Um
diplomata a cavalo: Duarte da Ponte Ribeiro
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
Aqueles que pensam, por experiência própria ou relato de
terceiros, que a situação sanitária de certos postos está abaixo da crítica ou
que as condições de vida, em geral, de determinados países deixam muito a
desejar, bem fariam em ler, ou reler, a biografia de Duarte da Ponte Ribeiro, Um Diplomata do Império, do historiador
José Antonio Soares de Souza (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952;
Coleção Brasiliana 273). Trata-se, provavelmente, do mais versátil colega já
conhecido nos anais da nossa história diplomática, um verdadeiro sobrevivente e
um aventureiro involuntário de muitas das peripécias da nossa primeira
diplomacia.
Sobreviveu à invasão de Portugal, onde nascera em 1795,
pelas tropas de Junot, a serviço de Napoleão, e a muitas viagens de navio, logo
após sua formação como médico, no Real Hospital Militar do Morro do Castelo, no
Rio de Janeiro joanino. Cirurgião de bordo, a partir de 1811, sobreviveu a viagens
tempestuosas, a meias rações de água, ao escorbuto e a uma terrível carneirada (febre de Angola), quase dado
como morto após três dias de agonia. Logo depois da independência, em 1824,
tendo decidido permanecer no Brasil e servir ao novo Estado, foi vítima de um
terrível acidente: “uma espingarda de dois canos rebentara em suas mãos,
causando-lhe a descarga despedaçamento da mão e braço esquerdos, perda de
ossos, tétano conseqüente...”.
Médico renomado, mas impossibilitado agora de operar o
bisturi com a destreza necessária, ele se transforma em diplomata praticamente
por acaso. Tendo sido nomeado, em 1826, cônsul do Brasil na Espanha, deparou-se,
entretanto, com a curiosa situação de não lhe ser dado o necessário exequatur, por não reconhecer o governo
espanhol a independência do Brasil, devido à ocupação brasileira na Cisplatina.
Acompanhado da mulher e cinco filhos (o último nascido em Lisboa), Ponte
Ribeiro retornou portanto ao Brasil, sem ter conseguido cumprir sua primeira
missão diplomática. Não tendo recebido passagens ou qualquer ajuda de custo da
Secretaria dos Negócios Estrangeiros, viu-se na constrangedora situação de ser
obrigado a vender as pratas da casa e o seu primeiro uniforme de diplomata,
para poder custear as passagens de volta, ficando ainda devedor de um amigo de
Lisboa em mais de 50 mil réis.
Em fevereiro de 1829, Duarte da Ponte Ribeiro era
nomeado cônsul geral e encarregado de negócios no Peru. Embarcou numa fragata
brasileira até Montevidéu, daí passou a Buenos Aires, com instruções de seguir
por terra até o Chile: a Secretaria de Estado não tinha idéia, aparentemente,
das dificuldades de um tal trajeto. Se encontrasse ambiente favorável nesse
país, deveria entregar uma carta credencial que o acreditava igualmente como
encarregado de negócios, interino, junto ao governo do Chile. Em abril,
entretanto, com as “províncias unidas” ainda em situação de guerra civil, ele
avisava o ministro brasileiro sobre a impossibilidade de prosseguir por terra,
“enquanto o país não ficar sossegado dos montoneiros e dos índios selvagens”.
Terminou viajando por mar, mas embarcando a partir de Montevidéu, numa fragata
francesa, que fez o percurso pelo Cabo de Horn. Em agosto de 1829, depois de
arrostar os tempestuosos mares do extremo sul, apresentava suas credenciais na
capital do Peru.
