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domingo, 9 de junho de 2013

Avaliacao do governo Lula (4): o desmantelamento das instituicoes

Balanço do governo Lula: o desmantelamento das instituições

Paulo Roberto de Almeida


Uma das áreas menos felizes da atuação do governo Lula foi no âmbito da governança, onde se observou uma forte deterioração institucional, a começar pelo comportamento do próprio chefe de Estado. Com efeito, cabe destacar a ação essencialmente negativa do governo Lula no terreno das instituições e no das relações com os demais poderes, em especial com o Legislativo, aqui com resultados deletérios, que deverão marcar o funcionamento desse poder nos anos à frente. O presidente também se permitiu atacar, em outros momentos, o poder judiciário, os tribunais de contas, e a própria imprensa, em atitudes de franco descontrole que revelam um comportamento de fundo autoritário, pouco compatível com o estágio democrático já alcançado pelo Brasil.
Desde o primeiro momento, com objetivo de montar da base de apoio ao governo na frente política, foram engajados esforços no sentido de não apenas barganhar a adesão de parlamentares, como de praticamente “adquirir” bancadas inteiras para colocá-las a serviço do executivo. Observou-se, como nunca antes no Brasil, o desmantelamento das instituições e retrocessos lamentáveis no plano dos comportamentos dos agentes públicos, contrapondo as promessas do outrora partido da “ética na política” com a realidade de malversações. A imprensa trouxe diversas evidências explícitas – com perdão pela redundância, mas ela cabe – de fraudes e de mentiras de todo gênero comandadas a partir da Casa Civil, cujo primeiro chefe teve de ser virtualmente expurgado (ainda que oficialmente afastado a pedido), não sem ter sido homenageado pelo presidente. O episódio que motivou essa primeira “limpeza”, sintomático de processo de erosão institucional, foi o chamado “mensalão” – basicamente a compra de deputados –, um crime político da mais alta gravidade, cujo julgamento ainda não se fez. Mas ocorreram várias outras rupturas da legalidade constitucional em diversos níveis, como por exemplo na constituição de um “fundo soberano” com recursos orçamentários (ao arrepio completo do que tinha sido aprovado pelo Congresso). O auge das ilegalidades políticas foi representado, obviamente pela campanha presidencial de 2010, quando o chefe de Estado se converteu em verdadeiro chefe de partido, engajado não na vitória sobre a oposição, mas no esmagamento de oponentes políticos, tudo com o uso da máquina pública.

Política e governança: deterioração dos comportamentos e instituições
Um julgamento sumário nessa área poderia começar pelas seguintes palavras: nunca antes, neste país, as instituições estatais foram tão diminuídas e tão abertamente vilipendiadas, a começar pela subordinação do poder legislativo ao executivo. Uma avaliação honesta quase não consegue encontrar pontos positivos nas frentes política e administrativa em todo o período em exame, a começar pela expansão exponencial da máquina pública, devidamente aparelhada e colocada a serviço do partido no poder.
Uma vez instalado no poder, o PT buscou, antes de tudo, reforçar a imagem de que o Estado brasileiro tinha sido “sucateado pela ideologia neoliberal” e que o novo governo tinha recebido uma “herança maldita” do antecessor, numa operação política profundamente desonesta. Ele se empenhou então em “recuperar a capacidade de administração do setor público”, por meio da contratação de milhares de militantes em cargos de confiança, que obviamente eram obrigados a contribuir para o próprio partido. Não existem praticamente levantamentos independentes que possam medir a extensão desse fenômeno nos diversos níveis da máquina pública.
No plano propriamente administrativo ocorreu uma imediata multiplicação de ministérios e entes estatais, em número jamais visto nos anais da administração pública brasileira; poucos brasileiros não pertencentes aos quadros do Estado – e provavelmente muitos funcionários públicos também – seriam capazes de citar o número exato de ministérios e de estatais criadas durante o governo Lula.
De fato, não se tem notícias, em repúblicas presidencialistas, de chefe de Estado que consiga despachar a intervalos regulares com mais de três dezenas de ministros, possivelmente aproximando-se de quatro dezenas (considerando-se os secretários especiais e outros cargos de alto escalão subordinados diretamente à Presidência da República). Certamente os responsáveis políticos nunca ouviram falar de aumento da produtividade no setor público, ou se conhecem o conceito, o tomam como sinônimo de elevação dos salários e de aumento de quadros – em grande parte cargos de confiança, de livre nomeação, mas também crescimento via concursos –, como registrado surpreendentemente num equivocado trabalho a esse respeito feito pelo “novo Ipea”. A pletora de cargos e de funções criadas pelo governo Lula deve representar um aumento constante nas despesas públicas pelas próximas duas gerações pelo menos, com a constituição de um Estado bem mais adiposo do que administrativamente eficiente.

