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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Marx e o fetiche do capital: alguem ainda ousa ler o catatau? - Paulo Roberto de Almeida

Em 2018, muita gente vai comemorar os 200 anos do nascimento, em Trier, de um dos maiores intelectuais do século XIX (mas virtualmente desconhecido em seu próprio século) e um dos filósofos sociais que mais influenciaram sindicalistas, líderes políticos, militantes de movimentos revolucionários e acadêmicos em geral, no século XX, podendo ser considerado um dos mais importantes inspiradores de revoluções, lutas políticas e medidas econômicas tomadas por seus seguidores ao longo desse século, desde Lênin, em especial, passando por Trotsky, Stalin, Mao e outros tantos, que todos eles produziram catástrofes e mortandades inimagináveis, até mesmo para seus piores inimigos, como podem ter sido os líderes de movimentos fascistas na mesma época (como podem ter sido Mussolini, Hitler, e alguns outros de menor importância).
Karl Marx foi o mais poderoso filósofo social do século XX, embora tenha sido um péssimo economista, pois conseguiu formular as bases (muito vagas, por sinal) de um sistema que fracassou sob todos os critérios, e que só produziu fracassos produtivos, miséria, desigualdades sociais (tudo ao contrário do que os marxistas prometiam), terminando por provocar a derrocada econômica de todos os países que pretenderam seguir suas "recomendações econômicas" (sem mencionar a opressão, a repressão e o regime de escravidão moderna criada por esses regimes socialistas).
Tendo sido marxista em minha juventude -- e posso assegurar que li quase toda a obra do barbudo de Trier -- mas retificado minhas concepções econômicas, políticas e sociais ao aprofundar leituras e, sobretudo, ao visitar TODOS os socialismos existentes, dos reais aos surreais e aos mais esquizofrênicos, comecei a analisar a obra marxiana e formular minhas sínteses interpretativas, de maneira a poupar esforço e equívocos a muitos jovens que são literalmente seduzidos por professores ignorantes ou desonestos, que ou não leram a obra de Marx, ou leram vulgatas e não sabem sequer analisá-la criticamente.
O trabalho abaixo, escrito vários anos atrás, permanece válido, uma vez que se trata de uma análise da principal obra do grande revolucionário equivocado.
Paulo Roberto de Almeida

Revista Espaço Acadêmico n. 83, Abril de 2008
ink: http://www.espacoacademico.com.br/083/83pra.htm

