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domingo, 9 de junho de 2013

Avaliacao do governo Lula (4): o desmantelamento das instituicoes

Balanço do governo Lula: o desmantelamento das instituições

Paulo Roberto de Almeida


Uma das áreas menos felizes da atuação do governo Lula foi no âmbito da governança, onde se observou uma forte deterioração institucional, a começar pelo comportamento do próprio chefe de Estado. Com efeito, cabe destacar a ação essencialmente negativa do governo Lula no terreno das instituições e no das relações com os demais poderes, em especial com o Legislativo, aqui com resultados deletérios, que deverão marcar o funcionamento desse poder nos anos à frente. O presidente também se permitiu atacar, em outros momentos, o poder judiciário, os tribunais de contas, e a própria imprensa, em atitudes de franco descontrole que revelam um comportamento de fundo autoritário, pouco compatível com o estágio democrático já alcançado pelo Brasil.
Desde o primeiro momento, com objetivo de montar da base de apoio ao governo na frente política, foram engajados esforços no sentido de não apenas barganhar a adesão de parlamentares, como de praticamente “adquirir” bancadas inteiras para colocá-las a serviço do executivo. Observou-se, como nunca antes no Brasil, o desmantelamento das instituições e retrocessos lamentáveis no plano dos comportamentos dos agentes públicos, contrapondo as promessas do outrora partido da “ética na política” com a realidade de malversações. A imprensa trouxe diversas evidências explícitas – com perdão pela redundância, mas ela cabe – de fraudes e de mentiras de todo gênero comandadas a partir da Casa Civil, cujo primeiro chefe teve de ser virtualmente expurgado (ainda que oficialmente afastado a pedido), não sem ter sido homenageado pelo presidente. O episódio que motivou essa primeira “limpeza”, sintomático de processo de erosão institucional, foi o chamado “mensalão” – basicamente a compra de deputados –, um crime político da mais alta gravidade, cujo julgamento ainda não se fez. Mas ocorreram várias outras rupturas da legalidade constitucional em diversos níveis, como por exemplo na constituição de um “fundo soberano” com recursos orçamentários (ao arrepio completo do que tinha sido aprovado pelo Congresso). O auge das ilegalidades políticas foi representado, obviamente pela campanha presidencial de 2010, quando o chefe de Estado se converteu em verdadeiro chefe de partido, engajado não na vitória sobre a oposição, mas no esmagamento de oponentes políticos, tudo com o uso da máquina pública.

Política e governança: deterioração dos comportamentos e instituições
Um julgamento sumário nessa área poderia começar pelas seguintes palavras: nunca antes, neste país, as instituições estatais foram tão diminuídas e tão abertamente vilipendiadas, a começar pela subordinação do poder legislativo ao executivo. Uma avaliação honesta quase não consegue encontrar pontos positivos nas frentes política e administrativa em todo o período em exame, a começar pela expansão exponencial da máquina pública, devidamente aparelhada e colocada a serviço do partido no poder.
Uma vez instalado no poder, o PT buscou, antes de tudo, reforçar a imagem de que o Estado brasileiro tinha sido “sucateado pela ideologia neoliberal” e que o novo governo tinha recebido uma “herança maldita” do antecessor, numa operação política profundamente desonesta. Ele se empenhou então em “recuperar a capacidade de administração do setor público”, por meio da contratação de milhares de militantes em cargos de confiança, que obviamente eram obrigados a contribuir para o próprio partido. Não existem praticamente levantamentos independentes que possam medir a extensão desse fenômeno nos diversos níveis da máquina pública.
No plano propriamente administrativo ocorreu uma imediata multiplicação de ministérios e entes estatais, em número jamais visto nos anais da administração pública brasileira; poucos brasileiros não pertencentes aos quadros do Estado – e provavelmente muitos funcionários públicos também – seriam capazes de citar o número exato de ministérios e de estatais criadas durante o governo Lula.
De fato, não se tem notícias, em repúblicas presidencialistas, de chefe de Estado que consiga despachar a intervalos regulares com mais de três dezenas de ministros, possivelmente aproximando-se de quatro dezenas (considerando-se os secretários especiais e outros cargos de alto escalão subordinados diretamente à Presidência da República). Certamente os responsáveis políticos nunca ouviram falar de aumento da produtividade no setor público, ou se conhecem o conceito, o tomam como sinônimo de elevação dos salários e de aumento de quadros – em grande parte cargos de confiança, de livre nomeação, mas também crescimento via concursos –, como registrado surpreendentemente num equivocado trabalho a esse respeito feito pelo “novo Ipea”. A pletora de cargos e de funções criadas pelo governo Lula deve representar um aumento constante nas despesas públicas pelas próximas duas gerações pelo menos, com a constituição de um Estado bem mais adiposo do que administrativamente eficiente.

