Balanço
do governo Lula: o desmantelamento das instituições
Paulo
Roberto de Almeida
Uma
das áreas menos felizes da atuação do governo Lula foi no âmbito da governança,
onde se observou uma forte deterioração institucional, a começar pelo
comportamento do próprio chefe de Estado. Com efeito, cabe destacar a ação essencialmente
negativa do governo Lula no terreno das instituições e no das relações com os
demais poderes, em especial com o Legislativo, aqui com resultados deletérios,
que deverão marcar o funcionamento desse poder nos anos à frente. O presidente
também se permitiu atacar, em outros momentos, o poder judiciário, os tribunais
de contas, e a própria imprensa, em atitudes de franco descontrole que revelam
um comportamento de fundo autoritário, pouco compatível com o estágio
democrático já alcançado pelo Brasil.
Desde
o primeiro momento, com objetivo de montar da base de apoio ao governo na
frente política, foram engajados esforços no sentido de não apenas barganhar a
adesão de parlamentares, como de praticamente “adquirir” bancadas inteiras para
colocá-las a serviço do executivo. Observou-se, como nunca antes no Brasil, o
desmantelamento das instituições e retrocessos lamentáveis no plano dos
comportamentos dos agentes públicos, contrapondo as promessas do outrora
partido da “ética na política” com a realidade de malversações. A imprensa
trouxe diversas evidências explícitas – com perdão pela redundância, mas ela
cabe – de fraudes e de mentiras de todo gênero comandadas a partir da Casa
Civil, cujo primeiro chefe teve de ser virtualmente expurgado (ainda que
oficialmente afastado a pedido), não sem ter sido homenageado pelo presidente.
O episódio que motivou essa primeira “limpeza”, sintomático de processo de
erosão institucional, foi o chamado “mensalão” – basicamente a compra de
deputados –, um crime político da mais alta gravidade, cujo julgamento ainda
não se fez. Mas ocorreram várias outras rupturas da legalidade constitucional
em diversos níveis, como por exemplo na constituição de um “fundo soberano” com
recursos orçamentários (ao arrepio completo do que tinha sido aprovado pelo
Congresso). O auge das ilegalidades políticas foi representado, obviamente pela
campanha presidencial de 2010, quando o chefe de Estado se converteu em verdadeiro
chefe de partido, engajado não na vitória sobre a oposição, mas no esmagamento
de oponentes políticos, tudo com o uso da máquina pública.
Política e governança:
deterioração dos comportamentos e instituições
Um
julgamento sumário nessa área poderia começar pelas seguintes palavras: nunca
antes, neste país, as instituições estatais foram tão diminuídas e tão
abertamente vilipendiadas, a começar pela subordinação do poder legislativo ao
executivo. Uma avaliação honesta quase não consegue encontrar pontos positivos
nas frentes política e administrativa em todo o período em exame, a começar
pela expansão exponencial da máquina pública, devidamente aparelhada e colocada
a serviço do partido no poder.
Uma
vez instalado no poder, o PT buscou, antes de tudo, reforçar a imagem de que o Estado
brasileiro tinha sido “sucateado pela ideologia neoliberal” e que o novo governo
tinha recebido uma “herança maldita” do antecessor, numa operação política
profundamente desonesta. Ele se empenhou então em “recuperar a capacidade de
administração do setor público”, por meio da contratação de milhares de
militantes em cargos de confiança, que obviamente eram obrigados a contribuir
para o próprio partido. Não existem praticamente levantamentos independentes
que possam medir a extensão desse fenômeno nos diversos níveis da máquina
pública.
No
plano propriamente administrativo ocorreu uma imediata multiplicação de
ministérios e entes estatais, em número jamais visto nos anais da administração
pública brasileira; poucos brasileiros não pertencentes aos quadros do Estado –
e provavelmente muitos funcionários públicos também – seriam capazes de citar o
número exato de ministérios e de estatais criadas durante o governo Lula.
De
fato, não se tem notícias, em repúblicas presidencialistas, de chefe de Estado
que consiga despachar a intervalos regulares com mais de três dezenas de
ministros, possivelmente aproximando-se de quatro dezenas (considerando-se os secretários
especiais e outros cargos de alto escalão subordinados diretamente à
Presidência da República). Certamente os responsáveis políticos nunca ouviram
falar de aumento da produtividade no setor público, ou se conhecem o conceito,
o tomam como sinônimo de elevação dos salários e de aumento de quadros – em
grande parte cargos de confiança, de livre nomeação, mas também crescimento via
concursos –, como registrado surpreendentemente num equivocado trabalho a esse
respeito feito pelo “novo Ipea”. A pletora de cargos e de funções criadas pelo
governo Lula deve representar um aumento constante nas despesas públicas pelas
próximas duas gerações pelo menos, com a constituição de um Estado bem mais
adiposo do que administrativamente eficiente.