O fetiche do Capital

por Paulo Roberto de Almeida

Alerto, desde o inicio, que o Capital a que me refiro no título (em itálico, por favor) é mesmo a obra preferida de marxistas e marxianos, o magnum opus de Karl Marx, tão cultuado quanto pouco lido desde sua edição original (em 1863). A pergunta se coloca: por que voltar agora a essa obra vetusta, quase gótica, stricto et lato sensi, objeto de controvérsias desde sua primeira versão, que coroa e anuncia as teorias da mais-valia, sobre as quais Marx trabalhou durante anos seguidos, sem jamais dar forma final à obra que ele estimava – como seus seguidores e admiradores – como o desvendamento definitivo do funcionamento do modo de produção capitalista?
Existiriam muitas razões, nenhuma delas voltada para a explicação própria dessa obra, o que  já foi feito e que continua a ser feito pelos já referidos apreciadores do seu autor. Pretendo, de meu lado, dirigir-me a uns poucos leitores, provavelmente estudantes universitários em sua maior parte, alguns professores idem, e talvez um ou outro dos curiosos que circulam em sites e revistas digitais. Minha razão de voltar a escrever sobre esse tema recorrente tem a ver com o que poderia ser chamado de “economia política” da formação intelectual, ou, mais prosaicamente, com a simples economia do estudo acadêmico. Gostaria de livrar uns e outros de um fetiche que se tornou regular e inseparável de certa cultura universitária, que normalmente se pretende séria e respeitável.
Tenho reparado, pela minha freqüentação de listas de discussões e pela leitura de sites acadêmicos que professores universitários brasileiros continuam a insistir com seus alunos na leitura do Capital, leitura que é feita sempre parcial e truncadamente, pois que não concebo um estudante “normal” de nossas instituições de ensino superior mergulhando na leitura sistemática dos três livros do Capital (e mais quatro sobre a Teoria da Mais-Valia), sem correr seriamente o risco de ser reprovado nas demais matérias por falta de estudo, o que seria a suprema ironia.
Alerto, também desde o início, que não tenho nada contra a leitura do Capital, sempre bem-vinda e interessante quando se dispõe de tempo e do lazer necessários a um mergulho na história das idéias econômicas do século XIX. A questão é que raramente esse estudo é feito nas disciplinas de história do pensamento econômico ou de história das idéias, como deveria ocorrer. Ele é mais freqüentemente conduzido nas aulas de sociologia ou de teoria social, quando não nas de história contemporânea. Mais usualmente ainda, esse estudo é empreendido como atividade paralela aos programas oficiais e à margem das disciplinas nas quais se encontram engajados seus promotores e coordenadores. Tudo, ao que parece, com o objetivo de unir filosofia e praxis (apud Feuerbach).
Seria excelente se esse exercício fosse feito com o espírito crítico que se espera de todo e qualquer professor universitário, comparando teorias de autores diversos, confrontando explicações sobre o mesmo objeto e avançando o conhecimento até o estado recente da literatura em torno da problemática em questão, qual seja, a história do surgimento e do desenvolvimento do modo de produção capitalista e seus efeitos sociais de mais amplo escopo. É menos louvável quando esse estudo tende a se aproximar de equivalentes universitários de cultos esotéricos, nos quais o respeito pela palavra do profeta acompanha uma admiração beata pelas suas revelações geniais e a virtual impossibilidade, daí decorrente, de contestar o conteúdo e a forma do “livro sagrado”.
Tenho observado, em meus contatos, que alguns professores, que certamente recomendam a leitura do Capital aos seus alunos, continuam a manter uma deferência quase religiosa em relação à obra considerada máxima de Marx, atribuindo-lhe poderes extraordinários de não apenas explicar o modo de funcionamento do capitalismo do século XIX, mas praticamente o dos nossos dias, numa admiração acrítica que beira a ingenuidade. Raros, no entanto, são aqueles que ultrapassam as primeiras cem páginas do Capital, dedicada à análise da mercadoria, considerada o símbolo do dito modo de produção. A razão me parece ser simplesmente esta: o Capital é uma obra pesada, gótica, rebuscada, dotada de enorme dispersão analítica e inúmeras regressões históricas, em meio a seus objetivos pretendidamente sistemáticos.
Essa constatação já tinha sido feita mais de um século atrás por um estudioso dos sistemas socialistas: “A falta de unidade [do Capital] é evidente: o autor vê claramente o objetivo que ele quer atingir, mas não consegue ver tão claramente o caminho que o conduz a esse objetivo; ele tenta vários e quando vê que um desses o conduz a resultados fora da realidade, ele toma outros, muitas vezes oposto ao primeiro, sem ao menos se preocupar com as contradições que dai resultam. Como os fiéis de Marx não admitem que o autor possa carecer de lógica ou de conhecimentos científicos, essas contradições não os chocam absolutamente; ao contrário, eles admiram os mistérios profundos e sublimes que o sistema certamente contém” (Vilfredo Pareto, Les Systèmes Socialistes; 2a. ed.; Paris: Marcel Giard, 1926, tomo II, p. 342). Pareto confirma que Marx inovou a antiga economia política bem mais quanto à forma, do que em relação ao conteúdo: “É claro que não pretendemos acusar Marx de ter voluntariamente alterado a realidade; mas, como outros autores que defendem passionalmente uma tese, ele foi levado, provavelmente sem ter consciência disso, a escolher seus argumentos não em virtude, exclusivamente, da dose de verdade intrínseca que eles poderiam conter, mas em virtude das vantagens que deles poderia extrair para a sua tese” (idem, p. 351).
Esta pode ser uma razão simplesmente formal, ou estilística, mas que deve contribuir para o alto grau de “desistência” na continuidade de sua leitura. (Parênteses: gostaria de conhecer, por favor, o grupo ou um simples aluno que conduziu esse exercício até o fim, isto é, a leitura completa, do primeiro volume ao menos, do Capital.) As razões mais importantes da descontinuidade e da pouca relevância desse tipo de empreendimento se situam, porém, na estrutura interna da obra e sua organização quase “literária”, quando pretende ser uma obra de economia política, ou melhor, de crítica à economia política de seu tempo. Ao empreender a confecção dessa obra, que consumiu, conforme ele mesmo, quarenta anos de uma vida de estudos, Marx pretendia elevar a economia política do seu tempo à categoria de análise “científica”, armado metodologicamente de seu instrumental dialético que ele pretendia pós-hegeliano, ou seja, não idealista. Todos aqueles que já penetraram nos arcanos do Capital – e do capital – sabem que muito de sua argumentação se desenvolve em torno das “contradições” da produção capitalista, da oposição das “relações de produção”, do caráter inconciliável entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação do produto. O capital, em Marx, é o deus ex machina da sociedade burguesa moderna.
Mais importante ainda, Marx pretende explicar o “segredo” do modo de produção capitalista pelo processo de extração de mais-valia, que para ele resume o essencial das contradições que presidem à realização histórica do capital. Todos aqueles que já leram o Capital sabem que, para Marx, o trabalhador – sinônimo de operário de fábrica, o que já é um reducionismo inaceitável levando-se em contra a complexidade e a diversidade das formas concretas de organização social da produção – produz o valor de sua força de trabalho em uma parte, apenas, de sua jornada de trabalho, sendo o trabalho restante apropriado pelo capitalista, em proporções variáveis segundo a composição do capital (fixo, ou constante, e variável, sendo este o determinante da taxa de extração da mais-valia). Trabalho necessário e trabalho excedente (ou sobre-trabalho) representam, para Marx, a explicação-chave e a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital (ou do trabalhador pelo capitalista). Os já convencidos exultam com essa “explicação”.
