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quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Macro e microeconomia da diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho antigo, mas do qual recebo, agora, o novo link, restaurado, pela editoria da revista.


308. “Macro e microeconomia da diplomacia”, Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, nº 8, ISSN: 1519.6186; janeiro de 2002; links: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35903; pdf para o artigo: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35903/20992). Relação de trabalhos nº 839.


Macro e microeconomia da diplomacia

Paulo Roberto de Almeida
Autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil

A política externa possui a sua própria economia, que poderia ser definida como a forma pela qual os diplomatas organizam seus recursos escassos (talentos, discursos, missões de representação, reuniões bilaterais, participação em foros multilaterais, enfim coqueteis e recepções), que poderiam ter usos alternativos, na produção de determinados “bens” diplomáticos (tratados, acordos, convênios de cooperação), em função de custos e benefícios percebidos no processo diplomático, segundo uma alocação “ótima” desses recursos. Esses bens ou “mercadorias” serão depois distribuídos para o consumo da sociedade que emprega esses diplomatas, sob a forma de melhores oportunidades de exportação, maior segurança externa, novas possibilidades de usufruir e de conceder cooperação externa, captura de talentos externos, fontes adicionais de financiamento, bref, qualquer resultado suscetível de maximizar o bem estar nacional.
Em função dessa definição ampla, pode-se ter uma macroeconomia da diplomacia – que trataria, mais bem, do produto bruto diplomático, do pleno emprego e da renda diplomática, sua distribuição entre os próprios, bem como das questões de concorrência entre diplomatas, ou do monopólio que alguns exercem sobre determinadas atividades – ou uma microeconomia, voltada, por exemplo, para a produtividade marginal do diplomata (ou seus rendimentos decrescentes), a economia de escala numa Secretaria de Estado, a especialização, a divisão do trabalho e a interdependência nas lides diplomáticas, bem como os fatores de depreciação de um diplomata, que só deveria normalmente intervir depois de uma análise atuarial sobre sua função de lucros e perdas (sem qualquer abuso contábil, entenda-se), embora em alguns casos se recomende uma forte injeção fiscal.
No plano internacional igualmente, o que aliás é o próprio da diplomacia, deve-se considerar as vantagens comparativas dos diversos serviços diplomáticos, os fluxos de capital diplomático de um país a outro, os mecanismos de câmbio diplomático (que podem implicar a desvalorização de alguns e a valorização de outros), as assimetrias existentes entre os diversos serviços, bem como a atuação dos governos, que influenciam o desempenho do produto diplomático ou seu posicionamento no cenário internacional (através de subsídios maciços, por exemplo). Nos tempos que correm, de globalização das relações exteriores e de neoliberalismo diplomático, já não são mais operacionais as antigas doutrinas socialistas da diplomacia, muito embora muitos ainda acreditem no caráter de classe da política externa, tanto que continuam a achar que os diplomatas são todos uns “punhos de renda”, que vivem de salto alto pulando de uma recepção para outra. Poucos se dão conta, entretanto, que com a depreciação das línguas e o acesso disseminado a recursos externos via Internet – afinal de contas, hoje em dia qualquer um fala inglês e até cachorro de madame já tem correio eletrônico –, o diplomata perdeu seu antigo monopólio (e fonte de lucros?), tendo seus salários tão depreciados que formou-se, nos estratos inferiores ou iniciais da carreira, um verdadeiro lumpesinato diplomático, verdadeiro exército industrial de reserva diplomático que moureja em condições pouco condizentes com sua antiga aura de fama e brilho.
Os exercícios que se seguem ostentam a preocupação de determinar como os fatores de produção da atividade diplomática têm seus preços fixados no mercado, o que conformaria, idealmente, uma teoria da distribuição diplomática. Na prática, porém, as relações de poder são tão ou mais importantes, na vida diplomática, que as relações de mercado, que são fortemente condicionadas pela intervenção dos governos, os patronos por excelência dos diplomatas, que não podem assim exercer livremente seus talentos (tanto porque o mercado para eles é imperfeito, com vários monopólios “naturais”). Tentaremos, sem embargo, examinar os modelos alternativos de distribuição diplomática, sabendo que alguns elementos – vaidade, compadrio, pistolões – terão de ser deixados de lado, uma vez que dificilmente são mensuráveis a ponto de permitir sua integração numa equação matemática ou numa curva de regressão. O autor espera contribuir mediante este esforço para a conformação de uma verdadeira teoria econômica da diplomacia, vertente pouco explorada da ciência econômica que ainda aguarda o seu Marx, o seu Keynes, o seu Hayek ou o seu Friedman (muito embora ela tenha tido entre nós essa figura híbrida que foi Roberto Campos). Essa teoria da economia diplomática deveria compreender, ademais das funções conhecidas em economia – basicamente derivadas das leis da oferta e da procura diplomática – uma teoria do crescimento diplomático, que enfocaria também os problemas de desenvolvimento dessa profissão hoje banalizada (com tratamento de itens específicos como a pobreza a qualidade de vida do diplomata, a discriminação de gêneros nos padrões ocupacionais e, eventualmente, no plano externo, a questão do tratamento preferencial e mais favorável para os diplomatas de menor desenvolvimento relativo).
Aqueles que discordarem dos cálculos econométricos do autor, podem contatá-lo no seguinte endereço: pralmeida@mac.com. Para maiores esclarecimentos sobre os fundamentos da teoria econômica aqui desenvolvida, recomendo consultar os manuais disponíveis no mercado, sendo que o “velho” livro introdutório de Paul A. Samuelson permanece supreendentemente atual (pelo menos para os padrões dos diplomatas), mas ele poderia ser utilmente complementado pela teoria do comércio diplomático estratégico de Paul Krugman.

     Algumas questões de economia diplomática (tratamento sucessivo em capítulos).
1) O Itamaraty dispõe de um “monopólio natural” no terreno da política externa; não tem concorrentes no País, ou muito poucos;
2) Ele tem inegáveis “vantagens comparativas estáticas” para tratar dos assuntos que são os seus, mas outros serviços estão criando vantagens comparativas dinâmicas;
3) Ele apresenta “economias de escala”, que podem ser ainda mais otimizadas com a modernização de seus métodos de trabalho: ele faz bom faz uso de seus recursos escassos?
4) Quais “externalidades” influenciam o trabalho do Itamaraty?
5) Pode-se medir a “produtividade marginal” de um diplomata?
6) Quais seria a relação de “custo-benefício” do diplomata: a estabilidade é um asset ou uma liability?
7) Como poderia ser operado o “controle do fluxo produtivo” e o “ciclo dos produtos” no Itamaraty?; pode-se obter maiores ganhos com uma nova estrutura organizacional e nova apresentação dos produtos?; uma estratégia de marketing é aconselhável?
8) Como colocar em funcionamento a “defesa da concorrência” no Itamaraty?; ele pode operar segundo os princípios da “market contestability”?; havendo maior osmose/abertura em relação à sociedade civil sua relação capital-produto seria melhor?
9) Como apresentar a “contabilidade” do Itamaraty?: nos tempos dos velhos Relatórios do Império isso era mais fácil, agora é difícil obter-se até mesmo um “relatório aos credores”;
10) Crescimento zero da diplomacia?; como enfrentar a obsolecência das técnicas produtivas e a depreciação do capital diplomático?

