Balanço
do governo Lula: os programas da área social
Paulo
Roberto de Almeida
Dando
continuidade aos exercícios anteriores, vejamos agora o cenário na área de
políticas públicas, terreno no qual o governo Lula acredita ter feito o maior
bem para o maior número possível de brasileiros, ainda que à custa de alguma
manipulação de dados e da apropriação indevida de políticas iniciadas no
governo anterior.
Social: avanços dos “direitos”,
retrocesso das “obrigações”
Em
nenhum outro terreno das políticas públicas, o governo Lula pode reivindicar, e
obter, tanto sucesso quanto no plano social, ainda que considerações sobre a
extensão exata e a sustentabilidade no longo prazo sejam de rigor. Sua base foi
a economia, que apresentou uma combinação de continuidade das mesmas políticas
econômicas “neoliberais” herdadas do governo anterior, acrescida do benefício
de um ambiente internacional, entre 2003 e 2008, excepcionalmente favorável ao
crescimento brasileiro: nunca antes na história do mundo, a economia mundial
cresceu tanto, com tanta valorização das commodities exportadas pelo Brasil. O
lado fiscal apresenta preocupações, não tanto por eventual dificuldade do
governo em obter recursos – pois sua capacidade “extrativa” é, como se sabe,
notoriamente eficiente, para infelicidade dos contribuintes – mas, sim, pela má
qualidade dos gastos, notoriamente ineficientes e tendentes à irracionalidade
(como os salários dos funcionários e as pensões e aposentadorias, em detrimento
das crianças e jovens).
Foi
no terreno social, entretanto, que o governo Lula se apresentou com um grande
diferencial em relação a todos os governos anteriores, até com certo exagero na
cronologia histórica e no número de realizações efetivas (ambos simbolizados no
famoso bordão do “nunca antes neste país”, uma clara usurpação da verdade). Não
é necessário, num exercício como este, retomar todos os dados do desempenho
alcançado nas diversas áreas, inclusive porque a máquina de propaganda do
governo – outra de suas enormes realizações – se encarrega de martelar os
números de forma retumbante: diminuição da pobreza, incorporação de camadas
desfavorecidas à classe média, desconcentração de renda, aumento do emprego
formal, inclusão educacional, digital, racial e várias outras inclusões de
gênero. A realização símbolo do governo é, manifestamente, o programa
Bolsa-Família – uma reunião de diversos programas iniciados no governo
anterior, depois que o Fome Zero fracassou – que atende a mais de um quarto da
população brasileira, segundo os dados oficiais, e que atenderia bem mais se a
oportunidade se apresentasse. Ele tende, aliás, a se eternizar e a se deformar.
As
alegações numéricas são, portanto, legítimas e efetivas, devendo, assim, ser acolhidas
como um desenvolvimento saudável no panorama social brasileiro, certamente
beneficiado pela incorporação de novos estratos sociais aos mercados formais de
consumo, de trabalho e a novas oportunidades de realizações pessoais e
familiares. Nada pode obscurecer o fato de que o Brasil melhorou sensivelmente
no plano social nos últimos anos, mesmo se os fatores causais desses progressos
não podem ser resumidos a iniciativas exclusivas de políticas setoriais do
período recente, derivando, em grande medida, de um longo processo de
transformações sociais (demográficas, educacionais) e de investimentos
materiais (saneamento básico, campanhas de saúde, capacitação técnica,
infra-estrutura etc.); ou seja, resultam de políticas em curso desde os anos
1990 e aceleradas com a estabilização trazida pelo Plano Real; todos sabem que
a inflação constitui um imposto terrível sobre os pobres, sendo responsável por
boa parte da concentração de renda no Brasil.
As consequências sempre vêm
depois...
Um
exercício de avaliação deve ir além dos certificados congratulatórios e tentar
determinar, com os olhos no futuro, os efeitos duráveis e a sustentabilidade
das políticas sociais, com o objetivo de antecipar suas consequências de longo
prazo. Basicamente, todos os governos dispõem de duas vias para promover políticas
sociais: a via dos mercados e as do próprio Estado, sendo as primeiras
indiretas e aleatórias, e as segundas diretas e focadas em objetivos
pré-determinados. A via dos mercados está identificada com produção de riquezas
e criação de renda na sua vinculação com investimentos e empregos no setor
privado – o único gerador real de riqueza social, já que o Estado se apropria
da riqueza produzida por empresários e trabalhadores – cabendo ao Estado promover
um ambiente favorável à realização de negócios, investimentos privados e
intercâmbios externos, com um mínimo de interferência possível nos mecanismos
de acumulação de riquezas.
