Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
A queima de livros e de bibliotecas é permanente em livros que tratam de livros. Umberto Eco finalizou o "Nome da Rosa" com páginas inesquecíveis do incêndio da biblioteca do mosteiro. Burgos, o bibliotecário cego (uma homenagem a Borges) em desespero contemplava as chamas, que ameaçavam o personagem central da narrativa, William de Baskerville, que ao mesmo tempo era um homem de livros e de ação. Quixote foi um deles, a seu modo. Umberto Eco não conseguia imaginar um enredo sobre a idade média que não fosse concluído com uma fogueira imensa, destruindo uma biblioteca. Tem-se a impressão que há sempre quem queira queimar livros, recorrentemente.
Há na memória coletiva a imagem das imensas fogueiras que os nazistas organizavam, nas quais ardiam livros que combatiam, especialmente de autoria escritores judeus ou que reputavam judaizantes. Há também a lenda do incêndio da biblioteca de Alexandria. O sultão ordenou a queima dos livros contrários ao Alcorão, justamente porque contrários ao que se deveria ler. E também ordenava que se queimassem os livros que não discordassem do Alcorão, porque desnecessários.
Aqueles que amamos livros reiteradamente nos lembramos com tristeza da noite de 10 de maio de 1933, quando em Berlim cerca de 40 mil livros foram queimados. A valer-me de um neologismo de gosto duvidável, presenciou-se um bibliocausto, quando obras de autores como Sigmund Freud, Emil Ludwig e Erich Maria Remarque foram incineradas. Outros autores, como Helen Keller, Jack London, Heinrich Mann e Albert Einstein também tiveram seus livros queimados. H. G. Wells montou uma biblioteca em Paris, com exemplares desses livros que foram destruídos. Quando da invasão alemã à capital da França, os invasores teriam mantido esse edifício, que recorrentemente visitavam. Paradoxal. Os nazistas haviam proscrito cerca de 500 autores (nem todos eram judeus); bem como respectivos 4 mil livros.
A queima de livros é instância periódica na história da cultura; exemplos há de bibliotecas medievais que sucumbiram ante a sanha de incendiários do pensamento. Porém, e essa a reflexão aqui colocada, a queima dos livros não significa o desaparecimento das ideias. Pelo contrário, ainda que veiculada por livros, ideias transcendem a seus opositores e, como o lendário pássaro que renasce das cinzas, revive, sempre e efetivamente, nas revoluções que provocam. Ideias não morrem simplesmente porque os livros que as divulgaram pereceram no fogo. O assunto é dramático.
Pode-se ainda lembrar a lista dos livros proibidos que a Igreja Católica indexou na cruzada da Contrarreforma. Um ataque ao espírito científico, que afetou Galileu e tantos outros. A queima de livros é uma forma radical de censura. A escolha dos livros que serão queimados é também uma forma radical de crítica literária. Livros não são ingênuos. Servem aos mais variados propósitos. Transitam do incentivo à anarquia ao mais radical libelo totalitário. Alguns não servem para nada, o que já é uma grande serventia, justamente porque também há livros que levam à desrazão. A combinação desses elementos (crítica literária, censura, queima de livros, desrazão) é o substrato do capítulo VI da narrativa de Dom Quixote. Trata-se de um grande e gracioso escrutínio na biblioteca do cavaleiro da triste figura. É uma das partes mais encantadoras do livro.
O padre, o barbeiro, a ama e a sobrinha do Quixote serão, ao mesmo tempo, censores, críticos e incendiários. Trata-se de uma das passagens mais revolucionárias da narrativa. Cervantes ridiculariza a idade média e sua literatura e costumes na pessoa do ensandecido Dom Quixote. Ao longo do livro, em praticamente todas as passagens há nítida crítica aos valores medievais, centrados no ideal da cavalaria. O capitulo VI, mais especificamente, explicita essa crítica, de forma total.