O abandono da ética como princípio político
O aspecto mais saliente, porém, da deterioração administrativa e política no governo Lula tem a ver com o abandono completo dos supostos “pressupostos éticos” que teriam pautado o partido quando na oposição, na sua abordagem dos processos políticos e legislativos e na sua adesão às formas mais condenáveis de barganhas políticas. Com efeito, para fins de montagem de uma base congressual compatível com suas necessidades, as lideranças políticas do governo Lula – a começar pelo primeiro ministro da Casa Civil – organizaram não apenas a tradicional troca de cargos e favores por votos, tradicional no cenário brasileiro, mas trocaram-na pela mais desavergonhada compra de parlamentares (e mesmo de bancadas inteiras) com recursos advindos do submundo da corrupção e do desvio de fontes públicas e de empresas estatais. O episódio, já registrado nos anais como “mensalão”, foi suficientemente documentado para merecer punição exemplar dos responsáveis, o que jamais veio a ocorrer no âmbito do governo. Ao contrário, este se empenhou em acobertá-lo, em desmenti-lo, em desviar o foco das atenções da imprensa e do próprio congresso, assim como ocorreu em outros casos escabrosos de utilização da máquina pública para fins absolutamente condenáveis no plano da legalidade e da moralidade (inclusive o episódio que veio a custar o cargo do primeiro ministro da Fazenda, já envolvido em operações suspeitas desde cargos anteriores em nível municipal).
O Legislativo, de forma geral, foi abastardado e colocado a serviço do Executivo, sujeitando-se aquele poder a humilhações públicas raramente vistas na história política brasileira. O Judiciário também foi alvo de uma guerrilha processual, além de testado de maneira tristemente recorrente no caso do desrespeito continuado à legislação eleitoral, em comportamentos que beiram a atitudes de sarcasmo ou de desprezo. No plano mais geral das instituições democráticas, ocorreram diversas tentativas de controle da imprensa, de revisão unilateral e distorcida da anistia política que presidiu o retorno ao regime democrático no País, assim como de orquestração de supostos movimentos sociais que nada mais representavam do que interesses partidários e sindicais guiados por uma visão neobolchevique do poder político.
Mas foi no plano da legislação criminal que as instituições públicas foram submetidas ao mais sistemático desrespeito às leis e às normas que deveriam presidir um regime constitucional. Movimentos ditos sociais – entre eles, um partido político que se esconde sob a bandeira da reforma agrária – depredaram de forma repetida e violenta propriedades públicas e privadas, destruíram pesquisas científicas, esbulharam cultivos e instalações, sem que se tenha tido notícia de ação pública para coibir e punir esse atos contrários à legalidade. A conivência de autoridades com os perpetradores desses atos superou em várias ocasiões os limites da responsabilidade política, para adentrar no terreno da cumplicidade. Estes foram, provavelmente, os mais flagrantes exemplos de erosão das instituições públicas num país que vinha se esforçando para construir um Estado de direito que passasse dos dispositivos formais do respeito às leis à sua implementação prática. Com efeito, não se tem notícia de que qualquer um dos depredadores de edifícios públicos – inclusive o Congresso nacional – tenha sido processado ou punido por iniciativa dos responsáveis políticos do governo Lula. Órgão públicos são aliás referidos como “pertencentes” a este ou aquele movimento político, sem que sequer ocorra um desmentido a respeito.
Essas manifestações de simpatia política e até de conivência com grupos e personalidades pertencentes ao mesmo arco ideológico do partido no poder se estende inclusive à esfera internacional, com graves repercussões para a credibilidade do Brasil no plano externo. São conhecidos os casos dos esportistas cubanos – devolvidos celeremente à ilha comunista – e o de um terrorista italiano condenado em sua país e justamente retido politicamente no Brasil, dois exemplos, entre outros, da duplicidade ideológica mantida nessa área. Foi também diversas vezes mencionado o caso do “embaixador” da guerrilha colombiana Farc, no Brasil, protegido e resguardado por razões obscuras de convivência entre esse grupo terrorista e narco-traficante com o partido no poder, no âmbito do Foro de São Paulo, uma coordenação de partidos latino-americanos de esquerda teleguiada por Cuba.

