu.be/YCbGEmoCY_Q

Eis os dados completos da publicação:

Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins (coords.): 

Roberto Campos: diplomata, economista e político – o constituinte profeta 

(São Paulo: Almedina, 2021, 391 p.; ISBN: 978-65-5627-192-7; p. 81-122); disponível no site da Editora (link: https://www.almedina.com.br/produto/roberto-campos-diplomata-economista-e-politico-o-constituinte-profeta-9265 ). 


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A história da codificação do Direito, de Fábio Siebeneichler de Andrade - Arnaldo Godoy (Conjur)

 

Embargos Culturais

A história da codificação do Direito, de Fábio Siebeneichler de Andrade

Por 

Em "Da codificação, crônica de um conceito"[1] o autor, Fábio Siebeneichler de Andrade, sugere pistas para a identificação das motivações políticas, filosóficas e instrumentais que orientam os processos de codificação do direito. Entende-se, na leitura desse belíssimo livro, que do ponto de vista político a codificação atende a projetos de centralização. Além do que, do ponto de vista filosófico, a codificação pretenderia demonstrar que o direito positivo seria uma construção normativa dos valores do direito natural. O código, nesse sentido, seria o direito natural legislado. E ainda, instrumentalmente, a codificação seria indício de segurança jurídica e de certeza na aplicação do direito. 

O autor sustenta esse argumento seccionando o livro em três partes. Discorre sobre os processos históricos de codificação, em seguida avalia uma suposta crise dos códigos, em forma do argumento da descodificação, concluindo com prognósticos sobre o futuro da codificação. Acredita nos códigos. Explicita a origem da expressão. O codex remete-nos a uma tabuleta de madeira, mais tarde untada com cera, na qual se escrevia. Agrupados, tinha-se formato que nos lembra o livro atual, em contraposição ao volume, no qual as anotações eram dispostas em forma de rolo. Textos normativos eram registrados em um codex, e a expressão então designou essa forma de fixar a norma jurídica. 

O código, como concebido contemporaneamente, é documento jurídico no qual há planejamento lógico e agrupamento sistêmico, no argumento do autor. Nesse sentido, fora de propósito entendermos o Código de Hamurábi, a Lei das 12 Tabuas ou qualquer outro documento normativo antigo como código, ainda que o façamos por força de tradição de registro literário. Na concepção contemporânea de código, associada a padrões do iluminismo, tem-se mecanismo de enfrentamento do problema da dispersão das fontes do direito. O código pretende apreender uma totalidade temática, disciplinando-a como sistema. Permite a busca da coerência do ordenamento jurídico, fulminando lacunas e resolvendo antinomias. O código, basicamente, facilita o acesso às normas. É fórmula para a obtenção da unidade e da segurança do direito. 

No argumento do autor, o código decorre de um planejamento lógico e de um agrupamento sistêmico. É construído mediante um método geométrico e dedutivo, no qual os artigos são expostos como teoremas vitais. Em uma perspectiva histórica, o código é agente da estatização do direito privado, afirmando poder político, que se revela como seu garantidor de aplicação. Realiza-se o plano político de Rousseau, para quem há uma primazia da fonte legislativa sobre a autoridade tradicional. 

Fábio Siebeneichler de Andrade retoma a tradição do direito romano, imprescindível para que entendamos a dinâmica conceitual de um código, ainda que não se possa falar com certeza da codificação do direito antigo, incluído o Código de Justiniano. Esse último figura como método, a exemplo das Institutas e das divisões propostas, especialmente em direito natural, das gentes e civil, a par de pessoas, coisas e ações.  O autor explora a tradição medieval dos glosadores e dos comentadores, que fixaram um método de estudo. É o mos italicum, que remonta a Bártolo de Sasoferrato e aos juristas eruditos da Escola de Bolonha. Há também reflexões em torno do jusnaturalismo racionalista e à compreensão dos fatores políticos da codificação.

O autor centra o livro nas grandes codificações europeias, especialmente quanto ao papel de Napoleão n contexto da redação de seu código. Informa-se que Napoleão participou das sessões nas quais os textos eram discutidos, intervindo 84 vezes, quando usou da palavra e argumentou, especialmente no tema do divórcio. Há explicações quanto à famosa polêmica Savigny contra Thibaut, relativa à necessidade de redação de um código civil para a Alemanha. Essa polêmica configura-se como um dos momentos mais tensos na construção do direito alemão no século 19, projetando-se seus efeitos para debates em outros países, até cotidianamente. Essa disputa revelou tensão entre o racionalismo iluminista e o historicismo que marcou o romantismo alemão, traduzida por dissensos que havia em torno do direito romano. Savigny era contrário à codificação. Thibaut a defendia. Venceu esse último, com a promulgação do Código, em 1900. 

Fábio Siebeneichler de Andrade trata em seguida da codificação do direito privado no Brasil. Destaca a influência das Ordenações, retoma o artigo 179, XVIII, da Constituição de 1824 (que determinava a confecção de um código civil), lembra o esforço de Teixeira de Freitas (e sua Consolidação), bem como as atuações de Nabuco de Araújo, de Joaquim Felício dos Santos (Apontamentos), de Coelho Rodrigues, chegando ao projeto de Clóvis Beviláqua e ao subsequente debate entre Rui Barbosa e Barata Ribeiro, limitado a problemas de gramática e de estilo. O leitor pode ampliar o contexto temporal da discussão, com a leitura da História do Novo Código Civil, de Miguel Reale. O autor também sintetiza a história de outras constituições latino-americanas, a exemplo da Argentina e do Chile. 

Trata, na parte final, dos processos de descodificação, que revelam a crise dos códigos, cujos temas são capturados pela ascensão do direito público, mais especificamente pela constitucionalização do direito privado. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se microssistemas normativos, que na visão do autor expressam instâncias de particularismo jurídico. Defendendo a função harmonizadora dos códigos, Fábio Siebeneichler de Andrade conclui que o modelo — código — representa uma categoria normativa "altamente representativa que por estar associada ao princípio da continuidade sempre estará a (co) ordenar o direito privado". 