Este é, em resumo, o ciclo do capital, todo o resto da economia política marxista sendo uma derivação – histórica ou funcional – dessa relação fundamental. Pela adesão incondicional à teoria do valor trabalho, Marx filia-se à corrente clássica da economia política, mais especificamente a David Ricardo, de quem é o herdeiro direto, ainda que renegando o caráter “não científico” de suas idéias. Marx apoiava sua análise numa rica exposição de fatos – muitos deles tirados de relatórios oficiais do governo britânico – mas os generalizava, para deles extrair conclusões esquemáticas, pré-determinadas, segundo as quais o capitalismo, pelas contradições internas, inevitáveis, seria inapelavelmente suplantado e substituído pelo socialismo, um modo de produção superior, capaz de reconciliar o caráter social da produção e extração de mais-valia com sua distribuição “eqüitativa”. Como ele diria mais tarde, na crítica ao programa de Gotha da social-democracia alemã, “de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades”, uma frase tão tautológica do ponto de vista das premissas socialistas sobre as quais se apóia, quanto praticamente inaplicável no plano da economia real. (Novo parênteses: antes de alguém pretender criticar a minha crítica, desafio qualquer um a definir o que são necessidades humanas e como quantificar sua exata necessidade na esfera individual.)
Não é preciso, neste momento, desmontar os equívocos do profetismo marxiano sobre a crise e auto-destruição final do capitalismo, uma visão messiânica que transforma seu socialismo pretendidamente científico em algo semelhante a uma teleologia social, isto é, uma história com um curso pré-determinado (conduzindo inevitavelmente à derrocada do capitalismo e sua substituição pelo socialismo). Quando da publicação da Origem das Espécies, de Darwin, no final dos anos 1860, Marx chegou a acreditar, durante um momento, que a teoria darwiniana da seleção natural poderia oferecer um suporte biológico para sua visão determinista sobre o curso da história como o desenvolvimento da luta de classes, mas, em vista da natureza aberta da teoria de Darwin – com os impulsos aleatórios do ambiente externo, como mudança climática ou migração de espécies – ele se decepcionou com o “parentesco” e veio a apoiar outras teorias (equivocadas) que viam no itinerário da raça humana a marca inelutável do progresso linear em direção ao futuro.
No que se refere especificamente ao método de Marx, basta indicar as contradições do seu próprio raciocínio “econômico”, incapaz de conciliar os dados da realidade com sua fórmula sobre a origem do valor e a extração de mais-valia. A teoria do valor-trabalho é um verdadeiro axioma no pensamento econômico marxista, que no entanto não consegue fundamentar o valor do trabalho na velha lei da oferta e da procura, como sempre feito na teoria econômica. Todo o desenvolvimento ulterior da economia dispensou facilmente as esquemáticas construções marxistas, em prol da realidade da “lei do valor burguesa”, ou seja, o equilíbrio entre oferta e demanda. Pareto ironizou: “Assim, abandonando a lei da oferta e da demanda, nós [isto é, Marx] tínhamos começado por afirmar que o valor era apenas trabalho cristalizado; mas, depois de muitos zigzags nós voltamos a essa lei, e nossa [de Marx] teoria se resume a dizer que o valor é medido pelo trabalho, à condição que as condições colocadas pela lei da oferta e da procura sejam satisfeitas” (idem, p. 358).
Tampouco seria preciso tecer considerações muito longas sobre suas “leis da concentração da produção”, que Marx confundia com a expansão do patrimônio da burguesia, que para ele estaria na origem da derrocada final de todo o sistema. Não é que a história se desenvolveu de modo diverso ao previsto por Marx: é que em sua própria época, o sistema não funcionava segundo o seu modo de análise, indiferente que era à diversidade dos “modos de produção” mercantis, e a toda uma série de atividade intermediárias que Marx considerava simplesmente improdutivas. As falhas propriamente econômicas da análise marxiana do capitalismo são ainda mais significativas do que seus equívocos de previsão quanto ao desenvolvimento futuro do sistema. Enfim, basta com dizer que a validade de sua “economia política” para a economia atual – e mesmo aquela de sua época – é propriamente marginal, senão próxima de zero, tendo apenas validade relativa para uma descrição (em tons apopléticos) da miséria humana sob as condições do capitalismo manchesteriano de sua época (que ele conheceu, aliás, bem mais pela obra de seu amigo Engels do que diretamente).
Em vista do que precede, tendo a considerar esses convites feitos a alunos das humanidades para integrar grupos de leitura do Capital como uma incitação à auto-flagelação, ou como uma forma atenuada de tortura intelectual. Não que eles não possam tirar benefícios intelectuais desse tipo de exercício, uma vez que a leitura de Marx é sempre estimulante (embora, para alguns, ela é mais bem “embriagadora”). O lado menos interessante da história se deve ao fato de que a leitura não está propriamente sendo feita para o enriquecimento do conhecimento histórico sobre as idéias e teorias em curso no momento da transição entre a economia política clássica e a neoclássica, mas em completo isolamento dessas correntes de pensamento, numa espécie de “ilha marxista” que tenta   preservar a pureza dos argumentos originais, uma conservação em formol de um conjunto de análises ultrapassadas – quando elas já não eram defasadas em sua própria época – quando não completamente equivocadas quanto à natureza do sistema capitalista e seu modo de funcionamento.
O Capital, desse ponto de vista, assemelha-se a outro ícone do socialismo redivivo, um cadáver de Lênin em seu mausoléu kitsch, aguardando um julgamento menos religioso por parte de seus cronistas e historiadores. O fetiche da leitura do Capital aparece, assim, como um produto típico da cultura universitária, que, tomada nesse tipo de dimensão mística de seus desdobramentos modernos, se converte rapidamente em mecanismo de alienação coletiva, aliás um conceito típico do marxismo universitário derivado da Escola de Frankfurt, a partir da leitura da Ideologia Alemã e dos Manuscritos Econômico-Filosóficos.
Os professores que pretendem dar “aulas” – ou até cursos inteiros – sobre esses textos sagrados do marxismo fossilizado não estão de fato participando de um grande esforço intelectual inserido num estudo de história das idéias, mas, sim, isolando os demiurgos numa torre de marfim reconstruída para suas necessidades políticas imediatas e, a partir de suas preleções vitriólicas sobre  o caráter iníquo do capitalismo, pretendendo fundar uma ação política contemporânea na qual o que menos se requisita é pensamento crítico, e sim a fé inquestionável nos escritos fundadores. Desse ponto de vista, eles não são propriamente professores, e sim sacerdotes de uma religião laica, que pode até não ostentar diferenças notáveis, no plano conceitual, com suas expressões correntes no mundo litúrgico. Como anuncia o panfleto de um desses cursos de leitura das obras sagradas, “o pensamento dos dois grandes filósofos, Marx e Engels, se mantém vivo e atual”. Ou seja, não se trata de inseri-los nas correntes de sua época e confrontar o que, de fato se mantém vivo, na obra de dois demiurgos da catástrofe capitalista, mas sim de repetir, como num catecismo, os trechos mais eloqüentes de uma verborréia barroca, que encanta até hoje os inimigos do capital (e amigos do Capital, embora a leitura desta obra não esteja contemplada no curso).
O patético nessa história toda não é exatamente a leitura do Capital ou de qualquer outra obra do repertório sagrado do marxismo clássico; o triste, ou lamentável, é fazê-lo encerrado numa camisa-de-força intelectual que comanda ao leitor não ir além da própria obra e do autor estudado, eventualmente recorrendo a outras obras, de outros estudiosos, que poderiam estar em contradição com as idéias de um pensador que afirmava, justamente, ser a favor do movimento constante de idéias, como recomendado em seu método “ dialético”. Nesse sentido, a leitura do Capital deixou de ser um convite ao diálogo com todos os autores citados, comentados ou criticados por Marx, e limita-se a ser uma admiração beata de uma obra tomada isoladamente. Não há melhor definição para a palavra fetiche.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Marxistas que nao leram "O Capital", nao vos desespereis: um crash course no escurinho do cinema...

