Diplomacia de Lula: Ucrânia, China, Cúpula sul-americana, Maduro
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).
Respostas a questões de corresponde de agência estrangeira em Brasília.
1) Rússia/Ucrânia: Brasil condenou a invasão e procura plano de paz, mas Lula acusou EUA e Europa de "alentar" a guerra, recebeu o chanceler russo, não se encontrou com Zelensky. Como analisa a postura acidentada ou incômoda do Lula adiante a guerra? Qual são os erros e acertos do Lula?
PRA: É preciso considerar que Lula, como líder do Partido dos Trabalhadores (PT), tem conexões, talvez vínculos de solidariedade não de todo explicados, com Cuba e com o Partido Comunista Cubano, desde praticamente sua origem, em 1980 (pelo perfil de boa parte de seus militantes e quadros profissionais, todos eles identificados com o socialismo esquerdista latino-americano, fortemente americano); durante seu governo, Lula forjou, além dos laços tradicionais com a esquerda latino-americana – o PT é um dos organizadores do Foro de São Paulo, criado em 1990, quando da implosão do socialismo e da “orfandade” de Cuba, que ficou sem os subsídios soviéticos –, uma cooperação e alianças estratégicas com outros países do chamado Sul Global, mas sobretudo com as duas grandes autocracias, Rússia e China, especialmente do ponto de vista do antiamericanismo. Quando se desempenhou à frente dos seus dois primeiros mandatos (2003-2010), sua diplomacia foi fortemente marcada pela criação do IBAS (Índia, Brasil, África do Sul, logo em 2003) e, sobretudo, a partir de 2006, oficializada em 2009, a criação do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), ampliado em 2011 para incluir a África do Sul, constituindo-se no BRICS.
A resposta mais simples à pergunta acima é, portanto, esta: Lula adotou essa postura por antiamericanismo tradicional do PT e, mais especialmente, pela aliança com a duas grandes autocracias da Eurásia, reforçada nos três primeiros mandatos do PT e retomada desde seu terceiro mandato a partir desde ano de 2023. Ademais, convidado pelo G7 de Hiroshima, Lula esperava ser recebido como o grande líder dessa entidade fantasmagórica que responde pelo nome de Sul Global; ele foi completamente ofuscado pela presença de Zelensky, daí explicando-se seu incômodo em encontrar com o presidente ucraniano, que se apresentou como grande estadista de estatura mundial, sendo Lula relegado a segundo plano. Existe, também, portanto, um elemento de ciúme, e até de raiva, na atitude de Lula.
2) EUA/China: Ao viajar a Washington e Pequim ao início do governo, Lula sinalizou querer manter um balanço entre as potências. Conseguiu?
PRA: A busca de autonomia em sua política externa é uma velha tradição da diplomacia brasileira, e atravessou décadas, em governos autoritários e democráticos, civis ou militares. Houve uma conjuntura de alinhamento com os EUA durante a primeira Guerra Fria, quando os EUA eram a única potência dispondo de recursos financeiros, tecnológicos, comerciais e de cooperação para formação de capital humano, positivos para o crescimento e o desenvolvimento do Brasil. Desde essa época, o mundo se transformou e se diversificou. Depois de 150 anos de relação privilegiada com Washington, a China superou os EUA no plano do comércio bilateral, a partir de 2009. Mas, nos últimos anos, o turnover comercial Brasil-China representa mais do que o dobro do comércio somado dos dois outros primeiros parceiros com o Brasil, EUA e UE. O superávit de mais de 40 bilhões de dólares no comércio com a China é absolutamente essencial para garantir o equilíbrio das transações correntes do Brasil, que sem isso enfrentaria sérios problemas no equilíbrio do balanço de pagamentos.
Mas, esse equilíbrio entre as duas grandes potências é uma alegação quase sem fundamentos, pois que o PT e Lula já aderiram a essa ideia artificial de criação de uma “nova ordem global”, alternativa à ordem de Bretton Woods, desprezada como “ocidental”. As declarações de Lula em diversas ocasiões, mas especialmente em Beijing, deixaram muito claro sua definição de alinhamento com a China e com essa ideia da nova ordem global, também justificada pela busca de uma “multipolaridade” indefinida. Ou seja, o equilíbrio entre as duas grandes potências não possui o mesmo significado no plano prático, embora seja ainda a postura oficial do Itamaraty e a da maioria da opinião pública brasileira.
3) Cúpula Sul-americana: Lula conseguiu reunir os líderes da América do Sul pela primeira vez em quase uma década, mas sua visão sobre Venezuela foi motivo de divisão. Uma semana depois, qual foi a importância da cúpula dos presidentes?