Não
é preciso ser um gênio da ciência política e da análise econômica para
constatar que o governo Lula escolheu a outra via, a da redistribuição estatal
da riqueza criada pela sociedade, seja por meio de programas já existentes –
subsídios e transferências diretas e indiretas a grupos e indivíduos, serviços
estatais tradicionais, elaboração constitucional de diretrizes orçamentárias,
etc. –, seja mediante grande variedade de novos programas que ele mesmo
concebeu e implementou, cuja eficácia social e eficiência operacional são, no
mínimo, questionáveis. Um dos grandes problemas associados a esta via é o de
que é preciso, também, certo investimento nos meios, antes de se poder chegar aos fins. Ora, cada vez que o Estado implementa, um programa – digamos,
aleatoriamente, um de inclusão digital, seja lá o que isso queira dizer – ele
precisa se “abastecer” de recursos junto à sociedade, para depois oferecer sua
“solução” ao “problema” detectado. Esse via geralmente dilapida recursos.
Os
meios, então, tomam invariavelmente
precedência sobre os fins: é
inevitável, nessas circunstâncias, que o dinheiro arrecadado compulsoriamente –
e todos os impostos e taxas são compulsórios, como essa estúpida taxa sobre a
cadeia livro que o governo pretende cobrar para... estimular a leitura (!!!) –
pague um “pedágio” na entrada (para remunerar o “trabalho” dos burocratas que
conceberam e desenvolveram tão edificante programa) e pague um novo “pedágio”
na saída. Aqui se trata de remunerar o feliz concessionário que redistribui a
“solução-milagre” do suposto “problema” detectado pelos gênios que trabalham
para o governo, digamos o microempresário de uma lanhouse “comunitária”. Deixemos de lado, para não complicar demais
o roteiro dos pedágios, todas as demais inovações em quaisquer etapas da
cadeia, como as licitações dirigidas, a seleção para um fornecimento seletivo,
o superfaturamento e outras oportunidades de desvios desses recursos.
Haverá um custo a pagar mais à
frente...
Tendo
em vista todas as evidências documentadas, todos os registros acumulados de
malversações recorrentes associados à coleta, manipulação e circulação de
recursos públicos – aliás, da
sociedade, apenas intermediados pelo Estado – parece incrível que a própria
sociedade brasileira e, a mais forte razão, os partidos políticos e os
burocratas e dirigentes estatais ainda insistam nessa via altamente custosa e
ineficiente de prestação de serviços públicos, ou de supostos “benefícios
sociais”. No caso em espécie, a tal de “inclusão digital”, seria muito melhor e
mais barato que ela fosse feita por iniciativa e decisão pessoal de cada
indivíduo, atuando por sua própria conta, com plena soberania sobre o seu
dinheiro: ele saberia melhor do que qualquer burocrata como empregar seus
recursos da melhor forma, para sua maior satisfação, desde que seu dinheiro
permanecesse em seu bolso, decidindo-se, eventualmente, por algum computador e
algum serviço de conexão, a preços competitivos como devem ser os de um mercado
aberto, não cartelizado por grandes empresas favorecidas pelo governo (e, claro,
desde que os produtos e serviços não viessem sobrecarregados de todos esses
impostos, contribuições e taxas que no Brasil podem chegar abusivamente a 40%
do preço final).