[1] Essa resenha foi publicada originariamente na Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 24, ano 7, pp. 371-3, São Paulo: RT, julho-setembro 2020.


terça-feira, 9 de março de 2021

Dois trabalhos recentemente publicados: José Guilherme Merquior e Roberto Campos - Paulo Roberto de Almeida

 Meus trabalhos mais recentes publicados, dois capítulos de livros coletivos: 


 1383. “José Guilherme Merquior: o esgrimista liberal”, In: José Guilherme Merquior, Foucault, ou o niilismo de cátedra (nova edição: São Paulo: É Realizações, 2021, 440 p.; ISBN; 978-65-86217-22-3; tradução de Donaldson M. Garshagen; posfácio; p. 251-320). Relação de Originais n. 3577, 3849. 


O livro tem o texto completo desta obra publicada originalmente em inglês, apenas com o título Foucault – numa coleção inglesa dedicada a filósofos – que depois recebeu, sob sugestão de um acadêmico francês, o subtítulo, usado primeiramente na primeira edição brasileira. Tem prefácio de Andrea Almeida Campos, um posfácio explicativo do editor da coleção Merquior na É Realizações, o professor João Cezar de Castro Rocha, o meu posfácio (que é uma apresentação-analítica da obra sociológica de Merquior, à exclusão, portanto, de suas obras de crítica literária), e diversos materiais adicionais, entre eles uma entrevista pioneira com Foucault feita por Sergio Paulo Rouanet e pelo próprio Merquior.


 (...) 


1385. Roberto Campos e a utopia constitucional brasileira”, In: Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins (coords.): Roberto Campos:
 diplomata, economista e político – o constituinte profeta
 (São Paulo: Almedina, 2021, 391 p.; ISBN: 978-65-5627-192-7; p. 81-122). Relação de Originais n. 3306.


A obra foi feita tanto para comemorar os 30 anos da Constituição de 1988, quanto os 20 anos da morte de Roberto Campos, em 2001.

Os trabalhos mais alentados são os de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy – sobre "O profeta da catástrofe institucional e dos desacertos econômicos da Constituição de 1988" –, de Gastão Alves de Toledo – sobre "Roberto Campos na Constituinte de 1987" – e de Lenio Luiz Streck – sobre "Roberto Campos e a 'Democratice'.

O livro contém 65 artigos de Roberto Campos, publicados originalmente entre 1987 e 1996.

 



domingo, 13 de dezembro de 2020

Arte, cultura e civilização: ensaios para o nosso tempo: organização de Valerio Mazzuoli e Gilberto Morbach (Letramento)

 Finalmente disponível um livro de ensaios para o nosso tempo e para o futuro: 


Valerio de Oliveira Mazzuoli e Gilberto Morbach (orgs.):

 Arte, Cultura, Civilização 

(São Paulo: Letramento, 2021, ISBN: 978-65-8602-587-3). 

Aquisições a partir de agora, para entrega a partir de janeiro no site da editora.

Descrição da Editora: 

Arte, cultura, civilização. Esses três paradigmas, que informam e animam um ao outro, convidam à reflexão e à constante (re)construção e (re)interpretação de significados possíveis. A partir de um princípio de pluralismo, de multiplicidade de prismas e perspectivas - da Música, da Literatura, da Filosofia, da História, da Ciência Política, das Relações Internacionais, do Direito -, este livro pretende, em leveza e densidade, oferecer precisamente um convite ao leitor, o da busca existencial pela compreensão daquilo que somos, de onde viemos, para onde vamos e o que queremos ser. Arte, cultura e civilização serão articuladas em ensaios breves e dinâmicos pelo olhar de vários especialistas, engajados num universo próprio e distintivo de investigação que, ao mesmo tempo, dialoga com o fio condutor da narrativa: o mesmo espírito que coloca os autores em diálogo com o leitor verdadeiro.

Aqui abaixo o sumário; meu capítulo “Diplomatas brasileiros nas letras e nas humanidades”, figura nas páginas 119 a 126. 

 Também participa meu amigo, e colega do Uniceub, Arnaldo Godoy, que colabora com um ensaio sobre a cinematografia de Luis Buñuel; Arnaldo Godoy mantém há muitos anos uma seção no Conjur chamada "Embargos Culturais": cada domingo ele nos brinda com inteligentes artigos-resenhas sobre os grandes livros da literatura brasileira e mundial.










Clarice Lispector: “Feliz [?!?!] Aniversário”?!?! - por Arnaldo Godoy

 Mais uma das crônicas literárias — que o Conjur chama de Embargos Culturais — de Arnaldo Godoy, que por acaso me fez lembrar de uma “comédia-tragédia” familiar italiana, Parente Serpente.

EMBARGOS CULTURAIS

A propósito do centenário do nascimento de Clarice Lispector

Por 

Na última quinta-feira (10/12), lembramos o centenário do nascimento de Clarice Lispector, que faleceu em 1977. Nasceu na Ucrânia. Veio muito nova para o Brasil. Seu nome de batismo é Chaya Pinkhasovna Lispector. À clássica biografia de Nádia Battella Gotlib acrescenta-se o trabalho de Benjamin Moser, na belíssima edição da Companhia das Letras. Os livros de Nádia e de Benjamin são afagos que temperam o Natal de leitores sensíveis. Clarice esteve aqui em Brasília em 1976, ganhando o prêmio da Fundação Cultural. Acabara de se separar do marido, o diplomata Maury Gurgel. Pronunciou uma conferência sobre a literatura de vanguarda no Brasil. Trata-se de um registro da atuação de Clarice, em assunto de teoria literária. A conferência está publicada em "Outros Escritos", da Editora Rocco. 

Tímida e ao mesmo tempo ousada (na percepção dela mesma), Clarice legou-nos passagens que se abrem a intermináveis especulações. Necessária uma escolha (ainda que arbitrária) que me dê mote para texto comemorativo. Em "Feliz Aniversário", Clarice explorou dramas da velhice e desencontros familiares. É essa a narrativa que exponho. A propósito do aniversário de uma anciã, Clarice alcançou o cômico e o trágico, fundindo essas duas instâncias da condição humana. O leitor pode se ver com os olhos da senhora, sofrendo as humilhações que lhe são impostas. A aniversariante (com dificuldade) manifesta vontade que lhe foi retirada. É uma história de assustar. Dá medo de envelhecer. Muito medo. Muito medo mesmo. Parece-me que Clarice também nos adverte em relação ao que podemos esperar de nossos parentes. 