Em 1830, empenhado em reduzir despesas, o ministro dos
negócios estrangeiros, Francisco Carneiro de Campos, comunicava-lhe que o
Império havia decidido reduzir o seu salário anual a dois contos e quatrocentos
mil réis, e ainda advertia: “Escuso dizer a Vossa Mercê que qualquer excesso de
despesa não será abonado”. Com a Regência, sua missão no Peru foi retirada em
novembro de 1831, mas a comunicação só chegou a Lima em abril seguinte, após o
que Ponte Ribeiro parte em direção ao Chile. Na capital chilena, Ponte arrostou
sua conhecidíssima inimiga, pois, atacado de cólera-morbus e novamente
desenganado, conseguiu escapar da morte, “desmentindo os prognósticos dos
médicos”. Em agosto de 1832, ele já estava de volta à Corte, “longe dos apuros
que passara com o miserável ordenado de 2:400$000”, mas também sem qualquer
outro salário.
Nessa época, inexistia a carreira diplomática e Ponte
Ribeiro permaneceu em disponibilidade sem nada receber, até que se lhe
deparasse uma nova oportunidade de servir ao país. Essa lhe surge um ano
depois, quando o ministro Silva Lisboa o nomeia encarregado de negócios no
México, onde deveria informar que “o principal objeto da nossa gloriosa
revolução, com tanta fortuna realizada em 7 de abril de 1831, fôra eximir-nos
da influência portuguesa, não havendo sido senão nominal até aquela época a
independência, que com tanto custo havíamos conseguido de uma metrópole que,
por séculos, nos escravizara”.
A caminho da Inglaterra, para depois ir ao México, ele
se demora em Portugal, em missão secreta, seguindo os passos do ex-imperador,
para saber das possibilidades de sua volta ao Brasil. Em fevereiro de 1833
segue de paquete para a Inglaterra e daí partiu para Vera Cruz, aonde chegou em
28 de abril, depois de ter passado por São Domingos, Jamaica e Honduras. Fugiu
do porto mexicano imediatamente, apressado e espavorido com receio do “vômito
preto”, que matava de quinze a vinte pessoas por dia. Um de seus primeiros
ofícios já consignava que “os negócios desta República (então dirigida pelo
presidente Sant'Ana) chegaram ao último estado de complicação e oferecem o mais
horroroso aspecto... Toda a República está hoje em revolução”. Em março de
1835, ele descreve um “violento terremoto” na capital do país: “No estado de
Oaxaca apareceu um novo vulcão, vomitando lava, e se crê que ele produziu estes
terremotos”.
Com todo vômito preto, vulcões e terremotos, Ponte
Ribeiro só se demorou um ano e meio no México, pois em fevereiro de 1835 Manoel
Alves Branco, o novo ministro, assinou sua carta revocatória, que só lhe chegou
em outubro. Demorou um pouco para partir, por se achar doente, “com ulceração e
infarto das glândulas da garganta”. Partiu de Vera Cruz em 8 de novembro e
chegou a Filadélfia duas semanas depois, para novamente enfrentar sua velha
conhecida: “Na mudança repentina de um país extremamente caloroso e outro
coberto de neve, regressou a minha enfermidade de garganta, com uma pulmonia de
que estive à morte”. Conseguiu resistir à morte, como ele disse, por que
“preciso buscar pão para cinco filhos”.
Os meses que passou em Filadélfia, bloqueado pela neve e
preso a uma cama, meditando sobre a morte e observando o começo da expansão
americana em direção ao Texas e outras regiões, fizeram-no desconfiar pelo
resto da vida dos americanos: “Deus livre o Império brasileiro de uma questão
com os Estados Unidos, que sirva(-lhes) de pretexto para organizar
expedições... Desculpa V.Exa. este desabafo contra os Yankees. Cuidado com eles...”. Na volta ao Brasil, ele ainda passou
pela Inglaterra e por Lisboa.