O rebaixamento do Estado como norma política
No plano dos procedimentos administrativos, são inúmeros os desafios e os atos de desrespeito continuado a pareceres do Tribunal de Contas da União, com a continuidade de repasses de verbas e a manutenção de obras objeto de sérias restrições dos órgãos de controle. Nunca tantas organizações da chamada sociedade civil – muitas criadas expressamente para explorar um filão dos “negócios” públicos – receberam tantos recursos públicos para a implementação de projetos de duvidosa utilidade públicas e até de escassa relevância social; esse tipo de desvio de recursos públicos vem sendo especialmente praticado nas áreas trabalhista (ou sindical), de assistência pública e de promoção da “cidadania” em diversas frentes regionais. Vários contratos públicos, por sua vez, revelam a existência de canais paralelos nas compras governamentais, com diversas evidências de mau uso do dinheiro público (na verdade, da cidadania).
Finalmente, a existência de um balcão de negócios na Casa Civil, revelada em plena campanha eleitoral presidencial, constituiu um outro exemplo, bem mais grave, da deterioração dos costumes políticos no País. Tentativas de desqualificação e de acobertamento das denúncias só puderam ser vencidas por esforço continuado da imprensa independente, objeto da hostilidade do partido no poder e dos movimentos que circulam em seu entorno. Em relação a esse episódio, aliás, pode-se dizer que nunca antes no Brasil a corrupção tinha chegado tão perto de um presidente. A exemplo dos casos anteriores, de corrupção e mesmo de crimes políticos, não é seguro que se faça justiça como seria de se esperar. Na verdade, desde o episódio do “mensalão” passou a ocorrer uma banalização do crime por figuras partidárias, num dos mais nefastos desenvolvimentos do cenário político brasileiro. Esse é, provavelmente, o pior legado a ser deixado pelo governo Lula no sistema político nacional.
 Shanghai, 26 setembro 2010.

Avaliacao do governo Lula (3): a area social

Balanço do governo Lula: os programas da área social

Paulo Roberto de Almeida

Dando continuidade aos exercícios anteriores, vejamos agora o cenário na área de políticas públicas, terreno no qual o governo Lula acredita ter feito o maior bem para o maior número possível de brasileiros, ainda que à custa de alguma manipulação de dados e da apropriação indevida de políticas iniciadas no governo anterior.

Social: avanços dos “direitos”, retrocesso das “obrigações”
Em nenhum outro terreno das políticas públicas, o governo Lula pode reivindicar, e obter, tanto sucesso quanto no plano social, ainda que considerações sobre a extensão exata e a sustentabilidade no longo prazo sejam de rigor. Sua base foi a economia, que apresentou uma combinação de continuidade das mesmas políticas econômicas “neoliberais” herdadas do governo anterior, acrescida do benefício de um ambiente internacional, entre 2003 e 2008, excepcionalmente favorável ao crescimento brasileiro: nunca antes na história do mundo, a economia mundial cresceu tanto, com tanta valorização das commodities exportadas pelo Brasil. O lado fiscal apresenta preocupações, não tanto por eventual dificuldade do governo em obter recursos – pois sua capacidade “extrativa” é, como se sabe, notoriamente eficiente, para infelicidade dos contribuintes – mas, sim, pela má qualidade dos gastos, notoriamente ineficientes e tendentes à irracionalidade (como os salários dos funcionários e as pensões e aposentadorias, em detrimento das crianças e jovens).
Foi no terreno social, entretanto, que o governo Lula se apresentou com um grande diferencial em relação a todos os governos anteriores, até com certo exagero na cronologia histórica e no número de realizações efetivas (ambos simbolizados no famoso bordão do “nunca antes neste país”, uma clara usurpação da verdade). Não é necessário, num exercício como este, retomar todos os dados do desempenho alcançado nas diversas áreas, inclusive porque a máquina de propaganda do governo – outra de suas enormes realizações – se encarrega de martelar os números de forma retumbante: diminuição da pobreza, incorporação de camadas desfavorecidas à classe média, desconcentração de renda, aumento do emprego formal, inclusão educacional, digital, racial e várias outras inclusões de gênero. A realização símbolo do governo é, manifestamente, o programa Bolsa-Família – uma reunião de diversos programas iniciados no governo anterior, depois que o Fome Zero fracassou – que atende a mais de um quarto da população brasileira, segundo os dados oficiais, e que atenderia bem mais se a oportunidade se apresentasse. Ele tende, aliás, a se eternizar e a se deformar.
As alegações numéricas são, portanto, legítimas e efetivas, devendo, assim, ser acolhidas como um desenvolvimento saudável no panorama social brasileiro, certamente beneficiado pela incorporação de novos estratos sociais aos mercados formais de consumo, de trabalho e a novas oportunidades de realizações pessoais e familiares. Nada pode obscurecer o fato de que o Brasil melhorou sensivelmente no plano social nos últimos anos, mesmo se os fatores causais desses progressos não podem ser resumidos a iniciativas exclusivas de políticas setoriais do período recente, derivando, em grande medida, de um longo processo de transformações sociais (demográficas, educacionais) e de investimentos materiais (saneamento básico, campanhas de saúde, capacitação técnica, infra-estrutura etc.); ou seja, resultam de políticas em curso desde os anos 1990 e aceleradas com a estabilização trazida pelo Plano Real; todos sabem que a inflação constitui um imposto terrível sobre os pobres, sendo responsável por boa parte da concentração de renda no Brasil.