PRA: Lula tenta repetir o que tinha sido feito pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que reuniu, efetivamente pela primeira vez, os dirigentes da América do Sul, em 2000, com o objetivo de propiciar a integração física do continente (infraestrutura, energia, comunicações, etc.), por meio da IIRSA (Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana). Esse grande objetivo foi deliberadamente sabotado pelo governo Lula, a partir de 2003, que se empenhou em criar, primeiro a Comunidade Sul-Americana de Nações (em 2004, numa reunião em Lima), iniciativa sabotada por Hugo Chávez, depois transformada na Unasul, que foi mais ou menos controlada pelos bolivarianos, com uma suntuosa sede em Quito, na época de Ruben Correa, construída com os petrodólares chavistas. A intenção, tanto de Lula quanto de Chávez, era claramente antiamericana, mas no plano da integração física ou comercial pouco se avançou na primeira década do século.
O ativismo prático da diplomacia brasileira foi bem-sucedido, pois que se conseguiu mobilizar todos os dirigentes – com exceção do Peru, que ainda assim enviou um representante diplomático, seu chanceler –, mas as declarações de Lula, um dia antes do encontro de cúpula foram desastrosas, assim como o fato dele ter concedido honras de visita de Estado ao ditador venezuelano. Lula enfrentou desacordos com praticamente todos os demais dirigentes e foi expressamente desautorizado pelos presidentes do Uruguai e do Chile, que disseram ser afrontoso considerar a Venezuela uma democracia, como fez Lula da forma mais patética possível. Tanto foi assim que os presidentes não aprovaram nada de muito significativo, apenas repassando o dever de estabelecer novos mecanismos de integração – que não serão, de nenhuma forma, a repetição da Unasul, como pretendia Lula – a uma comissão de chanceleres (na verdade será de meros assessores diplomáticos), que terá um prazo de seis meses para se pronunciar. Ou seja, com suas declarações infelizes, Lula retirou qualquer evidência de sucesso em sua iniciativa de reunião de cúpula. Esta, como outras iniciativas – como uma próxima reunião de países amazônicos – respondem muito mais a um desejo megalomaníaco de Lula de ser considerado um grande líder regional e mundial, do que a um planejamento técnico bem concebido para fazer avançar um difícil processo de integração, numa fase de clara fragmentação do continente.
4) Maduro: Como pode se explicar que, mesmo se o Tribunal Penal Internacional abriu um inquérito sobre violações de direitos humanos na Venezuela e líderes de esquerda como Boric tem críticas fortes contra Maduro, Lula defende o presidente venezuelano sem expressar crítica nenhuma sobre seu governo? Lula errou ao defender a Maduro? Por que? A liderança regional do Lula sofreu prejuízo?
PRA: Lula tem esses vínculos fortes com as ditaduras de esquerda, por razões ainda não de todo claras, mas que se vinculam às origens e aos compromissos do PT, e não possui nenhum espírito crítico ao defender esses ditadores – Chávez, Maduro, Ortega, e outros, no continente africano –, assim como as duas grandes autocracias da Eurásia, sendo que uma delas é claramente de direita (mas antiamericana, que é o que basta). Uma outra razão é a perspectiva de grandes negócios com todas essas ditaduras, muitos deles mesclados a transações paralelas, talvez muito lucrativas, tanto oficialmente, quanto oficiosamente, com possíveis comissões e subornos que já foram revelados por investigações posteriores. Negócios legais e pouco claros entre o Brasil e a Venezuela, na época de Lula 1 e 2 e de Chávez, continuados sob Maduro, podem ter liberados milhões de dólares para as duas partes, como evidenciado no Brasil e em outros países, inclusive africanos, em especial com Cuba e Venezuela, as duas ditaduras mais impenetráveis da região. A eleição de Bolsonaro em 2018 pode ser explicada pela enorme rejeição por parte da classe média brasileira, em relação à imensa corrupção dos anos PT na presidência da República.
Em todos esses episódios, Lula foi movido por pouca, ou nenhuma ideologia, mas pela perspectiva de negócios vantajosos, no plano do Estado, do setor privado e do ponto de vista do partido, embora não se possa descartar o esquerdismo anacrônico do PT e de muitos dos esquerdistas que o sustentam politicamente. Esse viés esquerdista pró-ditatorial de Lula também pode ter contribuído para erodir parte de sua pretensão a tornar-se um líder regional sul-americano, agora sem a competição de Chávez e de Kirchner, como era o caso antes.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4409: 5 junho 2023, 4 p.