A anciã, na narrativa, completa 89 anos. Era grande, magra, morena, imponente e, ao mesmo tempo, oca. Vivia com uma das filhas. A dona da casa organizou a festa como pôde, arrumando a sala, que encheu de balões. Para ganhar tempo, conta-nos Clarice, a filha vestiu a aniversariante logo depois do almoço. A anciã foi logo sentada na ponta da mesa, aguardando os convidados, todos da família, que chegariam bem mais tarde. Clarice nos dá a impressão de que a protagonista da narrativa era um mero adereço no apartamento. 

Um dos filhos não foi à festa. Não queria encontrar os irmãos. Enviou em seu lugar a esposa e os três filhos, ao que consta ainda adolescentes. Era a "turma de Olaria", os suburbanos que se vestiram cuidadosamente porque iriam para Copacabana, onde a festa ocorria. A nora de Olaria deixava claro que não queria ir, e que estava ali obrigada pelo marido ausente. Fazia cara feia. Chega também a nora de Ipanema, esnobe, com dois netos e com uma babá, que Clarice dizia ociosa. O marido chegaria depois. Maridos de madames sempre chegam depois. Têm sempre um compromisso, no escritório, ou na política, ou em qualquer lugar que inventam na hora. As noras não se olhavam, se detestavam. Também veio o filho mais velho, que assumira o lugar de um filho falecido. Compareceu com toda a família. 

Comiam sanduíches de presunto, croquetes, bebiam ponche. Há cheiro de gordura e de fritura no apartamento. Havia na mesa um imenso bolo, com uma vela, junto à qual havia um pedacinho de papel onde se lia: 89. Gritam a idade da avó, cantam parabéns, os netos que estudavam no Colégio Bennet sempre falando em inglês. Conta-nos Clarice que as lembranças e presentes que a aniversariante recebeu de nada serviam. Uma saboneteira, um broche de fantasia, um pequeno vaso de cacto. Nada se aproveitaria. A dona da casa, amargurada, guardava os mimos com certa amargura, nada lhe serviria. Em torno de uma sala apertada circulavam, gritavam, comiam o que havia. O leitor tem a sensação de que os convidados cumpriam ritual, presos em inadiável obrigação. Contavam em ver a velhinha no ano seguinte, quando haveria um outro jantar. O encontro era anual, enquanto a anciã vivesse. 

A anciã olhava. Perplexa. Verdadeiramente desprezava aquelas pessoas. Desprezava os filhos. Carne de seu joelho. Eram seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos. As mulheres eram todas de pernas finas, vaidosas. A aniversariante explodiu! Pediu vinho! E não queria pouco. Que vovozinha de nada, gritava! Que o diabo carregasse a todos: maricas, cornos, vagabundas! Cuspiu no chão! A família assustou-se com o destempero da avó. A avó esperava que após o bolo ainda houvesse comida. Hora de ir. Todos se despedem, combinando retomar as festividades no ano seguinte. A anciã comemoraria (sic) 90 anos. 

Clarice Lispector opôs familiares remediados e familiares não remediados; era a turma de Ipanema contra a turma de Olaria, que se encontravam em Copacabana. Fixou o irmão que rejeita toda a família, mas que obriga que a mulher o represente, talvez para que se lembrem de sua bravata. Uma protagonista central é a irmã a quem cabe cuidar da mãezinha, como um subpreço pelo fato de que não constituiu família própria. Todos estão reunidos e, ao mesmo tempo, muito distantes, na celebração de ritual que mais parecia prece de morte.

"Feliz aniversário" é reflexão muito séria sobre a velhice, que nos faz lembrar uma passagem emblemática de um autor romano (Ovídio): "Pensai, desde agora, na velhice que virá; assim o tempo não passará em vão para vós. Diverti-vos, enquanto é possível, enquanto vos encontrais nos verdes anos; os anos passam como a água que escoa: nem a água que corre voltará para trás, nem as horas poderão voltar. O tempo tem de ser aproveitado: ele foge com passo veloz e por melhor que seja não é tão bom como o que o antecedeu". A anciã, cujo nome não se lê no texto, é desprovida de vontade, de vigor, de voz de ordem. Talvez por isso nem mesmo nome tenha. Está ali, mas, ao mesmo tempo, não está. Está viva, mas já não tem mais vida. É um fator residual de união que talvez nunca tenha existido, ou que se desfez ao longo da vida. "Feliz aniversário" é também uma narrativa sobre o tempo, devorador de pessoas e de coisas, que nos faz pensar sobre a eternidade de Clarice, e de seus textos, e do modo como falava com a alma, nos termos em que compartilhei essas reflexões com uma alma gêmea.


domingo, 26 de julho de 2020

Arnaldo Godoy "liquida" o Conselheiro, na sua segunda postagem sobre Canudos

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a Troia de taipa dos jagunços