As consequências sempre vêm depois...
Um exercício de avaliação deve ir além dos certificados congratulatórios e tentar determinar, com os olhos no futuro, os efeitos duráveis e a sustentabilidade das políticas sociais, com o objetivo de antecipar suas consequências de longo prazo. Basicamente, todos os governos dispõem de duas vias para promover políticas sociais: a via dos mercados e as do próprio Estado, sendo as primeiras indiretas e aleatórias, e as segundas diretas e focadas em objetivos pré-determinados. A via dos mercados está identificada com produção de riquezas e criação de renda na sua vinculação com investimentos e empregos no setor privado – o único gerador real de riqueza social, já que o Estado se apropria da riqueza produzida por empresários e trabalhadores – cabendo ao Estado promover um ambiente favorável à realização de negócios, investimentos privados e intercâmbios externos, com um mínimo de interferência possível nos mecanismos de acumulação de riquezas.
Não é preciso ser um gênio da ciência política e da análise econômica para constatar que o governo Lula escolheu a outra via, a da redistribuição estatal da riqueza criada pela sociedade, seja por meio de programas já existentes – subsídios e transferências diretas e indiretas a grupos e indivíduos, serviços estatais tradicionais, elaboração constitucional de diretrizes orçamentárias, etc. –, seja mediante grande variedade de novos programas que ele mesmo concebeu e implementou, cuja eficácia social e eficiência operacional são, no mínimo, questionáveis. Um dos grandes problemas associados a esta via é o de que é preciso, também, certo investimento nos meios, antes de se poder chegar aos fins. Ora, cada vez que o Estado implementa, um programa – digamos, aleatoriamente, um de inclusão digital, seja lá o que isso queira dizer – ele precisa se “abastecer” de recursos junto à sociedade, para depois oferecer sua “solução” ao “problema” detectado. Esse via geralmente dilapida recursos.
Os meios, então, tomam invariavelmente precedência sobre os fins: é inevitável, nessas circunstâncias, que o dinheiro arrecadado compulsoriamente – e todos os impostos e taxas são compulsórios, como essa estúpida taxa sobre a cadeia livro que o governo pretende cobrar para... estimular a leitura (!!!) – pague um “pedágio” na entrada (para remunerar o “trabalho” dos burocratas que conceberam e desenvolveram tão edificante programa) e pague um novo “pedágio” na saída. Aqui se trata de remunerar o feliz concessionário que redistribui a “solução-milagre” do suposto “problema” detectado pelos gênios que trabalham para o governo, digamos o microempresário de uma lanhouse “comunitária”. Deixemos de lado, para não complicar demais o roteiro dos pedágios, todas as demais inovações em quaisquer etapas da cadeia, como as licitações dirigidas, a seleção para um fornecimento seletivo, o superfaturamento e outras oportunidades de desvios desses recursos.