Respostas tentativas a estas questões (por certo não exaustivas) nos próximos capítulos deste folhetim.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 14/12/2001; Relação de Originais n. 839; Relação de Publicados n. 308.
Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, nº 8, ISSN: 1519-6186; janeiro de 2002; links: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35903; pdf para o artigo: http://periodicos.uem.ßbr/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35903/20992).

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Alguem inteligente pode-se pretender comunista hoje em dia? - Paulo Roberto de Almeida

Essa pergunta aparentemente ingenua, ou marota, foi a gota d'água entre os membros de uma revista tipicamente acadêmica para que eles decidissem retirar-me de seu corpo editorial. Com efeito, convidado em 2001 a integrar o "staff" de colaboradores regulares da revista digital "Espaço Acadêmico", não deixei, durante 10 anos, de oferecer meus artigos todos os 12 meses de cada ano transcorride desde então, sempre criticando a "alienação" – esse conceito típico do jovem Marx – de meus colegas acadêmicos, no seu esquerdismo canhestro, contraditório e, em última instância, prejudicial à boa qualidade dos cursos de humanidades em geral.
Acho que, depois de várias críticas indiretas, exagerei na dose, ao acusar diretamente meus colegas de serem pouco inteligentes. Pouco depois fui "desconvidado" do corpo editorial, embora sempre recorram a mim para dar parecer sobre determinados artigos submetidos que tenham a ver com economia ou relações internacionais.
Eis a ficha do trabalho "maldito", transcrito mais abaixo:

2292. “Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?; Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro”, Brasília, 2 agosto 2011, 13 p. Crítica às crenças fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado. Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 123, agosto 2011, p. 125-136; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14334/7601; link em pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/14334/7601). Relação de Publicados n. 1042.

 
Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?
Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro

Paulo Roberto de Almeida

1. Introdução metodológica: uma tradição passadista que não passa
A pergunta do título não pretende contrapor-se, em geral, a toda uma categoria de pessoas, nem visa interrogar alguém, em particular. Sua intenção é a de questionar certas ideias bem delimitadas no universo das ideologias, concentrando-se, em especial numa concepção determinada: a ideologia do comunismo, que em grande medida confunde-se com a teoria marxista (Por teoria marxista entenda-se o conjunto de escritos e argumentos de Marx, Engels, Lênin e alguns outros, que são comumente utilizados para fundamentar a validade empírica, a evolução lógica e a sustentação material de sociedades comunistas.) A motivação deste artigo decorre do fato de que existem pessoas, em pleno século 21, que nunca negaram sua adesão a essa concepção vinda do século 19 e que tampouco fizeram qualquer trabalho de revisão séria sobre as consequências práticas dessas ideias, tal como aplicadas ao longo do século 20.
Vista pelo lado afirmativo, a questão do título poderia indicar que qualquer pessoa que pretenda, atualmente, afirmar-se comunista (ou socialista, na tradição marxista ou leninista) corre o risco de ser considerada como singularmente carente de inteligência mais sofisticada; ou poderia, pelo menos, ser vista como desprovida de senso crítico mais agudo. Em muitos casos, na verdade, a origem da autodesignação pode revelar apenas ignorância ingênua ou pura desinformação juvenil. Nos casos mais renitentes, pode-se, talvez, classificar os mais entusiastas da causa como fundamentalistas ilógicos, quando não se trata, no caso dos mais velhos, de pura e simples desonestidade intelectual.
Sem pretender ofender alguém em particular – muito embora eu tenha deparado com vários representantes desse credo no decorrer de minhas peregrinações acadêmicas e alguns cruzamentos político-partidários – o objetivo principal deste artigo é apenas o de examinar um conceito, o do comunismo, em seus determinantes lógicos, em sua eventual fundamentação empírica e, sobretudo, em suas consequências práticas, o que o aproxima de qualquer ensaio acadêmico que pretenda tratar de questões reais das sociedades existentes em nossa época. Não se pretende aqui tratar do sexo dos anjos, e sim de uma questão que costuma estar presente em nossas academias – com maior força nas áreas de humanidades – e também em algumas seitas políticas, e que continua a mobilizar a atenção de certo número de pessoas, ainda que, nos dias que correm, em proporção crescentemente diminuta (se me permitem o paradoxo verbal).
Por que o faço? A resposta é complexa, mas vamos ficar com uma bem simples. As faculdades brasileiras de humanidades estão povoadas, hoje em dia, de seres saídos de antigas camadas geológicas da teoria social, algo como o pré-cambriano dos estudos sobre a sociedade e suas transformações. Em lugar de focar os problemas correntes, professores que aderem ao clero de maneira totalmente acrítica, remetem os alunos a textos góticos do século 19 e os obrigam a interpretar a economia atual com categorias defasadas, que nada têm a ver com as características essenciais do capitalismo globalizado. Como estou me colocando mais do lado dos alunos do que dos professores, creio ser meu dever alertar aos primeiros que eles estão sendo enganados – torturados seria uma expressão mais adequada – por mestres preguiçosos que não fazem pesquisa e que preferem repisar e repassar velhos textos que confortam certos preconceitos pessoais, mas que nada têm a ver com a realidade vivida por alunos, ou pelas pessoas, em geral.