Em 1883 um pensador alemão dissertou sobre as diferenças nos métodos utilizados nas ciências naturais e nas ciências do espírito. Para esse pensador, William Dilthey (1833-1911), as ciências naturais são causais, centradas nas categorias dos antecedentes, enquanto que a história, que é uma ciência do espírito, seria compreensiva, focada na apreensão dos vários significados da ação humana. Euclides da Cunha, de algum modo, desafiou essa linha divisória. Era sobretudo um cético. Mas era também um cientista que escrevia com arte. E era um artista que escrevia com base na ciência ou, melhor, no que reputava científico.
Em carta a José Veríssimo, datada de 1902, Euclides defendia-se de uma crítica feita aos Sertões, observando que “o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências”. Euclides agregou à formação de engenheiro uma densa formação literária. Formalmente, segundo o sempre lembrado Roberto Ventura, Euclides estudou álgebra, geometria analítica, cálculo diferencial e integral, física experimental, química, desenho topográfico, tática, estratégia, história militar, fortificações, noções de balística, direito militar, desenho e análise da Constituição do Império. Não se pode exagerar a aderência de Euclides aos esquisitos do positivismo1. Euclides, em carta ao pai, criticou Benjamin Constant, um dos grandes nomes do positivismo entre nós, a quem então reputou como seu “antigo ídolo”. A carta é de 14 de junho de 1890. Euclides distanciou-se do positivismo que conheceu no Exército.
A leitura dos vários textos de Euclides (“Os Sertões”, “À margem a História”, “Contrastes e Confrontos”) revela a inexistência de fronteiras epistemológicas nesse importante autor nacional. Euclides pretendia-se múltiplo, transdisciplinar. Era criminólogo, sociólogo, antropólogo, historiador, historiador militar, botânico, jornalista, geólogo, a par, naturalmente, de estilista incomparável. Segundo Walnice Nogueira Galvão, na minha opinião a mais abalizada intérprete de Euclides da Cunha, o escritor sabia “quase tudo pela rama, coisas que tinha aprendido nos bancos escolares da Escola Militar e que costumava citar de ouvido, deturpando-as”. Essa a razão pela qual há muita informação inconsistente nas seções mais científicas desse grande livro.
Uma tentativa de estação em alguns desses atributos de Euclides é o tema da presente intervenção. É preciso estudar os autores brasileiros. Comecemos com o criminólogo. Canudos, escreveu Euclides, “era o homizio de famigerados facínoras”. A lei era o arbítrio do chefe, Antonio Conselheiro. A justiça era o conjunto de suas “decisões irrevogáveis”. Na cadeia, que os sertanejos chamavam de “poeira”, “viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas”. O homicídio, naquele interior que assustou Euclides, o delito religioso (falta às rezas) era objeto de maior reprimenda do delito maior, em todas as culturas, isto é, o homicídio: uma constatação criminológica vazada sob a forma de ironia.
De acordo com o narrador dos Sertões a justiça no reduto do conselheiro era “inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados”. Buscava-se a punição de uma certa delinquência, especialíssima, pelo que em Canudos ocorria “uma inversão completa do conceito de crime”. Proibia-se o alcoolismo, que o preciosismo semântico de Euclides denominava de “dipsomania”. As penas para quem usasse da aguardente eram severas: “ai daquele que rompesse o interdito imposto”.
Euclides era também um sociólogo, provocação de Antonio Candido, em conferência na semana euclidiana, já no distante ano de 1947. Segundo Antonio Candido, “para Euclides, a população sertaneja é um bloco étnico e cultural; uma sociedade insulada em cujo corpo não se processou a divisão intensa do trabalho social, diferenciador e enriquecedor”. Euclides pormenorizou a organização de Canudos, “o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito”. Era a “urbs monstruosa, de barro”, a “civitas sinistra do erro”, um povoado novo, que em algumas semanas já era um lugar velho, um punhado de ruínas.
Na descrição de Euclides em Canudos não se distinguiam as ruas. Havia becos estreitíssimos, “mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso”. Descreveu um desconforto permanente, uma pobreza repugnante, “traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça”. Adiantando-se na apresentação de um tipo próximo ao Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, Euclides tratava de “cômodos exíguos” nos quais havia “trastes raros e grosseiros: um bando tosco, dois ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes (...) era toda a mobília”.
Euclides apresentava uma população que “jugulada pelo seu prestígio” contava com “todas as condições de estádio social inferior”. Era o mundo de um sertanejo simples que “transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto”. Não havia apego à propriedade, vingando uma “forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos; apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas”.