Não sei se é romântico para levar a primeira namorada, ó marxistas de primeiras barbas, mas talvez possa poupar a vocês noites e noites mal dormidas (e dias também), tentando entender essa catedral gótica que é O Capital (em quatro volumes, cabe lembrar).
Não sei se o namoro resistiria à "baixa tendencial da taxa de lucro", ao "aumento da composição orgânica do capital", à "realização da mais-valia" (enfim, essa acho que é mais fácil de combinar com o primeiro beijo), e a tantas teses abstrusas contidas nesses grossos cartapácios que nem os marxistas entenderam até hoje (e se entenderam, aplicaram mal, haja vista a experiência histórica desastrosa com TODOS os socialismos realmente existentes).
Não importa: se você não quer enfrentar o capital, digo O Capital, sem possuir o próprio (mas precisa ter dinheiro para o ônibus pelo menos), esta é a oportunidade para tentar apreender (sem garantia de sucesso) algumas das teses abstrusas do velho barbudo.
Enfim, tentem, talvez sem a namorada, pois não deve ter o charme indiscreto de Hollywood (que logo colocaria Marx num sok, pank, bung, contra hordas de capitalistas perversos).
Mas, sinceramente: para a crise de 2008, eu recomendaria um outro filme: Too Big To Fail.
Paulo Roberto de Almeida