Haverá um custo a pagar mais à frente...
Tendo em vista todas as evidências documentadas, todos os registros acumulados de malversações recorrentes associados à coleta, manipulação e circulação de recursos públicos – aliás, da sociedade, apenas intermediados pelo Estado – parece incrível que a própria sociedade brasileira e, a mais forte razão, os partidos políticos e os burocratas e dirigentes estatais ainda insistam nessa via altamente custosa e ineficiente de prestação de serviços públicos, ou de supostos “benefícios sociais”. No caso em espécie, a tal de “inclusão digital”, seria muito melhor e mais barato que ela fosse feita por iniciativa e decisão pessoal de cada indivíduo, atuando por sua própria conta, com plena soberania sobre o seu dinheiro: ele saberia melhor do que qualquer burocrata como empregar seus recursos da melhor forma, para sua maior satisfação, desde que seu dinheiro permanecesse em seu bolso, decidindo-se, eventualmente, por algum computador e algum serviço de conexão, a preços competitivos como devem ser os de um mercado aberto, não cartelizado por grandes empresas favorecidas pelo governo (e, claro, desde que os produtos e serviços não viessem sobrecarregados de todos esses impostos, contribuições e taxas que no Brasil podem chegar abusivamente a 40% do preço final).
Compreende-se que o cidadão comum – inadvertido quanto à carga total de impostos que ele paga compulsoriamente a cada compra, tanto porque esse dado não consta do ato de compra – não estabeleça ele mesmo a relação de custo-prejuízo advinda da “solução” estatal ao seu suposto “problema” de exclusão digital – que nem existiria se ele dispusesse de abundantes ofertas de bens e serviços em mercados competitivos – e que ele até favoreça, em seu imaginário, a “solução” oferecida a “baixo custo” pelo Estado (que na verdade tem um custo embutido bem mais alto). Isso ocorre em razão da deformação geral de compreensão da sociedade brasileira quanto ao papel do Estado numa sociedade “normal”. É menos compreensível que pessoas informadas, burocratas públicos – economistas, administradores, gestores, planejadores – não percebam, e não declarem, que a solução oferecida é a de menor bem-estar possível, tendo em vista alternativas melhores disponíveis em regime de mercados abertos. É, aliás, inadmissível que institutos de economia aplicada, supostamente armados do que existe de mais aperfeiçoado em termos de análises comparativas, não tragam eles mesmos essas evidências quanto à existência de um “ótimo social paretiano” em matéria de políticas públicas, e não levantem essa discussão para o público em geral e para os responsáveis políticos em particular.
Compreende-se, por outro lado, que partidos políticos favoreçam a solução estatal, a menos racional e a menos eficiente, para esse tipo de “serviço público”, já que eles estão diretamente interessados na intermediação do dinheiro coletado na sociedade e canalizado pelo Estado, com a sua participação  direta e interessada nos instrumentos e mecanismos dessas “políticas públicas”. Desse ponto de vista, o PT representa a exacerbação extrema, se me permitem a redundância, desse tipo de comportamento predatório e rentista, que só produz diminuição do bem-estar social e o aumento da burocracia estatal. É o que se poderia chamar de “partido parasitário”.

O Estado-mãezona e a acomodação social...
Mas ainda existe um outro componente profundamente deletério das “políticas sociais” aplicadas pelo governo Lula, que vai pesar como uma herança maldita nas próximas décadas de (não) desenvolvimento brasileiro: é a criação de uma cultura da “assistência pública”, de uma “mentalidade de Estado-mãe”, o patrono de todas as bondades coletivas que o imaginário social concebe como sendo “um direito do cidadão e um dever do Estado” (sem, obviamente, nunca calcular os custos sociais e microeconômicos de todas essas bondades). Esse aspecto é relevante e não vem sendo suficientemente destacado pelos analistas da área de políticas públicas.
O Brasil – não apenas em decorrência do Bolsa-Família, mas do conjunto de iniciativas do mesmo teor e filosofia – está sendo dividido em uma nação de assistidos, de um lado – com todas as demandas legítimas, ou reais, que possam existir, mas também com todos os desvios esperados nesse tipo de empreendimento gigantesco – e em uma nação de pagadores, do outro, em geral a classe média, já que os muito ricos são moderadamente afetados por esse tipo de política (embora alguns queiram, vingativamente, e ainda de forma totalmente equivocada e ineficiente, criar um imposto sobre as “grandes fortunas”). A mentalidade assistencialista e todos os canais rígidos de “redistribuição compulsória” de renda que estão sendo criados nesse universo mental de administração pública, constituem, sem dúvida alguma, a pior herança social que o governo do PT criou e que vai pesar terrivelmente no futuro brasileiro, mais até no plano da psicologia social do que da gestão fiscal.
Pior de tudo, os próprios pobres, supostamente os beneficiários primeiros e últimos com esse tipo de política, não percebem que são eles mesmos que pagam (duplamente) os serviços, são os seus financiadores injustiçados. Todos sabem que, em média, os mais pobres “deixam” (involuntária e inconscientemente) 50% de seus “rendimentos” (quaisquer que sejam eles, inclusive o Bolsa-Família, ou pensões e aposentadorias) nas mãos do Estado, sob a forma de impostos indiretos (já que eles não pagam impostos diretos, ou qualquer outra forma de contribuição sobre uma renda que manifestamente eles não possuem).
Este julgamento severo sobre as políticas “sociais” do governo Lula vai ser, obviamente, recusado por todos aqueles que costumam ver injustiças nos mercados e no capitalismo e que só vêem benefícios advindos das políticas administradas pelo “Estado corretor”. Essa concepção deformada quanto ao funcionamento dos mecanismos sociais de criação e distribuição de riquezas pode ser atribuída a uma ignorância econômica fundamental, mas também a um preconceito político e ideológico que, infelizmente, é muito disseminado num país de baixa educação geral e de qualidade discutível das faculdades de humanidades.