Euclides também se revela um antropólogo. É o que lemos na descrição pormenorizada que fez de Antonio Conselheiro, na segunda parte de seu livro sobre a campanha de Canudos. O Conselheiro, segundo Euclides, somente poderia ser entendido no contexto psicológico da sociedade que o criou. Era um psicótico, perdido na turba dos neuróticos vulgares. Para Euclides, o Conselheiro não apresentava necessariamente uma moléstia grave, era o aspecto de um mal social gravíssimo. Em excerto de efeito, observava que o Conselheiro foi para a história do mesmo modo que poderia ter ido para um hospício.
O Conselheiro representava um misticismo feroz e extravagante, calcado em crenças ingênuas, em um fetichismo bárbaro, em aberrações de católicos fanáticos, em “tendências compulsivas de raças inferiores”, bem como na indisciplina geral da vida sertaneja. Para Euclides, “a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida em sociedade”. O autor dos Sertões acreditava que o Conselheiro era documento vivo de atavismo; era “uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie”. Entendia que o Conselheiro receberia diferentes análises de um médico e de um antropólogo: para o médico seria um caso de delírio sistematizado, para o antropólogo um “fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização”. O Conselheiro, segundo Euclides, entendia-se como protagonista-delegado de uma vontade dos céus, com função de apontar os pecados e prescrever o caminho para a salvação.
O Conselheiro, prossegue Euclides, significava-se em uma zona indefinida. Estava no limbo que separa facínoras de heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, gênios e degenerados. O Conselheiro fora traído pela esposa, circunstância peculiar que o ligava a Euclides, como se sabe da tragédia que levou o escritor à morte prematura. A mulher do Conselheiro havia fugido com um policial, que supostamente a raptara. A mulher de Euclides, Ana, apaixonara-se por um jovem militar, Dilermando de Assis. Comentarei o caso em intervenção próxima futura, sob um prisma jurídico, e não passional. Não me sinto autorizado a perscrutar a intimidade sentimental das pessoas, vivas ou mortas. E nem tenho interesse.
Euclides descreve a trajetória do Conselheiro, sua origem no ambiente de famílias inimigas (Macieis e Araújos), um mundo de tocaias, emboscadas, vingança, amor e ódio. A descrição do Conselheiro é a que toca nosso imaginário nacional: “cabelos crescidos até os ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos”. Era um homem estranho, que andou muito tempo sem rumo certo. Euclides conta que o Conselheiro era indiferente à vida e aos perigos, alimentava-se “mal e ocasionalmente, “dormindo ao relento e à beira dos caminhos, numa penitência desnuda e rude”. Vivia de esmolas, mas não aceitava excessos. Um homem sofrido, que “anestesiara-se com a própria dor”. Carregava a indiferença superior de um estoico.
Euclides mostrou-se também como um constitucionalista. Analisou a relação dos canudenses com a República, no contexto do tema então espinhoso do casamento civil. A Constituição de 1891 era uma transposição de algum modo descarada dos arranjos institucionais norte-americanos, e que sabemos hoje predicada na influência de Rui Barbosa. Adiantou-se na teoria da transposição, de grande prestígio nos estudos de direito constitucional comparado.
Em “À margem da história”, ao comentar em excurso histórico a Constituição de 1824, Euclides observou que “uma constituição, sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumuladas no revolver das ideias e dos costumes, é sempre um passo para o futuro garantido pela energia conservadora do passado”. O legislador constitucional de 1824, segundo Euclides, elaborava um trabalho todo subjetivo, um “capricho de minoria erudita discorrendo dedutivamente sobre alguns preceitos abstratos, alheia ao modo de ser da maioria”. Tratava-se de um “projeto constitucional, quase abortício ou temporão, precipitado nas votações atropeladas, ou tangidas pelos ultrarradicais”. O projeto não avançou. Sabemos que D. Pedro I interveio e que da intervenção resultou o texto constitucional de 1824. Trata-se de um bem concebido texto político, para os limites conceituais da época, sobressaindo-se a possibilidade de alteração constitucional por legislação ordinária, se o objeto da reforma não fosse matéria substancialmente constitucional. Já se dividia empiricamente o texto constitucional temas formais e materiais.
Euclides, talvez mais do que tudo, foi também um historiador militar, como assinalado, entre outros, por Umberto Peregrino2. As descrições das batalhas são precisas (acredita-se) e isentas de qualquer forma de sectarismo. No entanto, ao fim da empreitada, percebe-se a revolta de Euclides para com o massacre que se desatava. O fecho dos Sertões é antológico: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
Euclides era um cético. Com o socorro de Sérgio Milliet posso me lembrar, a propósito de Euclides, que o ceticismo não exclui a paixão, que a dúvida não quer dizer incapacidade de amar, porque quanto maior o amor, maior pode ser a dúvida. O ceticismo, especialmente em Euclides, era um método de trabalho, muito mais do que uma filosofia. É o que percebo no estudo descritivo e compreensivo da Troia de taipa dos jagunços.