Com 41 anos, a fase mais importante da vida de Duarte da
Ponte Ribeiro estava começando ali, quando influenciaria decisivamente a futura
demarcação dos limites do Brasil. O novo ministro dos negócios estrangeiros,
Visconde de Abaeté, nomeou-o em junho de 1836 encarregado de negócios nas
repúblicas da Bolívia e do Peru, junto com seu filho, de apenas 14 anos,
designado adido de segunda classe nas mesmas repúblicas. A razão era puramente
financeira, como explica Soares de Souza: “Elevara-se-lhe agora o ordenado para
3:200$000 (anuais), dando-se-lhe mais a quantia de 400$000 para os gastos da
legação; porém exigiam-lhe outras despesas bem maiores, com a designação para a
Bolívia e Peru. (...) O único alvitre de que se pôde lançar mão, para se
remediar o mal, foi a nomeação de um dos filhos do encarregado de negócios para
o cargo de adido, o que redundaria em aumento de vencimento para o pai. (...)
Enganava-se redondamente, pois coisa nenhuma seria abonada ao rapaz até o fim
da missão.”
A caminho da nova missão, acompanhado apenas pelo filho
adido, demorou-se Ponte Ribeiro em Montevidéu e em Buenos Aires, onde freqüentou
o Arquivo Militar, estudando os geógrafos antigos e copiando cartas e mapas. “Um
mapa ou documento, que se referisse aos limites do Brasil, exercerá sobre ele
irresistível atração. (...) Será qualquer coisa digna de todos os sacrifícios e
a que o próprio furto se exculpará pela natureza do objeto furtado”. Em Buenos
Aires, ele queria comprar de um dos comissários espanhóis encarregados de
demarcar os limites do tratado de Santo Ildefonso, já velho e doente, quase na
miséria, todos os trabalhos que possuía sobre essas demarcações. Informava ele
ao ministro: “Ele está velho, enfermo e pobre; e por isso resolvido a vender
mais barato: pede sete mil pesos fortes, mas estou bem persuadido que dará por
cinco”. O Império, porém, foi mais uma vez sovina, negando-lhe qualquer dotação.
Duarte da Ponte Ribeiro deixou Buenos Aires, por terra,
em outubro de 1836, empreendendo uma viagem de quase mil léguas, com
recomendações dadas pelo próprio ditador Rosas. Percorreu, em diligência, a
lombo de burro ou a cavalo, as províncias de Santa Fé, Córdoba, Santiago del
Estero, Tucumã, Salta e Jujui, chegando a Chuquisaca, na Bolívia, em 30 de
dezembro. Um amigo, na Secretaria de Estado, “não compreendia que se fizesse
semelhante loucura”, mas podia Ponte “gabar-se de ser o brasileiro que mais
viajara pelo continente americano”.
Em 3 de janeiro de 1837, ele já entrava em funções,
transformando-se em cronista dos lances políticos e guerreiros que se
desdobravam nas repúblicas do Peru, Bolívia e Chile. Os complicados conflitos
do Rio da Prata, “não se comparavam em complexidade à pavorosa luta que
desencadeara o Marechal Santa Cruz, ao impor a federação Peru-Bolívia”. O
Marechal era o político mais poderoso dos Andes e pretendia, num futuro
próximo, “dirigir todas as repúblicas do Pacífico”. Descendente de incas e de
nobres espanhóis, falava as línguas indígenas, era possuidor de inteligência,
tinha habilidade política e perfeito conhecimento dos homens, mas “a
dissimulação, a desmedida vaidade e ambição ilimitada, reduziram-no à craveira
comum dos demais ditadores”.
A Bolívia parecia a Santa Cruz demasiado acanhada, mas
ao Chile não convinha essa união. Quando Ponte Ribeiro apresentou-se na
Bolívia, já o Chile se movimentava contra o Marechal, oferecendo-se o diplomata
brasileiro como mediador, em nome do Império. “Teria sido das mais calmas a
estada de Ponte Ribeiro na Bolívia, se não fôra a feição peculiar ao governo
boliviano de não estacionar por muito tempo no mesmo local. (...)
Escarrapachado no lombo de um burro, teve o diplomata brasileiro de segui-lo
por caminhos escabrosos, que na estação de chuvas se tornavam intransitáveis”.