Pois bem, estou fazendo uma pergunta, que é quase uma acusação, e o faço de forma consciente, esperando com isso suscitar algum debate intelectual, o que pode revelar-se uma vã esperança. A sugestão do título é a de que a pessoa que se afirma comunista, nos dias que correm, renunciou a pensar de modo livre, está dominada por premissas emboloradas, por preconceitos ideológicos ultrapassados, já que uma caracterização desse tipo agride a lógica, a experiência histórica conhecida e a simples realidade dos fatos. Este é o debate, aqui colocado em termos diretos.
Tenho plena consciência, aliás uma quase certeza, de que não haverá debate, pois os “indiciados”, podem sempre alegar que os estou ofendendo, que eles não aceitam o questionamento do título, não cabendo, portanto, debate com uma pessoa tão arrogante e tão desrespeitosa das crenças alheias. Voilà, acho que encontrei o conceito correto: crença! Sim, estamos falando basicamente de uma crença, já que não existem sociedades comunistas atualmente e desafio qualquer um a provar que existem chances reais de que qualquer uma venha a existir no futuro previsível. Quem desejar pode aceitar o desafio.
Como alguns dos espaços e veículos em que escrevo é frequentado por pessoas que se intitulam comunistas, que se pretendem comunistas e que defendem causas que elas consideram ser comunistas, o desafio lhes é lançado diretamente, mas como disse acima, duvido que elas venham a enfrentá-lo. Não obstante, formulo novamente o tema deste artigo e o deixo como problema a ser debatido. Minha hipótese de trabalho, a ser exposta nos parágrafos que seguem, é que nenhuma pessoa inteligente pode, hoje em dia, razoavelmente falando, pretender-se comunista ou defender causas comunistas.
Dito isto, vamos ao que interessa, não sem antes um comentário inicial. O autor destas linhas também já se proclamou comunista, em tempos idos, e conhece razoavelmente bem a literatura marxista (e tudo o que circula em volta). Como membro da academia, já leu, percorreu, repetiu os conceitos-chaves do credo e já pretendeu transformar o Brasil num país socialista. De certa forma, é impossível ser sociólogo, em qualquer sociedade contemporânea, sem ser também um pouco marxista, uma vez que o marxismo integra a construção da moderna teoria social. Quanto a ser comunista é outra questão, que remete a um conjunto de crenças, que devem ser testadas contra a realidade.
Ao ter aderido ao comunismo em fase ainda juvenil de sua vida, este autor percorreu depois a realidade dos comunismos (ou socialismos) realmente existentes, praticamente todos, ou pelo menos os mais importantes. Dessas visitas, ele retirou preciosas reflexões que contribuíram para a revisão de algumas crenças juvenis; ele também aprofundou seu conhecimento dos capitalismos realmente existentes – e de muitos outros sistemas pré-capitalistas (como na maior parte da América Latina, por exemplo), mediante viagens extensas de trabalho e de lazer, o que contribuiu mais ainda para uma saudável revisão de suas velhas concepções. Sobre isso, caberia acrescentar leituras variadas, e não apenas dentro do universo conceitual do marxismo estabelecido, o que é sempre recomendável para quem pretende aperfeiçoar seus conhecimentos sobre o mundo realmente existente, além e acima de quaisquer crenças com base em sistemas fechados de ideias. Esta é a base, portanto, da discussão que pode agora começar.

2. Um exemplo, entre outros, da crença persistente: Antônio Cândido
Para não tornar esta discussão muito abstrata, conviria ilustrá-la com declarações atuais sobre o tema em questão partindo de um true believer, na expressão coloquial retirada do inglês, ou seja, um verdadeiro crente. O que tem a dizer sobre o assunto um intelectual respeitado na academia brasileira, Antônio Cândido, cujos argumentos são recebidos com toda a distinção que merecem as verdadeiras “vacas sagradas” da intelligentsia brasileira?
Entrevistado recentemente por um jornal desse universo intelectual, Antônio Cândido assim respondeu à pergunta de se era socialista (e, neste caso, e para todos os efeitos, o adjetivo socialista é completamente similar à caracterização de comunista, uma vez que baseado nos mesmos princípios ideológicos que sustentam esse sistema de interpretação da realidade, que é a filosofia marxista):
Brasil de Fato: O senhor é socialista?
AC: Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso.[1]

O que surpreende nesse tipo de manifestação, em primeiro lugar, é a total falta de consistência do pensamento desse autor, cultuado na academia brasileira como um dos maiores sociólogos da nacionalidade, quanto às necessárias distinções entre, de um lado, processos reais, desenvolvidos ao longo dos séculos como resultado de movimentos “tectônicos” no plano das forças produtivas e das relações de produção (para ficar na terminologia habitual), e, de outro, construções mentais, propostas ideológicas, projetos de engenharia social que só podem ser plataformas políticas, ou programas partidários a serem debatidos pelos movimentos sociais e agrupamentos políticos, mas que jamais poderiam ser colocados no mesmo plano dos processos reais. O socialismo jamais poderia ter sido, e nunca foi, o irmão-gêmeo do capitalismo pela simples razão de que se trata de um sistema inventado pelo homem, não uma construção social, impessoal, progressiva e absolutamente desprovida de qualquer senso de direção pré-determinado.
O que o aclamado sociólogo ignora completamente, em segundo lugar, é que todos os modos de produção social existentes, passados ou presentes, inclusive os puramente baseados num “arranjo político” (como o socialismo, portanto) se baseiam em certa coerção ao trabalho, qualquer que sejam as formas peculiares que assumem as relações de produção e as formas específicas de apropriação dos resultados do processo de produção. Não existe nenhum sistema de produção um pouco mais complexo do que a simples organização extrativista rudimentar que não se baseie em divisão do trabalho (sexual ou social), em algum sistema de trocas relativamente organizado (por forças que se destacaram do mundo do trabalho, portanto) e em mecanismos de interação e de solução de litígios que já impliquem uma autoridade qualquer baseada na dominação política e na exploração econômica (inclusive, e sobretudo, no socialismo). Ou seja, a proposta quanto à não-exploração, ou quanto à igualdade fundamental do ser humano, parte de premissas totalmente descoladas da realidade dos processos produtivos e absolutamente inaplicáveis em condições reais do mundo do trabalho e da satisfação das necessidades humanas.
A falha metodológica revelada pelo mestre é particularmente grave, uma vez que ele confunde o movimento real das sociedades com o movimento das ideias que perpassam as sociedades, que podem, ou não, oferecer algum substrato real, ou serem apenas o reflexo de elaborações mentais que, por mais “geniais” que possam ser – e as contribuições de Marx constituem, de fato, poderosos instrumentos analíticos para a compreensão das sociedades burguesas e das economias capitalistas – não representam senão o fruto de uma construção intelectual não necessariamente compatível com os dados da realidade. Igualmente decepcionante é a sua compreensão do que seja o socialismo, pois revela um conhecimento deficiente, para não dizer ingênuo, das bases intelectuais da doutrina marxista sobre o socialismo. Perguntado pelo mesmo órgão de imprensa, sobre se “é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?”, o mestre respondeu o que segue:
AC: (...) Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas  reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.[2]