1 Devo essa expressão “esquisitos do positivismo”, bem como o alerta da posição de Euclides em relação aos positivistas a Bruno de Cerqueira, historiador, filólogo, etimólogo e antropólogo que vive em Brasília, atualmente trabalhando na Funai. Bruno é autor de várias obras que tratam da monarquia no Brasil, um dos campos de sua vasta erudição.
2 Devo essa percepção a Roberto Rosas, cultíssimo advogado militante em Brasília, que foi Ministro do TSE, historiador do direito, e que gentilmente me encaminhou textos raríssimos sobre Euclides da Cunha, com especial referência ao próprio Umberto Peregrino e a estudos sobre a passagem de Euclides no Itamaraty, redigido por Renato Almeida.
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 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2020, 8h00

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Recordações do Escrivão Isaías Caminha", de Lima Barreto, analisado por Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

As recordações do escrivão Isaías Caminha e a literatura como registro da história


No caminho para o Rio de Janeiro, saltando do trem, Isaías Caminha, na expectativa de ser servido de café e bolo em um bar da estação, vê um rapaz alourado ser servido antes dele. Isaías foi preterido por sua cor, ainda que tivesse o dinheiro necessário para a compra da merenda. Ferido pelo contraste, curtiu uma raiva muda, que por pouco não virou em pranto. Essa passagem, muito provavelmente autobiográfica, é um dos núcleos do romance "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", o primeiro publicado por Lima Barreto.
Há duas partes relativamente distintas nesse belíssimo livro. Na primeira parte, o narrador relata que o jovem Isaías decide tentar a vida no Rio de Janeiro, descreve a viagem, os primeiros dias (cheios de dificuldades), alcançando o momento no qual começa a trabalhar no jornal. O tema do racismo parece ser o ponto mais forte nessa primeira sessão. Na segunda parte, o narrador descreve a vida de Isaías na redação. Cuida-se, nesse passo, de uma fortíssima crítica à imprensa brasileira da época. Pode-se pensar que se tratam de dois livros. Há, no entanto, um ponto em comum que salta aos olhos do leitor atento: Lima Barreto está em todo lugar.
O enredo é simples e bem engendrado. Retornando para o interior, e escrivão no Espírito Santo, Isaías registrou suas memórias. Isaías era escrivão na pomposa Coletoria Federal de Caxambi. Um promotor havia deixado uma revista no cartório. Na revista havia um artigo que explorava o tema da eugenia, da seleção racial, um dos assuntos centrais do século XIX. Vale, nesse ponto, a leitura de "O espetáculo das raças", de autoria de Lilia Moritz Schwartz, a biógrafa de Lima Barreto. Os dois livros se completam, aos quais pode se acrescentar "Retrato em branco e preto", da mesma autora. Essa movimentação recente de destruição de estátuas radica, de algum modo, em reação (tardia) a esse imenso problema que não pode ser negligenciado. Está em jogo algo mais forte do que a titularidade para a narrativa histórica.
O problema era também o Nina Rodrigues, professor na Faculdade de Medicina na Bahia, que em "As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil" defendeu códigos penais distintos, cuja aplicabilidade atenderia, entre outros quesitos, a cor da pele. Um código para brancos, outro para negros. Há um quadro de Modesto Brocos y Gómez, denominado "A Redenção de Cam", de 1895, que revela essa obsessão com um "branqueamento da população". João Batista Lacerda, médico no Rio de Janeiro, também defendeu enfaticamente essa tese, participando, inclusive, de um congresso sobre branqueamento de raças, realizado em Londres, em 1911.
Isaías pretendia rebater esses argumentos. O sonho de Isaías era ser doutor, e por isso deixou o interior. Estudaria na capital. Observou que se fosse doutor resgataria o pecado original de seu nascimento humilde, "amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo" de sua cor. Queria ser doutor. Acrescentava que o título era mágico, que tinha "poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos". Esperava receber cumprimentos do tipo "Doutor, como passou?", "Doutor, como está?" Teria prerrogativas, direitos especiais, privilégios. Além do que, "teria direito a prisão especial e não precisava saber nada".
Na parte na qual narra sua vida no jornal, tem-se um roman a clef, isto é, personagens reais são escondidos sob pseudônimos. Lima Barreto bateu forte no jornal O Globo. Foi muito duro com o escritor João do Rio, que no livro é referido como mistura de "suíno e símio". João do Rio é o personagem Raul Gusmão. Ao que consta, em uma carta ao crítico José Veríssimo, Lima Barreto argumentava que o romance era atemporal e que aqueles personagens existiam em todos os jornais, em todos os tempos. Não sei, há muita coisa que pode passar despercebida para o leitor contemporâneo, o que faria desse livro uma obra datada. Porém, inegável, os tipos que revela transcendem no tempo e, por isso, concedo, com razão nosso escritor.
Em "Recordações do escrivão Isaías Caminha", Lima Barreto explorou a desilusão com a Justiça, um tema que lhe era recorrente. Em dado momento registrou que "a polícia do Brasil só serve fazer vingança, mais nada". Combateu o bacharelismo, o preconceito racial e o desencanto com a política. Tratou do patriotismo ingênuo, assunto que retomou com vigor no "Triste fim do Policarpo Quaresma". O positivismo é também objeto de sua violenta crítica. Lima convivia com militares, trabalhava no Ministério da Guerra. O meio militar havia abraçado o positivismo como ideologia. Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor na escola militar, era o campeão da causa. O lema da bandeira era de inspiração e autoria positivistas.
Lima foi implacável com o poder da imprensa. Jornalistas que se perceberam no romance hostilizaram o escritor fluminense. Na pessoa de Lobo, o consultor gramatical do jornal, Lima castigou os puristas da gramática. Nesse ponto, convergia com as opiniões de Monteiro Lobato. A diplomacia e a violência policial, a par do sistema eleitoral então vigente, também foram objeto de duras observações.
A galeria de personagens é muito rica. O narrador é o próprio escrivão Isaías Caminha. O pai era inteligente e ilustrado, que o "estimulava pela obscuridade de suas exortações", o que corresponde, biograficamente, ao pai de Lima Barreto. Isaías ama a mãe, mas dela se afasta e dela se descola. Lembra que o espetáculo do saber de seu pai, realçado pela ignorância de sua mãe e de outros parentes dela, surgia a seus olhos como um deslumbramento. A professora primária é Dona Ester, que pode realmente ter sido uma professora que o ensinou. Na primeira parte do livro há ainda o Felício, formado em Farmácia, o tio Valentim (que era carteiro) e o Coronel Belmiro. O Doutor Castro é o deputado que tudo promete, mas que nada cumpre: o pistolão que lhe faltou. Quando partiu para o Rio, com uma carta de recomendação, tinha certeza de que sua situação estaria garantida, que obteria rapidamente um emprego, que iria às aulas e que em seis anos seria doutor. Enganou-se completamente.
Na segunda parte, tem-se um passeio pelo Rio de Janeiro do início do século XX. Há um jornalista com nome russo (Ivan Gregorovitch Rostóloff). Na delegacia, há um delegado que destratou Isaías. O narrador sentiu-se ferido pela atitude do policial, que o acusou de furto. Julgava que o delegado era um representante do governo, da administração jurídica de seus direitos no Brasil e "como tal, insistia, merecia um tratamento mais respeitoso". Há o dono do jornal, o Doutor Ricardo. Abelardo é o poeta e revolucionário. O Pacheco é o redator-chefe do jornal. Antonio Galo, o charadista. Pilar de Giralda, a contista erótica.
Pelo registro, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" é um livro de história. Como afirmou um grande crítico (Carpeaux), a história não se faz com armas. A história não é o teatro dos generais e dos diplomatas. A verdadeira história passa despercebida, tranquilamente, no centro da alma humana. Contando o que viu, e o que viveu, Lima Barreto torna-se agente desse registro histórico, ainda que não o faça tranquilamente, justamente porque, nesse mundo de poucos originais e de muitas cópias, fazia parte daquele grupo para o qual a história maldosamente negava oportunidades e condições de superação.

domingo, 17 de maio de 2020

Policarpo Quaresma, o D. Quixote nacional - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