Compreende-se
que o cidadão comum – inadvertido quanto à carga total de impostos que ele paga
compulsoriamente a cada compra, tanto porque esse dado não consta do ato de
compra – não estabeleça ele mesmo a relação de custo-prejuízo advinda da
“solução” estatal ao seu suposto “problema” de exclusão digital – que nem
existiria se ele dispusesse de abundantes ofertas de bens e serviços em
mercados competitivos – e que ele até favoreça, em seu imaginário, a “solução”
oferecida a “baixo custo” pelo Estado (que na verdade tem um custo embutido bem
mais alto). Isso ocorre em razão da deformação geral de compreensão da
sociedade brasileira quanto ao papel do Estado numa sociedade “normal”. É menos
compreensível que pessoas informadas, burocratas públicos – economistas,
administradores, gestores, planejadores – não percebam, e não declarem, que a
solução oferecida é a de menor bem-estar possível, tendo em vista alternativas
melhores disponíveis em regime de mercados abertos. É, aliás, inadmissível que
institutos de economia aplicada, supostamente armados do que existe de mais
aperfeiçoado em termos de análises comparativas, não tragam eles mesmos essas
evidências quanto à existência de um “ótimo social paretiano” em matéria de
políticas públicas, e não levantem essa discussão para o público em geral e
para os responsáveis políticos em particular.
Compreende-se,
por outro lado, que partidos políticos favoreçam a solução estatal, a menos
racional e a menos eficiente, para esse tipo de “serviço público”, já que eles
estão diretamente interessados na intermediação do dinheiro coletado na
sociedade e canalizado pelo Estado, com a sua participação direta e interessada nos instrumentos e
mecanismos dessas “políticas públicas”. Desse ponto de vista, o PT representa a
exacerbação extrema, se me permitem a redundância, desse tipo de comportamento
predatório e rentista, que só produz diminuição do bem-estar social e o aumento
da burocracia estatal. É o que se poderia chamar de “partido parasitário”.
O Estado-mãezona e a
acomodação social...
Mas
ainda existe um outro componente profundamente deletério das “políticas
sociais” aplicadas pelo governo Lula, que vai pesar como uma herança maldita
nas próximas décadas de (não) desenvolvimento brasileiro: é a criação de uma
cultura da “assistência pública”, de uma “mentalidade de Estado-mãe”, o patrono
de todas as bondades coletivas que o imaginário social concebe como sendo “um
direito do cidadão e um dever do Estado” (sem, obviamente, nunca calcular os
custos sociais e microeconômicos de todas essas bondades). Esse aspecto é
relevante e não vem sendo suficientemente destacado pelos analistas da área de
políticas públicas.
O
Brasil – não apenas em decorrência do Bolsa-Família, mas do conjunto de
iniciativas do mesmo teor e filosofia – está sendo dividido em uma nação de
assistidos, de um lado – com todas as demandas legítimas, ou reais, que possam
existir, mas também com todos os desvios esperados nesse tipo de empreendimento
gigantesco – e em uma nação de pagadores, do outro, em geral a classe média, já
que os muito ricos são moderadamente afetados por esse tipo de política (embora
alguns queiram, vingativamente, e ainda de forma totalmente equivocada e
ineficiente, criar um imposto sobre as “grandes fortunas”). A mentalidade
assistencialista e todos os canais rígidos de “redistribuição compulsória” de
renda que estão sendo criados nesse universo mental de administração pública,
constituem, sem dúvida alguma, a pior herança social que o governo do PT criou
e que vai pesar terrivelmente no futuro brasileiro, mais até no plano da
psicologia social do que da gestão fiscal.
Pior
de tudo, os próprios pobres, supostamente os beneficiários primeiros e últimos
com esse tipo de política, não percebem que são eles mesmos que pagam
(duplamente) os serviços, são os seus financiadores injustiçados. Todos sabem
que, em média, os mais pobres “deixam” (involuntária e inconscientemente) 50%
de seus “rendimentos” (quaisquer que sejam eles, inclusive o Bolsa-Família, ou
pensões e aposentadorias) nas mãos do Estado, sob a forma de impostos indiretos
(já que eles não pagam impostos diretos, ou qualquer outra forma de
contribuição sobre uma renda que manifestamente eles não possuem).
Este
julgamento severo sobre as políticas “sociais” do governo Lula vai ser,
obviamente, recusado por todos aqueles que costumam ver injustiças nos mercados
e no capitalismo e que só vêem benefícios advindos das políticas administradas
pelo “Estado corretor”. Essa concepção deformada quanto ao funcionamento dos
mecanismos sociais de criação e distribuição de riquezas pode ser atribuída a
uma ignorância econômica fundamental, mas também a um preconceito político e
ideológico que, infelizmente, é muito disseminado num país de baixa educação
geral e de qualidade discutível das faculdades de humanidades.
Paulo Roberto de Almeida
Shanghai,
25.09.2010
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