Em outros termos, o professor aposentado pensa o socialismo como a realização da igualdade, ou mais exatamente, como a diminuição das desigualdades existentes. Ora, essa compreensão está em completo desacordo com a teoria marxista e com as premissas sobre as quais foram construídos os sistemas marxistas, ou dos socialismos realmente existentes, no século XX. Para os teóricos do marxismo, o socialismo – e, na sua sequência, o comunismo – seria a abolição das relações de produção capitalistas, não a simples aproximação dos rendimentos médios do trabalhador assalariado das categorias mais bem pagas da sociedade capitalista. A premissa básica seria a abolição do conceito mesmo de propriedade privada, com a socialização completa das forças produtivas, colocadas sob controle da categoria universal alegadamente detentora da solução final para as contradições fundamentais de toda sociedade de classes, e que por isso mesmo redundaria na abolição de todas as classes sociais, especificamente na dominação política de uma classe dominante sobre as demais. Quem não partilha dessas premissas não pode, legitimamente, pretender-se comunista, ou socialista marxista. A menos, claro, que pretenda na prática afirmar-se como social democrata, que seria a versão reformista, light, ou rósea, do socialismo marxista (e, como tal, denunciada em vários escritos dos que se pretendem comunistas verdadeiros).
O mais surpreendente, ainda, é que o velho mestre se mostra singularmente desinformado sobre as realidades do socialismo real ao redor do mundo, como também especialmente confuso sobre o tipo de sociedade existente sob o modo de produção capitalista. Perguntado sobre o que “o socialismo conseguiu no mundo de avanços?”, ele argumentou:
AC: O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. [3]

Pronunciando-se, logo em seguida, sobre como ele via a sociedade capitalista, o mestre consegue, em poucas frases desvendar sua incompreensão total do que seja uma sociedade de mercado – que pode ser, ou não, capitalista – e de como funciona, de fato, a sociedade de consumo; ele revela, ademais, uma ignorância fundamental sobre a própria natureza do processo produtivo – sob qualquer modo de produção, registre-se –, já opondo-se, de fato, a qualquer avanço tecnológico, sob qualquer pretexto. A ingenuidade, ou ignorância, é abissal, e surpreende que banalidades desse tipo sejam recebidas sem qualquer comentário crítico por marxistas e não marxistas da academia, que teriam, pelo menos, a obrigação da coerência epistemológica e da adequação dos argumentos aos fatos materiais da vida como ela é. Registre-se alguns extratos finais, portanto:
AC: A coisa mais pérfida do capitalismo –por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar [sic] de dez em dez minutos, na cabeça de todos (...) imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.[4]

Os dois conjuntos de argumentos são propriamente inaceitáveis por quem quer que examine o mundo real, seja a situação efetiva na Cuba “socialista”, seja as formas pelas quais está organizada a sociedade de consumo – que pressupõe uma sociedade produtiva, em primeiro lugar – em qualquer regime imaginável de organização social da produção, inclusive o da produção “artesanal”. Tomar suas palavras como possuindo um grau mínimo de aderência à realidade – o que elas não possuem, obviamente –, seria como se em Cuba não existisse sociedade de consumo, como se os cidadãos cubanos não consumissem produtos – de quaisquer origens – e como se a ausência de uma maior variedade de produtos, ou até a existência concreta de um regime de penúrias, como aquele registrado na Cuba socialista, fosse a realização suprema da “justiça social”. O consumo existe em qualquer sociedade do mundo, de qualquer época histórica e de qualquer sistema produtivo, sendo aliás inerente à natureza do ser socialmente produtivo que é o homem – e isto é puro marxismo, estando mais explícito em textos de Engels -- o fato de se estar sempre avançando na escala produtiva, pela inovação de produtos ou de processos que permitam oferecer os bens essenciais e, depois, vários bens “supérfluos”, aos melhores preços possíveis para o consumo da maior parte da sociedade.
No decorrer de um longo processo histórico, o sistema produtivo que mais próximo se acercou desse ideal de crescimento sustentado com base em transformações produtivas incrementais – algumas delas, aliás, revolucionariamente inovadoras – e na distribuição social dos benefícios desse crescimento foi justamente o capitalismo, não o socialismo. Daí a resiliência do capitalismo aos desafios revolucionários que ele enfrentou ao longo do tempo, advindo não apenas de contradições sociais que são inerentes a toda e qualquer forma de organização social da produção, mas igualmente de alternativas ideológicas que foram sendo servidas ao longo da história para tentar conceber um sistema que fosse ou mais eficiente, ou mais justo e igualitário, ou ambos.
Não é preciso retomar aqui o resultado efetivo dessa competição entre sistemas e ideias, pois sabemos que a forma mais disseminada nos supermercados da história foi mesmo, anda que temporariamente, a do capitalismo, que nada mais é do que uma das formas da economia de mercado, aparentemente tão desprezada pelo velho mestre Antônio Cândido. Chega a ser, assim, patético, ler suas considerações sobre a sociedade de consumo ou sobre o capitalismo, pois elas nada mais revelam do que uma incompreensão fundamental quanto ao modo de funcionamento das sociedades – de qualquer sociedade – e do sistema de produção de mercado, inclusive suas formas capitalistas ou proto-capitalistas. O silêncio de marxistas, de socialistas, ou de comunistas – assumidos como tais – sobre tais tipos de argumentos pode representar concordância básica quanto às suas premissas, discordância discreta e não explicitada quanto aos fundamentos históricos de afirmações tão absurdamente equivocadas, ou simplesmente incapacidade de raciocinar com base na lógica elementar e nos princípios da coerência epistemológica. Em qualquer dos casos, parece suficientemente grave, pois materiais desse tipo do registrado neste texto elementar de crítica acadêmica circulam de modo amplo pelas salas e corredores das universidades públicas brasileiras e são comentados nos sites e blogs mais vinculados a esse universo mental.