A biblioteca nacionalista de Policarpo Quaresma



O escritor Lima Barreto é um injustiçado. Um triste visionário, na percepção de recente biografia lançada pela historiadora e antropóloga Lilia Maria Schwartz. Que livro! Lima Barreto era um homem do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação para escrever romances ao mesmo tempo sociais e introspectivos, na alusão de Gilberto Freyre, um insuspeito, para esse tipo de assunto. Lima Barreto viveu em contexto de frustração, de falta de reconhecimento, de preconceito racial, situações existenciais que talvez o induziram ao alcoolismo, que o levou à morte, no mesmo hospital onde seu pai estava internado, pela mesma razão, morrendo os dois — pai e filho — com a distância de alguns dias. Na verdade, pode-se pensar no triste fim de Lima Barreto. Muito triste.
O Triste Fim de Policarpo Quaresmaé provavelmente seu livro mais conhecido. Penso que o Policarpo é um Dom Quixote nacional. O Policarpo era um idealista, acreditava no país. Porém, não se dava conta de que tudo e de que todos desdenhavam qualquer projeto nacional sério e genuíno. Era um nacionalista diferente de alguns que há hoje, e que por vezes assumem um nacionalismo de intimidação e de desconsideração para com a ciência e para com qualquer pensamento mais sério.
O nacionalismo era um traço da personalidade do Policarpo, enquanto muitos hoje se dizem nacionalistas, em vários lugares do mundo, justamente por uma completa ausência de resquícios de personalidade. É um nacionalismo tampão. Um nacionalismo bovino, ao qual o Policarpo opunha um nacionalismo de ação e de esperança, ainda que muitas vezes exagerado, a exemplo do esforço para que o tupi fosse a língua nacional, em substituição ao português falado no Brasil.
O nacionalismo do Policarpo era honesto, por vezes ingênuo, mas sempre comprometido com a busca de soluções factíveis e razoáveis para o enfrentamento de nossos problemas. Era um nacionalismo marcado pelo afeto e pela esperança. Não pregava a violência, e nem propagava a ignorância. Pelo contrário, indignava-se com a guerra interna. E estudou com afinco, sempre, alternativas para saúvas, péssimas colheitas, fome e miséria. O Policarpo lia, e lia muito, e entendia o que lia. O problema é que não havia como transformar tanta leitura em realidade. É o eterno problema dos quixotes.
Lima Barreto opôs com o Policarpo as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto. Queriam fazer do Brasil um apêndice da Europa. É a velha imagem do índio de Alencar, para quem um índio poderia ser um europeu de tacape e sunga. Nacionalismo, patriotismo, eleições a bico de pena, loucura, bacharelismo, preconceito, burocracia e injustiça são os temas centrais do Triste fim de Policarpo Quaresma.
Segundo Lima Barreto, a biblioteca do Policarpo assentava-se em estantes de ferro, perto de 10, com quatro prateleiras. Havia também pequenas prateleiras, para os livros menores. Era mais do que uma coleção de livros. Era uma homenagem ao país no qual acreditava. Na sessão de livros de ficção e de poesia o Policarpo reunia apenas autores nacionais ou reconhecidamente brasileiros: Bento Teixeira (Prosopopeia), Gregório de Matos, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves Dias.
O Policarpo tinha todos os livros do José de Alencar, que foi quem nos explicou o Brasil, do índio ao gaúcho, no singular mesmo. Quem entende do José de Alencar é o Lira Neto, seu grande biógrafo contemporâneo (O Inimigo do Rei). Na biblioteca do Policarpo tinha-se o cânone bem comportado de uma literatura bem comportada que descrevia o Brasil bem comportadamente, com exceção do Gregório de Matos, o boca do inferno, talvez. Quem entende do Gregório de Matos é Ana Miranda, que nos deixou um delicioso romance histórico centrado nessa figura que misturava o diabólico com o serafínico, se possível essa conformação. Não havia livros do Padre Vieira na biblioteca do Policarpo. Quem entende do Padre Vieira é o Alcir Pécora (Teatro do Sacramento), um estudo essencial sobre a unidade teológico-retórico-política do grande sermonista.
A sessão de História do Brasil era completa. Havia todos os cronistas que de algum modo explicaram as singularidades de nossa terra. Estavam todos: Gabriel Soares, Pero de Magalhães Gandavo, Frei Vicente do Salvador, Armitage, o Padre Manoel Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (um alemão que escreveu nossa história, Geschichte von Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu (o cearense não poderia faltar), Southey, Varnhagen. O Policarpo lia em línguas estrangeiras também.
O Policarpo também colecionou (e leu) os viajantes que descreveram o Brasil. Havia nessa sessão o Hans Staden (o alemão que quase foi engolido pelos índios), o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães. E havia ainda Darwin (que esteve no Brasil e que se horrorizou com a escravidão), Freycinet, Cook e Bougainville. Lima Barreto nos conta que o Policarpo também tinha o livro de Pigafetta, um cronista que narrou a viagem de Fernão de Magalhães.
O Policarpo de igual modo possuía dicionários, manuais, enciclopédias e compêndios, em vários idiomas. Livros que chamamos de referência e que Lima Barreto a eles se refere como livros subsidiários. Não havia livros de Direito, talvez poque copiávamos o que europeus escreviam. Bibliotecas (reais ou imaginárias) compõem de forma definitiva uma biografia de seu proprietário, ou de seu utente. É o que se percebe na descrição que Lima Barreto fez da biblioteca do Policarpo Quaresma. Descreva-me tua biblioteca, e direi quem és.
 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2020, 8h01

domingo, 10 de maio de 2020

O “bibliocausto” da biblioteca de D. Quixote - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