Paulo Roberto de Almeida 
Shanghai, 25.09.2010

Avaliacao do governo Lula (2): a area externa

Balanço do governo Lula: evolução do setor externo

Paulo Roberto de Almeida (2010-11)

O presente ensaio dá continuidade à série iniciada com o trabalho anterior, publicada sob o título “Balanço do governo Lula, 2003-2010: uma avaliação não complacente”, que se ocupou basicamente do crescimento da economia e dos dados macroeconômicos no plano interno. Este aqui pretende realizar o mesmo tipo de exercício para os desafios que se apresentaram ao governo Lula na frente externa da economia. Os elementos factuais e analíticos relativos, de um lado, às políticas sociais e, de outro, à governança, serão deixados para ensaios adicionais na mesma categoria de balanço, a serem realizados oportunamente.

Navegando na bonança como nunca antes na história mundial
Nunca antes na história econômica mundial, pelo menos desde o início da crise dos anos 1970 – que começou com a ruptura unilateral americana, em 1971, do sistema monetário estabelecido em Bretton Woods (1944), seguido logo depois pela primeira crise do petróleo, em 1973 – se tinha registrado na economia mundial um crescimento tão rápido, e tão disseminado em diversas regiões, quanto no período posterior aos ataques terroristas contra os Estados Unidos, em 2001. Reagindo ao que poderia ter sido um desastre econômico de proporções razoáveis, as autoridades monetárias americanas reduziram rapidamente as taxas de juros (mais de 3 pontos de uma única vez) e as mantiveram em patamares ínfimos durante muito tempo, pelos três anos seguintes pelo menos. Elas garantiram, assim, um retorno quase imediato ao crescimento, ao preço, porém, do incentivo ao consumo e aos investimentos imobiliários que iriam se refletir mais à frente, com a criação de bolhas no setor da construção civil, repercutidos e realimentados pela alavancagem financeira excessiva.
Muitos economistas alertaram para a insustentabilidade, no médio prazo, dos padrões de expansão, entre eles Nouriel Roubini – chamado, nos meios financeiros, de Mister Doom, ou Senhor Apocalipse – mas pode-se também dizer que o processo beneficiou o mundo inteiro, enquanto durou. Lula foi um dos muitos “profetas do passado” que se apressaram em criticar os “especuladores de Wall Street” e os erros da política econômica dos Estados Unidos como responsáveis pelo desastre, esquecendo-se, porém, de agradecer aos mesmos atores econômicos pela excepcional fase de expansão da economia mundial que beneficiou enormemente o Brasil. Com efeito, a prodigalidade consumista americana e a disposição chinesa em financiar os déficits gêmeos dos Estados Unidos, investindo grande parte do saldo conquistado na relação comercial bilateral em bônus do Tesouro americano – o que nada mais era do que as duas faces da mesma moeda – foram os responsáveis pelo grande crescimento econômico mundial e pelo aumento vertiginoso dos fluxos comerciais e financeiros.
Foi portanto menos por virtudes da política econômica do governo do que pela conjuntura econômica favorável no plano externo que o Brasil surfou nessa onda de crescimento como poucas vezes tinha tido a oportunidade de fazê-lo em sua longa história como exportador de commodities. De fato, o Brasil foi mais comprado do que vendeu nos mercados internacionais, em especial em sua relação com a China, convertida em primeiro parceiro comercial ao longo de vários anos de crescimento contínuo – embora desequilibrado – da relação comercial bilateral. Prova disso é que o aumento das exportações se deu mais pelo lado dos valores do que dos volumes, em função de altas extraordinárias nos preços das principais matérias-primas exportadas pelo Brasil. O crédito incumbe, portanto, mais ao agronegócio e à principal empresa privada de mineração do Brasil, do que ao governo Lula, embora ele tenha procurado se vangloriar de estar criando uma “nova geografia comercial internacional”.
Na verdade, essa “nova geografia”, que o governo Lula pretendia impulsionar do lado do comércio Sul-Sul, já existia há muito tempo, representada pelo aumento maciço de exportações de manufaturados a partir de emergentes dinâmicos, em especial os asiáticos, em direção dos mercados desenvolvidos, oportunidades perdidas pelo Brasil, empenhado politicamente em aumentar suas exportações para países africanos e latino-americanos (o que não é errado, em si, desde que não represente uma concentração indevida em mercados pouco dinâmicos ou apresentando eventuais problemas de liquidação de créditos comerciais, como ocorreu no boom brasileiro de exportações de manufaturados dos anos 1970, para os mesmos mercados, e que resultaram em diversos calotes comerciais na década seguinte).
A demanda externa representou, de fato, um grande estímulo ao crescimento econômico no Brasil. Ainda assim, numa fase de grande expansão da economia mundial, o Brasil cresceu, na média, menos da metade das taxas do crescimento do PIB global e três vezes menos do que os emergentes mais dinâmicos. O único motivo, obviamente, é o tradicional estrangulamento macro e microeconômico do Brasil, representado pela insuficiência de investimentos e de infraestrutura e pelo chamado “custo-Brasil” – a enorme carga tributária, o custo do capital e as dificuldades burocráticas que penalizam as atividades produtivas de maneira geral e a indústria de manufaturados em particular. O governo Lula pouco ou nada fez para remover esses obstáculos a um crescimento mais vigoroso da economia, limitando-se a anunciar planos de estímulo à indústria e ao comércio exterior que raramente foram implantados de maneira consequente ou continuada.