3. Comunismo: apenas um sistema de crenças, sem consistência real
Retomemos, aqui, a questão central do que pretende ser um debate atinente aos cursos de ciências sociais de nossas academias: qual é o estatuto social, ou ideológico, dos argumentos em defesa do socialismo – e por extensão do comunismo – que continuam a impregnar não só a didática e a docência no universo das humanidades, como também a estruturação de movimentos políticos que pretendem oferecer um tipo qualquer de alternativa ao capitalismo realmente existente? A postura deste autor já foi colocada na seção introdutória, qual seja: o conjunto de argumentos que sustenta a defesa da doutrina – e das propostas de organização social e econômica – do comunismo (em seus fundamentos marxistas) remete a um universo mental que poderia ser chamado de crença ou assimilado às crenças. Estas constituem uma assemblagem de “explicações mágicas” sobre a realidade que não respondem a quaisquer testes provados no mundo real, ou seja, que não sustentam o teste da realidade, mas que ainda assim continuam, como todas as crenças, a suscitar adesões inquestionadas a suas premissas equivocadas por alguma necessidade psicológica de seus aderentes de não enfrentar o mundo real.
Resumindo: a pessoa que, hoje em dia, se proclama comunista – algumas até orgulhosamente – está demonstrando uma crença num conjunto de preceitos que remete a um universo especial, o do salvacionismo, um movimento vinculado ao utopismo e a todas as seitas que pretendem ter a chave mágica do universo, para a salvação da humanidade, com base num conjunto de princípios de “engenharia social” e de valores não testados nos laboratórios da realidade. O comunismo (e não apenas hoje em dia) é parente direto das concepções utópicas sobre a organização social e econômica das sociedades, não obstante a pretensão de seus proponentes e seguidores de insistir em seu “caráter científico”. A lógica elementar e confronto com os dados da história permitem esclarecer e descartar suas afirmações muito rapidamente, ainda mais facilmente no caso de frases sem sentido como as transcritas aqui de um respeitado intelectual brasileiro. Uma discussão final, atinente ao problema da apreensão do mundo real e à questão do registro histórico, tocará nestes pontos, ainda que de modo sumário.
O próprio da ciência é trabalhar com um conjunto de hipóteses que deverão, em seguida, ser testadas para que se comprove sua fiabilidade em face dos dados do real. Pode até existir uma teoria prévia à formulação das hipóteses, mas o mais comum é que a teoria apareça após testes repetidos das concepções iniciais, para que daí se extraiam regras gerais e, portanto, “leis” quase invariáveis de desenvolvimento. Nem sempre é assim, e algumas teorias sobrevivem mesmo na ausência de testes comprobatórios, mas pode-se deduzir a fiabilidade de uma teoria por meio de deduções inteligentes. Por exemplo, é muito difícil observar a “evolução”, mas é possível aderir à teoria da seleção natural darwiniana, com base nos registros geológicos e nos dados da história natural (para isso basta visitar qualquer museu de história natural). Aliás, seria impossível trabalhar de modo adequado nas ciências geológicas e nas biológicas sem a aceitação dos princípios básicos da seleção natural. O trabalho de laboratório é todo ele fundamentado nas ideias darwinianas, que sustentaram gloriosamente os testes do tempo e da realidade.
Pode-se, por acaso, dizer o mesmo do conjunto de afirmações que sustentam a crença na “teoria materialista da história”, na luta de classes como fundamento da evolução das sociedades humanas? É possível acreditar na “evolução” determinista das sociedades existentes em direção ao comunismo, como apregoado pela “teoria marxista”? Por fim: existe alguma base real para confirmar as predições de Marx e seguidores sobre o “curso inevitável” das sociedades capitalistas em direção ao comunismo?
Os “testes” do tempo e da realidade, efetuados até aqui nos “laboratórios” dos capitalismos e dos socialismos realmente existentes, desmentem – não apenas uma ou outra, mas – todas as afirmações marxistas e leninistas sobre a marcha da história e a evolução das sociedades. O registro “geológico” do longo – segundo as concepções arrighianas – ou “breve” – de acordo com Hobsbawm – século XX não permite sustentar, apoiar, comprovar, de alguma forma corroborar qualquer uma das premissas e previsões marxistas, que sustentam a fé – não existe outro conceito – no ideal socialista ou do modelo comunista de sociedade e de organização social da produção.
Pode-se, assim, desafiar os marxistas, em geral, a retomar qualquer uma das análises de Marx e de Lênin sobre o desenvolvimento do capitalismo, ou qualquer uma das suas “hipóteses de trabalho” sobre a emergência das sociedades comunistas, e, com base nelas, comprovar que estas análises e hipóteses são, não apenas logicamente dedutíveis de suas premissas (como ocorre, por exemplo, com a “teoria” da seleção natural), mas materialmente possíveis a partir de desenvolvimentos empíricos aferíveis (da mesma forma como ocorre em laboratórios de biologia com as manipulações de espécies, no caso em exame). Ou seja, pode-se esperar que o socialismo seja o resultado natural, quase automático, do desenvolvimento e das contradições internas do modo de produção capitalista e que sua eficácia produtiva seja comparável ou superior ao do modo imediatamente anterior? Com base em qual tipo de raciocínio lógico, pode-se afirmar que o “socialismo”, se efetivado, conseguiria superar contradições inerentes às economias de mercado, em sua aparente “anarquia” produtiva?
Independentemente, porém, do registro histórico que comprova o tremendo fracasso material do socialismo marxista, e do comunismo, no século XX, na tentativa de se criar um modo de produção “superior”, ou “harmônico”, existe um outro conjunto de testes que se vinculam ao modo de organização interna de qualquer regime socialista, ou seja, a seus fundamentos materiais, o que também envolve o aspecto puramente lógico sobre as formas de estruturação e de funcionamento de qualquer sistema produtivo baseado nas premissas “econômicas” marxistas. Essa questão tem a ver com o problema fundamental do cálculo econômico, e com a função dos preços – como sinalizadores da escassez relativa – num sistema de organização da produção para o mercado, ou seja, o de qualquer modo de produção concebível em uma sociedade complexa, seja ela escravocrata, feudal, capitalista ou “socialista”. Esse problema, insolúvel num sistema socialista puramente marxista – ou seja, comunista –, já tinha sido tratado desde os primórdios da revolução bolchevique por um jovem economista austríaco, Ludwig Von Mises, que, com base numa análise puramente racional dos fundamentos “lógicos” da economia socialista, concluiu que esta não conseguiria funcionar, justamente, por falharem princípios básicos da organização racional da produção e distribuição de insumos, de bens intermediários e de bens finais.[5]
E, no entanto, diriam os true believers da causa socialista e comunista, a despeito de todas essas “previsões” catastrofistas e condenatórias do socialismo enquanto doutrina e enquanto forma alternativa de organização social da produção, o fato é que o socialismo “funcionou” durante setenta anos, e nada impediria, em princípio, que ele voltasse a funcionar em novas bases, corrigidos alguns “pequenos erros” que impediram seu funcionamento mais eficiente da “primeira vez”. Como as apostas e as esperanças dos verdadeiros crentes na causa socialista não se apoiam em evidências de fato, mas justamente num sistema de crenças que demanda adesão inquestionada – sem que eles sejam chamados comprovar suas teorias, um pouco como os criacionistas – não se prevê o desaparecimento fácil ou imediato desse tipo de falácia fundamentalista.
Não seria, na verdade, a primeira, nem a última vez, que crenças equivocadas conseguem manter-se durante tanto tempo no circuito das teorias possíveis: a “teoria geocêntrica”, por exemplo, comandou durante séculos as reflexões dos homens e as explicações geográficas, até ser superada por uma melhor explicação, com base na observação direta da realidade e na experimentação empírica. O socialismo já teve sua fase de experimentação empírica – que foram as sete décadas de experimentos de engenharia social desde o advento do modelo bolchevique de organização social da produção e suas diversas variantes ao longo do tempo – mas seu rotundo fracasso não parece ainda ter conseguido alterar o conjunto de crenças mantidas pelos true believers.
Uma das razões possíveis pode ser o fato que a maior parte dos aderentes ao credo não conheceu, não visitou, não conviveu, não experimentou, de fato, o “modo socialista de produção”, cujas bases de funcionamento são desconhecidas aos true believers, que continuam a repetir algumas fórmulas “sagradas” da doutrina original. Nenhum deles, por exemplo, parece próximo de acreditar que o socialismo marxista, tal como materializado na Eurásia, constituiu o equivalente funcional de formas modernas do escravagismo antigo ou do despotismo oriental. Aparentemente, evidências não bastam, quando se decide não aceitar evidências concretas que vão contra as crenças.[6]
Em todo caso, o autor destas linhas acredita que um trabalho sério de pesquisa histórica, de constatação de evidências materiais e alguns poucos raciocínios lógicos poderia ajudar a desmontar o grau de irracionalidade conceitual e de não adequação material que caracterizam as crenças socialistas, tal como consubstanciadas em sua vertente marxista clássica. Ele não tem, entretanto, nenhuma ilusão de que “velhos socialistas” ou de que acadêmicos enviesados venham a recompor sua estrutura mental e suas posturas sociais e políticas a partir dessas constatações de fato e de raciocínio. Ele espera, pelo menos, que um número maior de alunos, talvez entediados pela repetição aborrecida das mesmas velhas fórmulas ultrapassadas, possa encontrar um novo campo teórico de explicações científicas que escape do terreno das crenças para o mais modesto das explicações possíveis em torno da modernidade capitalista.