O dia em que queimaram a biblioteca de Dom Quixote

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A queima de livros e de bibliotecas é permanente em livros que tratam de livros. Umberto Eco finalizou o "Nome da Rosa" com páginas inesquecíveis do incêndio da biblioteca do mosteiro. Burgos, o bibliotecário cego (uma homenagem a Borges) em desespero contemplava as chamas, que ameaçavam o personagem central da narrativa, William de Baskerville, que ao mesmo tempo era um homem de livros e de ação. Quixote foi um deles, a seu modo. Umberto Eco não conseguia imaginar um enredo sobre a idade média que não fosse concluído com uma fogueira imensa, destruindo uma biblioteca. Tem-se a impressão que há sempre quem queira queimar livros, recorrentemente. 
Há na memória coletiva a imagem das imensas fogueiras que os nazistas organizavam, nas quais ardiam livros que combatiam, especialmente de autoria escritores judeus ou que reputavam judaizantes. Há também a lenda do incêndio da biblioteca de Alexandria. O sultão ordenou a queima dos livros contrários ao Alcorão, justamente porque contrários ao que se deveria ler. E também ordenava que se queimassem os livros que não discordassem do Alcorão, porque desnecessários. 
Aqueles que amamos livros reiteradamente nos lembramos com tristeza da noite de 10 de maio de 1933, quando em Berlim cerca de 40 mil livros foram queimados. A valer-me de um neologismo de gosto duvidável, presenciou-se um bibliocausto, quando obras de autores como Sigmund Freud, Emil Ludwig e Erich Maria Remarque foram incineradas. Outros autores, como Helen Keller, Jack London, Heinrich Mann e Albert Einstein também tiveram seus livros queimados. H. G. Wells montou uma biblioteca em Paris, com exemplares desses livros que foram destruídos. Quando da invasão alemã à capital da França, os invasores teriam mantido esse edifício, que recorrentemente visitavam. Paradoxal. Os nazistas haviam proscrito cerca de 500 autores (nem todos eram judeus); bem como respectivos 4 mil livros. 
A queima de livros é instância periódica na história da cultura; exemplos há de bibliotecas medievais que sucumbiram ante a sanha de incendiários do pensamento. Porém, e essa a reflexão aqui colocada, a queima dos livros não significa o desaparecimento das ideias. Pelo contrário, ainda que veiculada por livros, ideias transcendem a seus opositores e, como o lendário pássaro que renasce das cinzas, revive, sempre e efetivamente, nas revoluções que provocam. Ideias não morrem simplesmente porque os livros que as divulgaram pereceram no fogo. O assunto é dramático.
Pode-se ainda lembrar a lista dos livros proibidos que a Igreja Católica indexou na cruzada da Contrarreforma. Um ataque ao espírito científico, que afetou Galileu e tantos outros. A queima de livros é uma forma radical de censura. A escolha dos livros que serão queimados é também uma forma radical de crítica literária. Livros não são ingênuos. Servem aos mais variados propósitos. Transitam do incentivo à anarquia ao mais radical libelo totalitário. Alguns não servem para nada, o que já é uma grande serventia, justamente porque também há livros que levam à desrazão. A combinação desses elementos (crítica literária, censura, queima de livros, desrazão) é o substrato do capítulo VI da narrativa de Dom Quixote. Trata-se de um grande e gracioso escrutínio na biblioteca do cavaleiro da triste figura. É uma das partes mais encantadoras do livro. 
O padre, o barbeiro, a ama e a sobrinha do Quixote serão, ao mesmo tempo, censores, críticos e incendiários. Trata-se de uma das passagens mais revolucionárias da narrativa. Cervantes ridiculariza a idade média e sua literatura e costumes na pessoa do ensandecido Dom Quixote. Ao longo do livro, em praticamente todas as passagens há nítida crítica aos valores medievais, centrados no ideal da cavalaria. O capitulo VI, mais especificamente, explicita essa crítica, de forma total.
A biblioteca do Quixote era expressiva para os referenciais da época. Contava com cerca de cem volumes dos grandes, muito bem encadernados, além de vários outros, menores, mas também bem cuidados e lidos. A ama pediu que o padre benzesse aquele aposento, onde estavam os livros, fontes de tantos problemas na vida do Quixote. O padre fixou uma metodologia de trabalho e ordenou que o barbeiro lhe passasse livro por livro. Nada escaparia de um seríssimo escrutínio. Advertiu-se que algum alfarrábio poderia escapar da fúria incendiária, desde que seu conteúdo fosse bom e proveitoso. A sobrinha retrucou, insistindo que todos os livros deveriam ser queimados. Não admitia qualquer forma de perdão ou de condescendência. Cervantes conta-nos que a sobrinha tinha uma gana de morte contra aqueles inocentes. 
O padre, de algum modo mais equilibrado, queria, ao menos, ler os títulos. Começaram com a narrativa de Amadis de Gaula, que segundo o narrador fora o primeiro livro de cavalaria impresso na Espanha. Deveria ser poupado, contra o que se insurgiu o barbeiro. Afinal, por ser o primeiro livro, era o núcleo de todos os demais, a fonte de todo os problemas. Era a referência e estímulo de todos os dogmas que enlouqueceram Quixote. Deveria ir para o fogo. O padre se opôs veementemente porque, por ser o melhor de todos os livros é que deveria (necessariamente) ser preservado. 
Os livros que seguiram não mereceriam melhor sorte, argumentavam padre e barbeiro. Eram cópias de uma ideia original. O escrutínio alcançava todos os livros. O padre conhecia as obras, as explicava, contextualiza seus autores. O capítulo VI do Quixote é crítica literária pura, comentando-se, inclusive, dureza e secura de estilo. Cervantes inventaria os autores da época, direta ou indiretamente: Rodrigues de Montalvo, Vasco Lobeira, Antonio de Torquemada, Melchor Ortega, Alonso de Salazar, Pedro de Luján, Feliciano de Silva, e tantos outros. 
Ao indicar e criticar as obras da cavalaria o livro de Cervantes fecha um ciclo, e mostra-se como o último livro da cavalaria. No entanto, e a opinião é de José Veríssimo, a sátira de Cervantes perde seu objeto, porque não se leem mais livros de cavalaria. Esse é um dos grandes enigmas desse livro encantador. Dom Quixote é permanentemente contemporâneo, ainda que seu conteúdo não alcance mais nenhum objetivo, e que a cavalaria seja apenas um capitulo de história. 
Discutem o livro de Ludovico Ariosto (Orlando Furioso) escrito em italiano, e não em latim, um cânon que à época vicejava, a exemplo das obras de Dante, de Boccaccio e de Petrarca. Cansados de avaliar tantos livros resolveram mandar todos de uma vez para a fogueira. Passariam para uma outra seção da biblioteca, onde havia alguns livros sobre outros assuntos. Ama e sobrinha opinaram que também ser queimados. Quando o Quixote sarasse da loucura e os lesse, se remanescentes, louco ficaria de novo, ainda que em outros temas.  Ainda que salvo da doença cavaleiresca, era suscetível a outras influências devastadoras. 
Cervantes critica a si mesmo! Inventaria na biblioteca a obra “Galatea”, de um tal Cervantes. O barbeiro se dizia seu amigo. Cervantes é definido como alguém mais versado em desgraças do que em versos. No entanto, observam os censores, o livro de Cervantes tinha algo de boa intenção, ainda que propondo algo, nada concluía. Anunciava uma segunda parte do livro (que é de 1581) que, no entanto, sabe-se que nunca foi concluída. O livro foi para a fogueira. Cervantes queimou o próprio livro! Preservaram os livros de poesia, guardados como exemplares da rica produção literária espanhola. Reconheceram que estavam cansados e resolveram queimar indistintamente os livros que faltavam. 
Dos livros de cavalaria, no entanto, na opinião do crítico brasileiro José Veríssimo, o Quixote havia obtido os ideais e virtudes que a cavalaria exigia de seus modelos: sobriedade, castidade, honestidade e dedicação ilimitada. Nesse sentido, suas qualidades excediam sua loucura. Os livros ensinam, mesmo os de cavalaria, e mesmo os que provocam a desrazão, porque nunca se sabe nem mesmo o que é razão. Não sabemos nada. E também por isso não se podem queimar livros. Os que os queimam nada leram, se leram, nada aprenderam, e se aprenderam, tudo esqueceram.
 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 10 de maio de 2020, 8h00