Comércio exterior: avanços e recuos num setor de forte competição
A política comercial do governo Lula começou, na verdade, por um esforço de contenção de comércio, não do seu aumento, representado pela tentativa, aliás bem sucedida, de “implodir” a Alca, o projeto americano de uma zona de livre comércio hemisférico. Alegando “assimetrias” entre os países e desequilíbrios nas relações econômicas – o que objetivamente existe em quaisquer outras relações econômicas, com quaisquer outras regiões e parceiros – a atitude do governo consistiu em travar essas negociações – no que foi ajudado pela Venezuela e pela Argentina – na ingênua esperança de que um acordo entre o Mercosul e a União Europeia resultasse mais favorável ao Brasil, esquecendo-se de que os europeus só estavam negociando um acordo comercial justamente para compensar eventuais vantagens de acesso aos mercados latino-americanos a serem obtidos pelos Estados Unidos. Era óbvio a qualquer observador mais atento – mas talvez não a certos círculos do poder – que, uma vez retirada a “ameaça” do acesso preferencial e da perda de mercados, os europeus se mostrariam bem mais relutantes em fazer aos países membros do Mercosul as concessões agrícolas que os americanos relutavam igualmente em efetuar – sendo que os europeus sempre foram muito mais protecionistas nessa área do que os próprios americanos.
O fato é que, a despeito do aumento contínuo nos valores acumulados das exportações brasileiras, essas foram sendo crescentemente representadas pelas matérias-primas e perdendo espaço nos mercados mais dinâmicos, embora ganhando em concentração no mercado chinês, que aliás reproduz o típico padrão Norte-Sul condenado por gerações de economistas “progressistas”. O aumento do comércio com parceiros não tradicionais – na África e no Oriente Médio em especial – foi apresentado pelo governo como resultado de sua política de diversificação das exportações do Brasil e de implantação da “nova geografia comercial”, sem mencionar que esse crescimento se dava a partir de patamares muito baixos, envolvia valores nem sempre muito expressivos e, mais importante, quem estava exportando, na verdade, eram empresários privados, não agências governamentais. Todo governo, em qualquer país, tem como obrigação desvendar novos mercados para as empresas privadas, se esforçando ao mesmo tempo para não perder os espaços já conquistados, o que infelizmente ocorreu no caso do Brasil nos mercados mais tradicionais.
Cabe registrar, igualmente, o tratamento leniente concedido pelo governo no caso do protecionismo argentino, abusivo e ilegal, segundo as normas do Mercosul e da própria OMC, redundando em perdas para os exportadores brasileiros. O governo também teve a infeliz ideia de criar um “programa de substituição de importações” de âmbito regional, pretendendo realizar um esforço de promoção comercial ao contrário, isto é, cumprindo funções que deveriam ser assumidas pelos governos dos países vizinhos desejosos de conquistar o mercado brasileiro. Apoiando-se nos saldos desfavoráveis aos países vizinhos no comércio bilateral – o que também é o resultado de um protecionismo inerente à política comercial do Brasil – o presidente chegou inclusive a propor uma sugestão esdrúxula aos importadores brasileiros, a de que eles importassem mais dos parceiros regionais, mesmo que os produtos fossem comparativamente mais caros, apenas para demonstrar “generosidade” para com países supostamente “menos desenvolvidos” do que o Brasil: obviamente, nenhum deles se deixou seduzir por tão estapafúrdia proposta.