Brasília, 2 de agosto de 2011

Resumo: Crítica às crenças fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado.

Palavras-chave: Marxismo; Socialismo; Comunismo; Fundamentalismo; Capitalismo.



[1] Ver “O socialismo é uma doutrina triunfante”; Antônio Candido, entrevistado por Joana Tavares, Brasil de Fato, edição 435, 12/07/2011 (disponível: http://www.brasildefato.com.br/node/6819; acesso em 31/07/2011).
[2] “O socialismo é uma doutrina triunfante”, entrevista com Antônio Candido, op. cit.
[3] Idem, loc. cit.
[4] Idem, loc. cit.
[5] Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), disponível em inglês no site dedicado às obras desse economista: www.vonmises.org. Para maiores elaborações em torno do mesmo tema, ver meus ensaios: “Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia marxista”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 96, maio 2009; disponível: http://www.espacoacademico.com.br/096/96pra.pdf); “A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo prático: um balanço objetivo e algumas considerações subjetivas”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 106, março 2010; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9502/5321).
[6] Ver meu trabalho “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento”, Espaço Acadêmico (ano 4, n. 47, abril 2005; link: http://www.espacoacademico.com.br/047/47pra.htm).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Marx e o fetiche do capital: alguem ainda ousa ler o catatau? - Paulo Roberto de Almeida

Em 2018, muita gente vai comemorar os 200 anos do nascimento, em Trier, de um dos maiores intelectuais do século XIX (mas virtualmente desconhecido em seu próprio século) e um dos filósofos sociais que mais influenciaram sindicalistas, líderes políticos, militantes de movimentos revolucionários e acadêmicos em geral, no século XX, podendo ser considerado um dos mais importantes inspiradores de revoluções, lutas políticas e medidas econômicas tomadas por seus seguidores ao longo desse século, desde Lênin, em especial, passando por Trotsky, Stalin, Mao e outros tantos, que todos eles produziram catástrofes e mortandades inimagináveis, até mesmo para seus piores inimigos, como podem ter sido os líderes de movimentos fascistas na mesma época (como podem ter sido Mussolini, Hitler, e alguns outros de menor importância).
Karl Marx foi o mais poderoso filósofo social do século XX, embora tenha sido um péssimo economista, pois conseguiu formular as bases (muito vagas, por sinal) de um sistema que fracassou sob todos os critérios, e que só produziu fracassos produtivos, miséria, desigualdades sociais (tudo ao contrário do que os marxistas prometiam), terminando por provocar a derrocada econômica de todos os países que pretenderam seguir suas "recomendações econômicas" (sem mencionar a opressão, a repressão e o regime de escravidão moderna criada por esses regimes socialistas).
Tendo sido marxista em minha juventude -- e posso assegurar que li quase toda a obra do barbudo de Trier -- mas retificado minhas concepções econômicas, políticas e sociais ao aprofundar leituras e, sobretudo, ao visitar TODOS os socialismos existentes, dos reais aos surreais e aos mais esquizofrênicos, comecei a analisar a obra marxiana e formular minhas sínteses interpretativas, de maneira a poupar esforço e equívocos a muitos jovens que são literalmente seduzidos por professores ignorantes ou desonestos, que ou não leram a obra de Marx, ou leram vulgatas e não sabem sequer analisá-la criticamente.
O trabalho abaixo, escrito vários anos atrás, permanece válido, uma vez que se trata de uma análise da principal obra do grande revolucionário equivocado.
Paulo Roberto de Almeida

Revista Espaço Acadêmico n. 83, Abril de 2008
ink: http://www.espacoacademico.com.br/083/83pra.htm