A biblioteca do Quixote era expressiva para os referenciais da época. Contava com cerca de cem volumes dos grandes, muito bem encadernados, além de vários outros, menores, mas também bem cuidados e lidos. A ama pediu que o padre benzesse aquele aposento, onde estavam os livros, fontes de tantos problemas na vida do Quixote. O padre fixou uma metodologia de trabalho e ordenou que o barbeiro lhe passasse livro por livro. Nada escaparia de um seríssimo escrutínio. Advertiu-se que algum alfarrábio poderia escapar da fúria incendiária, desde que seu conteúdo fosse bom e proveitoso. A sobrinha retrucou, insistindo que todos os livros deveriam ser queimados. Não admitia qualquer forma de perdão ou de condescendência. Cervantes conta-nos que a sobrinha tinha uma gana de morte contra aqueles inocentes.
O padre, de algum modo mais equilibrado, queria, ao menos, ler os títulos. Começaram com a narrativa de Amadis de Gaula, que segundo o narrador fora o primeiro livro de cavalaria impresso na Espanha. Deveria ser poupado, contra o que se insurgiu o barbeiro. Afinal, por ser o primeiro livro, era o núcleo de todos os demais, a fonte de todo os problemas. Era a referência e estímulo de todos os dogmas que enlouqueceram Quixote. Deveria ir para o fogo. O padre se opôs veementemente porque, por ser o melhor de todos os livros é que deveria (necessariamente) ser preservado.
Os livros que seguiram não mereceriam melhor sorte, argumentavam padre e barbeiro. Eram cópias de uma ideia original. O escrutínio alcançava todos os livros. O padre conhecia as obras, as explicava, contextualiza seus autores. O capítulo VI do Quixote é crítica literária pura, comentando-se, inclusive, dureza e secura de estilo. Cervantes inventaria os autores da época, direta ou indiretamente: Rodrigues de Montalvo, Vasco Lobeira, Antonio de Torquemada, Melchor Ortega, Alonso de Salazar, Pedro de Luján, Feliciano de Silva, e tantos outros.
Ao indicar e criticar as obras da cavalaria o livro de Cervantes fecha um ciclo, e mostra-se como o último livro da cavalaria. No entanto, e a opinião é de José Veríssimo, a sátira de Cervantes perde seu objeto, porque não se leem mais livros de cavalaria. Esse é um dos grandes enigmas desse livro encantador. Dom Quixote é permanentemente contemporâneo, ainda que seu conteúdo não alcance mais nenhum objetivo, e que a cavalaria seja apenas um capitulo de história.
Discutem o livro de Ludovico Ariosto (Orlando Furioso) escrito em italiano, e não em latim, um cânon que à época vicejava, a exemplo das obras de Dante, de Boccaccio e de Petrarca. Cansados de avaliar tantos livros resolveram mandar todos de uma vez para a fogueira. Passariam para uma outra seção da biblioteca, onde havia alguns livros sobre outros assuntos. Ama e sobrinha opinaram que também ser queimados. Quando o Quixote sarasse da loucura e os lesse, se remanescentes, louco ficaria de novo, ainda que em outros temas. Ainda que salvo da doença cavaleiresca, era suscetível a outras influências devastadoras.
Cervantes critica a si mesmo! Inventaria na biblioteca a obra “Galatea”, de um tal Cervantes. O barbeiro se dizia seu amigo. Cervantes é definido como alguém mais versado em desgraças do que em versos. No entanto, observam os censores, o livro de Cervantes tinha algo de boa intenção, ainda que propondo algo, nada concluía. Anunciava uma segunda parte do livro (que é de 1581) que, no entanto, sabe-se que nunca foi concluída. O livro foi para a fogueira. Cervantes queimou o próprio livro! Preservaram os livros de poesia, guardados como exemplares da rica produção literária espanhola. Reconheceram que estavam cansados e resolveram queimar indistintamente os livros que faltavam.
Dos livros de cavalaria, no entanto, na opinião do crítico brasileiro José Veríssimo, o Quixote havia obtido os ideais e virtudes que a cavalaria exigia de seus modelos: sobriedade, castidade, honestidade e dedicação ilimitada. Nesse sentido, suas qualidades excediam sua loucura. Os livros ensinam, mesmo os de cavalaria, e mesmo os que provocam a desrazão, porque nunca se sabe nem mesmo o que é razão. Não sabemos nada. E também por isso não se podem queimar livros. Os que os queimam nada leram, se leram, nada aprenderam, e se aprenderam, tudo esqueceram.