Convergência macroeconômica: o Brasil no contexto mundial
Nem tudo foram tropeços na área econômica, sobretudo porque o governo teve o bom senso de preservar as escolhas fundamentais feitas no governo anterior quanto aos principais pilares da gestão macroeconômica: metas de inflação, flutuação cambial e responsabilidade fiscal, que são aliás critérios básicos utilizados por dezenas de outros países na condução de suas políticas fundamentais. O Brasil ganhou em respeito e audiência internacional justamente porque foi preservada a estabilidade econômica, embora durante a maior parte do período o crescimento tenha permanecido lento e instável; a inflação também continuou controlada, ainda que a taxas superiores ao dobro da média mundial, graças bem mais aos esforços do Banco Central do que à colaboração do resto do governo; deve-se registrar que grande parte das pressões inflacionárias é “encomendada” pelo próprio governo, ao manter revisão tarifária de setores administrados e metas de inflação persistentemente altas.
As contas fiscais estão relativamente ajustadas, mas ao preço da constante elevação dos tributos, cuja carga sobe a cada ano; os gastos correntes do governo, mas não os seus investimentos produtivos ou em infraestrutura, seguem elevados, inclusive porque o governo tem sido generoso com os seus próprios mandarins; alguns economistas e mesmo setores do governo ainda se revoltam contra o superávit primário, como se existisse a opção de não pagar a dívida interna, ainda em expansão, mas com níveis maquiados por expedientes contábeis pouco recomendáveis no âmbito do Tesouro.
Na área cambial, o governo atual pratica o que, no precedente, seus economistas chamavam de “populismo cambial”, ou seja, a valorização contínua da moeda, mesmo sob protesto de industriais e exportadores. Todo governo, diga-se de passagem, aprecia essa valorização cambial, pois dá a impressão de que todo mundo ficou mais rico – e a classe média adora viajar ao exterior, para tentar escapar de preços que são abusivos no mercado interno – e ajuda no combate à inflação, sempre uma ameaça aos mais pobres. O governo tenta contornar o problema da valorização cambial acumulando reservas absurdamente altas, que trazem um enorme custo fiscal, espertamente obscurecido por ele. No computo geral, considerando-se o estímulo dado às importações e o desestímulo criado contra as exportações, essa situação provoca elevação do déficit em conta corrente, apenas compensado temporariamente pela entrada vigorosa de investimentos estrangeiros. Grande parte desses recursos é de natureza puramente financeira, e pode reverter facilmente num momento de aumento da desconfiança. O futuro, aqui, é incerto, portanto, embora se possa prever uma futura desvalorização com base nos déficits que vem sendo acumulados atualmente.
No plano da governança mundial, prevalece a ilusão – não apenas no Brasil, mas partilhada igualmente por outros países – de que o G20 financeiro será capaz de restabelecer as bases do crescimento mundial com base na coordenação das políticas econômicas nacionais, objetivo que jamais foi alcançado pelo G7 e que por óbvias razões tampouco será logrado pelas duas dezenas de economias com objetivos conflitantes. A chave do sucesso econômico, como sempre ocorre, são ganhos contínuos de produtividade, com base na boa gestão das contas públicas, boa infraestrutura e ambiente microeconômico – dotado, sobretudo, de capital humano de alta qualidade – e preservação do valor de compra da moeda nacional. Como sempre ocorre, também, abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros são bem vindos, dois traços que o Brasil ainda precisa reforçar em sua economia.

Paulo Roberto de Almeida 
Shanghai, 25 setembro 2010