O fetiche do Capital

por Paulo Roberto de Almeida

Alerto, desde o inicio, que o Capital a que me refiro no título (em itálico, por favor) é mesmo a obra preferida de marxistas e marxianos, o magnum opus de Karl Marx, tão cultuado quanto pouco lido desde sua edição original (em 1863). A pergunta se coloca: por que voltar agora a essa obra vetusta, quase gótica, stricto et lato sensi, objeto de controvérsias desde sua primeira versão, que coroa e anuncia as teorias da mais-valia, sobre as quais Marx trabalhou durante anos seguidos, sem jamais dar forma final à obra que ele estimava – como seus seguidores e admiradores – como o desvendamento definitivo do funcionamento do modo de produção capitalista?
Existiriam muitas razões, nenhuma delas voltada para a explicação própria dessa obra, o que  já foi feito e que continua a ser feito pelos já referidos apreciadores do seu autor. Pretendo, de meu lado, dirigir-me a uns poucos leitores, provavelmente estudantes universitários em sua maior parte, alguns professores idem, e talvez um ou outro dos curiosos que circulam em sites e revistas digitais. Minha razão de voltar a escrever sobre esse tema recorrente tem a ver com o que poderia ser chamado de “economia política” da formação intelectual, ou, mais prosaicamente, com a simples economia do estudo acadêmico. Gostaria de livrar uns e outros de um fetiche que se tornou regular e inseparável de certa cultura universitária, que normalmente se pretende séria e respeitável.
Tenho reparado, pela minha freqüentação de listas de discussões e pela leitura de sites acadêmicos que professores universitários brasileiros continuam a insistir com seus alunos na leitura do Capital, leitura que é feita sempre parcial e truncadamente, pois que não concebo um estudante “normal” de nossas instituições de ensino superior mergulhando na leitura sistemática dos três livros do Capital (e mais quatro sobre a Teoria da Mais-Valia), sem correr seriamente o risco de ser reprovado nas demais matérias por falta de estudo, o que seria a suprema ironia.
Alerto, também desde o início, que não tenho nada contra a leitura do Capital, sempre bem-vinda e interessante quando se dispõe de tempo e do lazer necessários a um mergulho na história das idéias econômicas do século XIX. A questão é que raramente esse estudo é feito nas disciplinas de história do pensamento econômico ou de história das idéias, como deveria ocorrer. Ele é mais freqüentemente conduzido nas aulas de sociologia ou de teoria social, quando não nas de história contemporânea. Mais usualmente ainda, esse estudo é empreendido como atividade paralela aos programas oficiais e à margem das disciplinas nas quais se encontram engajados seus promotores e coordenadores. Tudo, ao que parece, com o objetivo de unir filosofia e praxis (apud Feuerbach).
Seria excelente se esse exercício fosse feito com o espírito crítico que se espera de todo e qualquer professor universitário, comparando teorias de autores diversos, confrontando explicações sobre o mesmo objeto e avançando o conhecimento até o estado recente da literatura em torno da problemática em questão, qual seja, a história do surgimento e do desenvolvimento do modo de produção capitalista e seus efeitos sociais de mais amplo escopo. É menos louvável quando esse estudo tende a se aproximar de equivalentes universitários de cultos esotéricos, nos quais o respeito pela palavra do profeta acompanha uma admiração beata pelas suas revelações geniais e a virtual impossibilidade, daí decorrente, de contestar o conteúdo e a forma do “livro sagrado”.
Tenho observado, em meus contatos, que alguns professores, que certamente recomendam a leitura do Capital aos seus alunos, continuam a manter uma deferência quase religiosa em relação à obra considerada máxima de Marx, atribuindo-lhe poderes extraordinários de não apenas explicar o modo de funcionamento do capitalismo do século XIX, mas praticamente o dos nossos dias, numa admiração acrítica que beira a ingenuidade. Raros, no entanto, são aqueles que ultrapassam as primeiras cem páginas do Capital, dedicada à análise da mercadoria, considerada o símbolo do dito modo de produção. A razão me parece ser simplesmente esta: o Capital é uma obra pesada, gótica, rebuscada, dotada de enorme dispersão analítica e inúmeras regressões históricas, em meio a seus objetivos pretendidamente sistemáticos.
Essa constatação já tinha sido feita mais de um século atrás por um estudioso dos sistemas socialistas: “A falta de unidade [do Capital] é evidente: o autor vê claramente o objetivo que ele quer atingir, mas não consegue ver tão claramente o caminho que o conduz a esse objetivo; ele tenta vários e quando vê que um desses o conduz a resultados fora da realidade, ele toma outros, muitas vezes oposto ao primeiro, sem ao menos se preocupar com as contradições que dai resultam. Como os fiéis de Marx não admitem que o autor possa carecer de lógica ou de conhecimentos científicos, essas contradições não os chocam absolutamente; ao contrário, eles admiram os mistérios profundos e sublimes que o sistema certamente contém” (Vilfredo Pareto, Les Systèmes Socialistes; 2a. ed.; Paris: Marcel Giard, 1926, tomo II, p. 342). Pareto confirma que Marx inovou a antiga economia política bem mais quanto à forma, do que em relação ao conteúdo: “É claro que não pretendemos acusar Marx de ter voluntariamente alterado a realidade; mas, como outros autores que defendem passionalmente uma tese, ele foi levado, provavelmente sem ter consciência disso, a escolher seus argumentos não em virtude, exclusivamente, da dose de verdade intrínseca que eles poderiam conter, mas em virtude das vantagens que deles poderia extrair para a sua tese” (idem, p. 351).
Esta pode ser uma razão simplesmente formal, ou estilística, mas que deve contribuir para o alto grau de “desistência” na continuidade de sua leitura. (Parênteses: gostaria de conhecer, por favor, o grupo ou um simples aluno que conduziu esse exercício até o fim, isto é, a leitura completa, do primeiro volume ao menos, do Capital.) As razões mais importantes da descontinuidade e da pouca relevância desse tipo de empreendimento se situam, porém, na estrutura interna da obra e sua organização quase “literária”, quando pretende ser uma obra de economia política, ou melhor, de crítica à economia política de seu tempo. Ao empreender a confecção dessa obra, que consumiu, conforme ele mesmo, quarenta anos de uma vida de estudos, Marx pretendia elevar a economia política do seu tempo à categoria de análise “científica”, armado metodologicamente de seu instrumental dialético que ele pretendia pós-hegeliano, ou seja, não idealista. Todos aqueles que já penetraram nos arcanos do Capital – e do capital – sabem que muito de sua argumentação se desenvolve em torno das “contradições” da produção capitalista, da oposição das “relações de produção”, do caráter inconciliável entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação do produto. O capital, em Marx, é o deus ex machina da sociedade burguesa moderna.
Mais importante ainda, Marx pretende explicar o “segredo” do modo de produção capitalista pelo processo de extração de mais-valia, que para ele resume o essencial das contradições que presidem à realização histórica do capital. Todos aqueles que já leram o Capital sabem que, para Marx, o trabalhador – sinônimo de operário de fábrica, o que já é um reducionismo inaceitável levando-se em contra a complexidade e a diversidade das formas concretas de organização social da produção – produz o valor de sua força de trabalho em uma parte, apenas, de sua jornada de trabalho, sendo o trabalho restante apropriado pelo capitalista, em proporções variáveis segundo a composição do capital (fixo, ou constante, e variável, sendo este o determinante da taxa de extração da mais-valia). Trabalho necessário e trabalho excedente (ou sobre-trabalho) representam, para Marx, a explicação-chave e a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital (ou do trabalhador pelo capitalista). Os já convencidos exultam com essa “explicação”.