Saído de Chuquisaca em 19 de março de 1837, com o
vice-presidente, chegou Ponte Ribeiro em 5 de abril a La Paz, onde estava o
Marechal Santa Cruz, que ostentava os seguintes títulos: “Gran Ciudadano,
Restaurador y Presidente de Bolívia, Capitan General de los Ejercitos, General
de Brigada de Colombia, Gran Mariscal Pacificador del Peru, Supremo Protector
de los Estados Sur y Nor-Peruanos”. Agora ia descer Ponte até o Pacífico, já
que em Tacna os plenipotenciários dos dois países discutiam as bases da
federação. Logo em seguida ele foi agraciado pelo Marechal com a Legião de
Honra Boliviana, pois “se ha hecho acreedor a la gratitud nacional, por el vivo
interés que toma en la prosperidad de estos Estados”.
No dia 28 de maio, ele já era recebido em Lima, em
audiência pública pelo próprio Santa Cruz, agora no papel de presidente do
Peru. A dominação não era tolerada pelos peruanos, mas era imposta por seus
três generais: um alemão, outro irlandês e o terceiro inglês. Ponte estava no
centro de todos os enredos, quer da política interna do país, quer da guerra
declarada pelo Chile. “E se não fôra a mesquinhez do ordenado que lhe pagava o
governo imperial, em desproporção ao custo de vida na capital peruana, não lhe
teriam sido desagradáveis os sete anos de permanência em Lima”. Ele assistiu
ainda à invasão de Lima por tropas chilenas, em agosto de 1838, tendo o
Marechal Santa Cruz procurado convencê-lo da necessidade de uma aliança do
Império com o Peru e da cessão de dois navios de guerra para sua inexistente
armada.
Foi no quadro dessas conversações, que também envolviam
questões de limites e um tratado de amizade, comércio e navegação, que se
firmou, primeiro no espírito de Ponte Ribeiro, depois nos documentos e ofícios
que ele despachava para a Secretaria de Estado, o princípio do uti possidetis, em contraposição ao
tratado de 1777, como a base essencial para a resolução das pendências de
fronteiras deixadas em aberto pela herança colonial luso-castelhana. Num
projeto de tratado de comércio com a confederação Peru-Bolívia, que Ponte
Ribeiro discutiu com o Marechal, figurava claramente o princípio do uti possidetis como referencial para a
demarcação dos limites. Esta foi, provavelmente, a primeira vez que o Brasil
utilizou-se do conceito em negociação com um estado vizinho, o que Ponte
Ribeiro teve de sustentar incisivamente junto a seus superiores, face a
instruções contrárias, e manifestamente inadequadas, do Rio de Janeiro.
A vida que levava Ponte Ribeiro em Lima era sóbria:
evitava jantares, “alegando doença de estômago e regimes alimentares, mas na
verdade para evitar retribuições que os seus ordenados não comportavam”. Como
informa ainda Soares de Souza, “a única despesa extraordinária de Ponte Ribeiro
no Peru consistia na compra de documentos raros”. O Império lhe dava muitos títulos
- cavaleiro, comendador, depois barão - mas lhe recusava um salário condigno.
“Afinal, excogitava ele, para que tanta luta, tanto estudo, tantas privações,
tanto trabalho? para chegar onde chegou: a miséria! Para isso não fôra preciso
enfrentar mares, tempestades, navios à vela, caminhos escabrosos e lombos de
burro. Bastava-lhe ter ficado na Corte, onde os próprios negros tinham vida
melhor”.
Tirante os navios à vela e o lombo dos burros, alguma
semelhança entre esse quadro desolador com situações, salários ou episódios atuais?
Talvez mera coincidência...
Brasília,
28 janeiro 2005
Publicado,
em versão reduzida, no Boletim da
Associação
dos Diplomatas Brasileiros
(Brasília:
ADB, ano XII, nº 48, Jan-Mar 2005, p. 16-19)