O abandono da ética como
princípio político
O
aspecto mais saliente, porém, da deterioração administrativa e política no
governo Lula tem a ver com o abandono completo dos supostos “pressupostos
éticos” que teriam pautado o partido quando na oposição, na sua abordagem dos
processos políticos e legislativos e na sua adesão às formas mais condenáveis
de barganhas políticas. Com efeito, para fins de montagem de uma base
congressual compatível com suas necessidades, as lideranças políticas do
governo Lula – a começar pelo primeiro ministro da Casa Civil – organizaram não
apenas a tradicional troca de cargos e favores por votos, tradicional no cenário
brasileiro, mas trocaram-na pela mais desavergonhada compra de parlamentares (e
mesmo de bancadas inteiras) com recursos advindos do submundo da corrupção e do
desvio de fontes públicas e de empresas estatais. O episódio, já registrado nos
anais como “mensalão”, foi suficientemente documentado para merecer punição
exemplar dos responsáveis, o que jamais veio a ocorrer no âmbito do governo. Ao
contrário, este se empenhou em acobertá-lo, em desmenti-lo, em desviar o foco
das atenções da imprensa e do próprio congresso, assim como ocorreu em outros
casos escabrosos de utilização da máquina pública para fins absolutamente
condenáveis no plano da legalidade e da moralidade (inclusive o episódio que
veio a custar o cargo do primeiro ministro da Fazenda, já envolvido em
operações suspeitas desde cargos anteriores em nível municipal).
O
Legislativo, de forma geral, foi abastardado e colocado a serviço do Executivo,
sujeitando-se aquele poder a humilhações públicas raramente vistas na história
política brasileira. O Judiciário também foi alvo de uma guerrilha processual,
além de testado de maneira tristemente recorrente no caso do desrespeito
continuado à legislação eleitoral, em comportamentos que beiram a atitudes de
sarcasmo ou de desprezo. No plano mais geral das instituições democráticas,
ocorreram diversas tentativas de controle da imprensa, de revisão unilateral e
distorcida da anistia política que presidiu o retorno ao regime democrático no
País, assim como de orquestração de supostos movimentos sociais que nada mais
representavam do que interesses partidários e sindicais guiados por uma visão
neobolchevique do poder político.
Mas
foi no plano da legislação criminal que as instituições públicas foram
submetidas ao mais sistemático desrespeito às leis e às normas que deveriam
presidir um regime constitucional. Movimentos ditos sociais – entre eles, um partido
político que se esconde sob a bandeira da reforma agrária – depredaram de forma
repetida e violenta propriedades públicas e privadas, destruíram pesquisas
científicas, esbulharam cultivos e instalações, sem que se tenha tido notícia
de ação pública para coibir e punir esse atos contrários à legalidade. A
conivência de autoridades com os perpetradores desses atos superou em várias
ocasiões os limites da responsabilidade política, para adentrar no terreno da
cumplicidade. Estes foram, provavelmente, os mais flagrantes exemplos de erosão
das instituições públicas num país que vinha se esforçando para construir um
Estado de direito que passasse dos dispositivos formais do respeito às leis à
sua implementação prática. Com efeito, não se tem notícia de que qualquer um
dos depredadores de edifícios públicos – inclusive o Congresso nacional – tenha
sido processado ou punido por iniciativa dos responsáveis políticos do governo
Lula. Órgão públicos são aliás referidos como “pertencentes” a este ou aquele
movimento político, sem que sequer ocorra um desmentido a respeito.
Essas
manifestações de simpatia política e até de conivência com grupos e
personalidades pertencentes ao mesmo arco ideológico do partido no poder se
estende inclusive à esfera internacional, com graves repercussões para a
credibilidade do Brasil no plano externo. São conhecidos os casos dos
esportistas cubanos – devolvidos celeremente à ilha comunista – e o de um
terrorista italiano condenado em sua país e justamente retido politicamente no
Brasil, dois exemplos, entre outros, da duplicidade ideológica mantida nessa
área. Foi também diversas vezes mencionado o caso do “embaixador” da guerrilha
colombiana Farc, no Brasil, protegido e resguardado por razões obscuras de
convivência entre esse grupo terrorista e narco-traficante com o partido no
poder, no âmbito do Foro de São Paulo, uma coordenação de partidos
latino-americanos de esquerda teleguiada por Cuba.
O rebaixamento do Estado como
norma política
No
plano dos procedimentos administrativos, são inúmeros os desafios e os atos de
desrespeito continuado a pareceres do Tribunal de Contas da União, com a continuidade
de repasses de verbas e a manutenção de obras objeto de sérias restrições dos
órgãos de controle. Nunca tantas organizações da chamada sociedade civil –
muitas criadas expressamente para explorar um filão dos “negócios” públicos –
receberam tantos recursos públicos para a implementação de projetos de duvidosa
utilidade públicas e até de escassa relevância social; esse tipo de desvio de
recursos públicos vem sendo especialmente praticado nas áreas trabalhista (ou
sindical), de assistência pública e de promoção da “cidadania” em diversas
frentes regionais. Vários contratos públicos, por sua vez, revelam a existência
de canais paralelos nas compras governamentais, com diversas evidências de mau
uso do dinheiro público (na verdade, da cidadania).
Finalmente,
a existência de um balcão de negócios na Casa Civil, revelada em plena campanha
eleitoral presidencial, constituiu um outro exemplo, bem mais grave, da
deterioração dos costumes políticos no País. Tentativas de desqualificação e de
acobertamento das denúncias só puderam ser vencidas por esforço continuado da
imprensa independente, objeto da hostilidade do partido no poder e dos
movimentos que circulam em seu entorno. Em relação a esse episódio, aliás,
pode-se dizer que nunca antes no Brasil a corrupção tinha chegado tão perto de
um presidente. A exemplo dos casos anteriores, de corrupção e mesmo de crimes
políticos, não é seguro que se faça justiça como seria de se esperar. Na
verdade, desde o episódio do “mensalão” passou a ocorrer uma banalização do
crime por figuras partidárias, num dos mais nefastos desenvolvimentos do
cenário político brasileiro. Esse é, provavelmente, o pior legado a ser deixado
pelo governo Lula no sistema político nacional.
Shanghai,
26 setembro 2010.
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