Este é, em resumo, o ciclo do capital, todo o resto da economia política marxista sendo uma derivação – histórica ou funcional – dessa relação fundamental. Pela adesão incondicional à teoria do valor trabalho, Marx filia-se à corrente clássica da economia política, mais especificamente a David Ricardo, de quem é o herdeiro direto, ainda que renegando o caráter “não científico” de suas idéias. Marx apoiava sua análise numa rica exposição de fatos – muitos deles tirados de relatórios oficiais do governo britânico – mas os generalizava, para deles extrair conclusões esquemáticas, pré-determinadas, segundo as quais o capitalismo, pelas contradições internas, inevitáveis, seria inapelavelmente suplantado e substituído pelo socialismo, um modo de produção superior, capaz de reconciliar o caráter social da produção e extração de mais-valia com sua distribuição “eqüitativa”. Como ele diria mais tarde, na crítica ao programa de Gotha da social-democracia alemã, “de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades”, uma frase tão tautológica do ponto de vista das premissas socialistas sobre as quais se apóia, quanto praticamente inaplicável no plano da economia real. (Novo parênteses: antes de alguém pretender criticar a minha crítica, desafio qualquer um a definir o que são necessidades humanas e como quantificar sua exata necessidade na esfera individual.)
Não é preciso, neste momento, desmontar os equívocos do profetismo marxiano sobre a crise e auto-destruição final do capitalismo, uma visão messiânica que transforma seu socialismo pretendidamente científico em algo semelhante a uma teleologia social, isto é, uma história com um curso pré-determinado (conduzindo inevitavelmente à derrocada do capitalismo e sua substituição pelo socialismo). Quando da publicação da Origem das Espécies, de Darwin, no final dos anos 1860, Marx chegou a acreditar, durante um momento, que a teoria darwiniana da seleção natural poderia oferecer um suporte biológico para sua visão determinista sobre o curso da história como o desenvolvimento da luta de classes, mas, em vista da natureza aberta da teoria de Darwin – com os impulsos aleatórios do ambiente externo, como mudança climática ou migração de espécies – ele se decepcionou com o “parentesco” e veio a apoiar outras teorias (equivocadas) que viam no itinerário da raça humana a marca inelutável do progresso linear em direção ao futuro.
No que se refere especificamente ao método de Marx, basta indicar as contradições do seu próprio raciocínio “econômico”, incapaz de conciliar os dados da realidade com sua fórmula sobre a origem do valor e a extração de mais-valia. A teoria do valor-trabalho é um verdadeiro axioma no pensamento econômico marxista, que no entanto não consegue fundamentar o valor do trabalho na velha lei da oferta e da procura, como sempre feito na teoria econômica. Todo o desenvolvimento ulterior da economia dispensou facilmente as esquemáticas construções marxistas, em prol da realidade da “lei do valor burguesa”, ou seja, o equilíbrio entre oferta e demanda. Pareto ironizou: “Assim, abandonando a lei da oferta e da demanda, nós [isto é, Marx] tínhamos começado por afirmar que o valor era apenas trabalho cristalizado; mas, depois de muitos zigzags nós voltamos a essa lei, e nossa [de Marx] teoria se resume a dizer que o valor é medido pelo trabalho, à condição que as condições colocadas pela lei da oferta e da procura sejam satisfeitas” (idem, p. 358).
Tampouco seria preciso tecer considerações muito longas sobre suas “leis da concentração da produção”, que Marx confundia com a expansão do patrimônio da burguesia, que para ele estaria na origem da derrocada final de todo o sistema. Não é que a história se desenvolveu de modo diverso ao previsto por Marx: é que em sua própria época, o sistema não funcionava segundo o seu modo de análise, indiferente que era à diversidade dos “modos de produção” mercantis, e a toda uma série de atividade intermediárias que Marx considerava simplesmente improdutivas. As falhas propriamente econômicas da análise marxiana do capitalismo são ainda mais significativas do que seus equívocos de previsão quanto ao desenvolvimento futuro do sistema. Enfim, basta com dizer que a validade de sua “economia política” para a economia atual – e mesmo aquela de sua época – é propriamente marginal, senão próxima de zero, tendo apenas validade relativa para uma descrição (em tons apopléticos) da miséria humana sob as condições do capitalismo manchesteriano de sua época (que ele conheceu, aliás, bem mais pela obra de seu amigo Engels do que diretamente).
Em vista do que precede, tendo a considerar esses convites feitos a alunos das humanidades para integrar grupos de leitura do Capital como uma incitação à auto-flagelação, ou como uma forma atenuada de tortura intelectual. Não que eles não possam tirar benefícios intelectuais desse tipo de exercício, uma vez que a leitura de Marx é sempre estimulante (embora, para alguns, ela é mais bem “embriagadora”). O lado menos interessante da história se deve ao fato de que a leitura não está propriamente sendo feita para o enriquecimento do conhecimento histórico sobre as idéias e teorias em curso no momento da transição entre a economia política clássica e a neoclássica, mas em completo isolamento dessas correntes de pensamento, numa espécie de “ilha marxista” que tenta   preservar a pureza dos argumentos originais, uma conservação em formol de um conjunto de análises ultrapassadas – quando elas já não eram defasadas em sua própria época – quando não completamente equivocadas quanto à natureza do sistema capitalista e seu modo de funcionamento.
O Capital, desse ponto de vista, assemelha-se a outro ícone do socialismo redivivo, um cadáver de Lênin em seu mausoléu kitsch, aguardando um julgamento menos religioso por parte de seus cronistas e historiadores. O fetiche da leitura do Capital aparece, assim, como um produto típico da cultura universitária, que, tomada nesse tipo de dimensão mística de seus desdobramentos modernos, se converte rapidamente em mecanismo de alienação coletiva, aliás um conceito típico do marxismo universitário derivado da Escola de Frankfurt, a partir da leitura da Ideologia Alemã e dos Manuscritos Econômico-Filosóficos.
Os professores que pretendem dar “aulas” – ou até cursos inteiros – sobre esses textos sagrados do marxismo fossilizado não estão de fato participando de um grande esforço intelectual inserido num estudo de história das idéias, mas, sim, isolando os demiurgos numa torre de marfim reconstruída para suas necessidades políticas imediatas e, a partir de suas preleções vitriólicas sobre  o caráter iníquo do capitalismo, pretendendo fundar uma ação política contemporânea na qual o que menos se requisita é pensamento crítico, e sim a fé inquestionável nos escritos fundadores. Desse ponto de vista, eles não são propriamente professores, e sim sacerdotes de uma religião laica, que pode até não ostentar diferenças notáveis, no plano conceitual, com suas expressões correntes no mundo litúrgico. Como anuncia o panfleto de um desses cursos de leitura das obras sagradas, “o pensamento dos dois grandes filósofos, Marx e Engels, se mantém vivo e atual”. Ou seja, não se trata de inseri-los nas correntes de sua época e confrontar o que, de fato se mantém vivo, na obra de dois demiurgos da catástrofe capitalista, mas sim de repetir, como num catecismo, os trechos mais eloqüentes de uma verborréia barroca, que encanta até hoje os inimigos do capital (e amigos do Capital, embora a leitura desta obra não esteja contemplada no curso).
O patético nessa história toda não é exatamente a leitura do Capital ou de qualquer outra obra do repertório sagrado do marxismo clássico; o triste, ou lamentável, é fazê-lo encerrado numa camisa-de-força intelectual que comanda ao leitor não ir além da própria obra e do autor estudado, eventualmente recorrendo a outras obras, de outros estudiosos, que poderiam estar em contradição com as idéias de um pensador que afirmava, justamente, ser a favor do movimento constante de idéias, como recomendado em seu método “ dialético”. Nesse sentido, a leitura do Capital deixou de ser um convite ao diálogo com todos os autores citados, comentados ou criticados por Marx, e limita-se a ser uma admiração beata de uma obra tomada isoladamente. Não há melhor definição para a palavra fetiche.