O abandono da ética como princípio político
O aspecto mais saliente, porém, da deterioração administrativa e política no governo Lula tem a ver com o abandono completo dos supostos “pressupostos éticos” que teriam pautado o partido quando na oposição, na sua abordagem dos processos políticos e legislativos e na sua adesão às formas mais condenáveis de barganhas políticas. Com efeito, para fins de montagem de uma base congressual compatível com suas necessidades, as lideranças políticas do governo Lula – a começar pelo primeiro ministro da Casa Civil – organizaram não apenas a tradicional troca de cargos e favores por votos, tradicional no cenário brasileiro, mas trocaram-na pela mais desavergonhada compra de parlamentares (e mesmo de bancadas inteiras) com recursos advindos do submundo da corrupção e do desvio de fontes públicas e de empresas estatais. O episódio, já registrado nos anais como “mensalão”, foi suficientemente documentado para merecer punição exemplar dos responsáveis, o que jamais veio a ocorrer no âmbito do governo. Ao contrário, este se empenhou em acobertá-lo, em desmenti-lo, em desviar o foco das atenções da imprensa e do próprio congresso, assim como ocorreu em outros casos escabrosos de utilização da máquina pública para fins absolutamente condenáveis no plano da legalidade e da moralidade (inclusive o episódio que veio a custar o cargo do primeiro ministro da Fazenda, já envolvido em operações suspeitas desde cargos anteriores em nível municipal).
O Legislativo, de forma geral, foi abastardado e colocado a serviço do Executivo, sujeitando-se aquele poder a humilhações públicas raramente vistas na história política brasileira. O Judiciário também foi alvo de uma guerrilha processual, além de testado de maneira tristemente recorrente no caso do desrespeito continuado à legislação eleitoral, em comportamentos que beiram a atitudes de sarcasmo ou de desprezo. No plano mais geral das instituições democráticas, ocorreram diversas tentativas de controle da imprensa, de revisão unilateral e distorcida da anistia política que presidiu o retorno ao regime democrático no País, assim como de orquestração de supostos movimentos sociais que nada mais representavam do que interesses partidários e sindicais guiados por uma visão neobolchevique do poder político.
Mas foi no plano da legislação criminal que as instituições públicas foram submetidas ao mais sistemático desrespeito às leis e às normas que deveriam presidir um regime constitucional. Movimentos ditos sociais – entre eles, um partido político que se esconde sob a bandeira da reforma agrária – depredaram de forma repetida e violenta propriedades públicas e privadas, destruíram pesquisas científicas, esbulharam cultivos e instalações, sem que se tenha tido notícia de ação pública para coibir e punir esse atos contrários à legalidade. A conivência de autoridades com os perpetradores desses atos superou em várias ocasiões os limites da responsabilidade política, para adentrar no terreno da cumplicidade. Estes foram, provavelmente, os mais flagrantes exemplos de erosão das instituições públicas num país que vinha se esforçando para construir um Estado de direito que passasse dos dispositivos formais do respeito às leis à sua implementação prática. Com efeito, não se tem notícia de que qualquer um dos depredadores de edifícios públicos – inclusive o Congresso nacional – tenha sido processado ou punido por iniciativa dos responsáveis políticos do governo Lula. Órgão públicos são aliás referidos como “pertencentes” a este ou aquele movimento político, sem que sequer ocorra um desmentido a respeito.
Essas manifestações de simpatia política e até de conivência com grupos e personalidades pertencentes ao mesmo arco ideológico do partido no poder se estende inclusive à esfera internacional, com graves repercussões para a credibilidade do Brasil no plano externo. São conhecidos os casos dos esportistas cubanos – devolvidos celeremente à ilha comunista – e o de um terrorista italiano condenado em sua país e justamente retido politicamente no Brasil, dois exemplos, entre outros, da duplicidade ideológica mantida nessa área. Foi também diversas vezes mencionado o caso do “embaixador” da guerrilha colombiana Farc, no Brasil, protegido e resguardado por razões obscuras de convivência entre esse grupo terrorista e narco-traficante com o partido no poder, no âmbito do Foro de São Paulo, uma coordenação de partidos latino-americanos de esquerda teleguiada por Cuba.

O rebaixamento do Estado como norma política
No plano dos procedimentos administrativos, são inúmeros os desafios e os atos de desrespeito continuado a pareceres do Tribunal de Contas da União, com a continuidade de repasses de verbas e a manutenção de obras objeto de sérias restrições dos órgãos de controle. Nunca tantas organizações da chamada sociedade civil – muitas criadas expressamente para explorar um filão dos “negócios” públicos – receberam tantos recursos públicos para a implementação de projetos de duvidosa utilidade públicas e até de escassa relevância social; esse tipo de desvio de recursos públicos vem sendo especialmente praticado nas áreas trabalhista (ou sindical), de assistência pública e de promoção da “cidadania” em diversas frentes regionais. Vários contratos públicos, por sua vez, revelam a existência de canais paralelos nas compras governamentais, com diversas evidências de mau uso do dinheiro público (na verdade, da cidadania).
Finalmente, a existência de um balcão de negócios na Casa Civil, revelada em plena campanha eleitoral presidencial, constituiu um outro exemplo, bem mais grave, da deterioração dos costumes políticos no País. Tentativas de desqualificação e de acobertamento das denúncias só puderam ser vencidas por esforço continuado da imprensa independente, objeto da hostilidade do partido no poder e dos movimentos que circulam em seu entorno. Em relação a esse episódio, aliás, pode-se dizer que nunca antes no Brasil a corrupção tinha chegado tão perto de um presidente. A exemplo dos casos anteriores, de corrupção e mesmo de crimes políticos, não é seguro que se faça justiça como seria de se esperar. Na verdade, desde o episódio do “mensalão” passou a ocorrer uma banalização do crime por figuras partidárias, num dos mais nefastos desenvolvimentos do cenário político brasileiro. Esse é, provavelmente, o pior legado a ser deixado pelo governo Lula no sistema político nacional.
 Shanghai, 26 setembro 2010.

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