Em defesa do globalismo: uma declaração pessoal
Volto ao mesmo tema que continua a me estarrecer, o do tal “globalismo” e “antiglobalismo”, mas não a uma contraposição idiota com quem defende ideias idiotas, mas a adesão a elas por parte de colegas diplomatas que deveriam saber, por obrigação profissional, que o tal de “globalismo” é simplesmente o universo de trabalho no qual estamos imersos por necessidade de ofício e ambiente natural de exercício de função.
Que ignorantes e mentecaptos, como certo guru governamental e pelo menos um aspone presidencial, sejam adeptos de certas “teorias” conspiratórias — o conceito de teoria não se aplica pela debilidade empírica do argumento — sobre esse tal de globalismo, isso eu até admito, uma vez que existem no mundo centenas, milhares de idiotas que são capazes de acreditar em qualquer coisa, até mesmo as mais inverossímeis. Afinal de contas, idiotas retóricos são capazes de atrair outros idiotas que andavam dispersos pelo mundo. O Rasputin de subúrbio, aquele subsofista da Virgínia, conseguiu fazer isso, e hoje vive financiado por um monte de idiotas que lhe garantem um bom nível de vida em troca de cursinhos fraudulentos de “subfilosofia”. Ele tem o direito de fazer isso numa democracia; o governo faz a mesma coisa com as loterias.
Agora, que diplomatas escolados, formados e instruídos em décadas de trabalho profissional, façam a mesma coisa, aí já é mais grave, na verdade é uma coisa inadmissível para os altos padrões de inteligência que uma diplomacia de respeito exige dos seus profissionais de carreira. A coisa só pode, então, se explicar de duas formas: 1) submissão oportunista e hipócrita aos idiotas que controlam temporariamente o poder e que exibem eventualmente adesão beata a essas ideias idiotas, numa sabujice abjeta por interesses inconfessáveis; 2) por idiotice consumada, no caso de adesão sincera e desinteressada.
Em ambos os casos, trata-se de situação lamentável do ponto de vista da inteligência e da dignidade institucional de um Serviço Exterior que se pretende respeitável e de qualidade.
Falando agora concretamente, eu concluo pela seguinte constatação: o Itamaraty, ao qual sirvo por mais de 42 anos, atravessa atualmente uma das situações mais sombrias e estarrecedoras de toda a sua história, dominado por ignorantes, beatos e oportunistas, como nunca antes aconteceu em toda a sua trajetória de quase duzentos anos de trabalho profissional. Ele sobreviverá, certamente, à horda de bárbaros que ensombrecem atualmente o seu trabalho profissional, e que o tornam objeto do ridículo universal (salvo no pequeno círculo de fanáticos que se distinguem nessa obra de desmantelamento institucional e de redução de sua inteligência).
Num futuro ainda indeterminado, a qualidade do trabalho de seus profissionais voltará a ser reconhecida e dignificada. Aos colegas que se desesperam com o seu embrutecimento atual, com o ridículo das posturas antiglobalistas ou francamente ignorantes, reacionárias ou simplesmente idiotas, eu digo que existe dignidade na resistência surda às, e na denúncia constante, ainda que discreta, das idiotices mais evidentes e mais ultrajantes para a dignidade e a inteligência dos diplomatas “normais”, isto é, profissionais (não os vendidos à nova ordem).
Voltaremos à normalidade, mesmo ao custo de algum desgaste emocional. Minha única recomendação: sejamos fortes e confiantes em nossa história de qualidade no serviço público.
Brasília, 13 de outubro de 2019