A volta de Marx
Antonio Gonçalves Filho
O Estado de S.Paulo, 18 de julho de 2011

O cineasta alemão Alexander Kluge realiza o sonho de Eisenstein de filmar O Capital

Um maratona de nove horas e meia de duração começa amanhã, às 10 horas da manhã, e só termina às 22h30 (com intervalos para almoço e lanche) no Sesc Pinheiros: abrindo a mostra de filmes do cineasta alemão Alexander Kluge, será exibida a megaprodução Notícias de Antiguidades Ideológicas: Marx, Eisenstein, O Capital. Filmado em plena crise econômica de 2008, é o projeto mais radical de renovação do cinema, levado a cabo por um diretor associado à criação do Novo Cinema Alemão, nos anos 1960, e também um dos mais respeitados literatos de seu país, a ponto de ter em seu filme depoimentos de colegas como o poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger, o filósofo Peter Sloterdijk e o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, modelo assumido de Kluge, conhecido principalmente por seu filme Artistas na Cúpula do Circo: Perplexos (1967), que integra a retrospectiva do diretor, a partir do dia 26, no Goethe-Institut.

Notícias de Antiguidades Ideológicas sai diretamente da tela para o DVD. A produtora e distribuidora Versátil Home Video lança simultaneamente à mostra uma caixa com três discos (R$ 69,90) contendo a versão integral do filme, adaptação dos conceitos contidos no livro O Capital, de Marx - além dos esboços que deram origem ao livro, ou seja, os Grundrisse, versão inicial da crítica de economia política do pensador alemão traduzida (pela primeira vez para o português) pela Boitempo Editorial.

Fazer um filme sobre O Capital é o mesmo que filmar a lista telefônica, com o agravante de que a última ainda permite certo tipo de representação que o ensaio econômico-filosófico de Marx não suporta. Kluge sabia disso desde o começo, ou seja, desde que decidiu concretizar um projeto nunca realizado pelo cineasta russo Serguei Eisenstein, diretor de clássicos como O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro, o filme mais caro bancado pelo governo revolucionário da ex-URSS. Ao terminar Outubro, em 1927, Eisenstein ficou dois anos com a ideia fixa de filmar O Capital seguindo a estrutura formal literária usada por James Joyce para escrever seu Ulisses. Em 1929, decidido a contar com sua colaboração, procurou o autor irlandês em Paris que, já cego, foi de pouca ajuda.

Não foi só de Joyce que Eisenstein recebeu um não. Do Comitê Central soviético aos estúdios hollywoodianos, passando pela Gaumont francesa, ninguém quis bancar seu projeto de filmar O Capital usando Ulisses. Se, no livro, Joyce adota o modelo épico homerístico para contar a odisseia de um homem (Leopold Bloom) durante um dia inteiro, Eisenstein, em O Capital, contaria a vida de duas pessoas igualmente perdidas (um casal) num mundo pós-industrial dominado pelo capital. Um dia basta para resumir toda a história da humanidade na vida de um homem, segundo a lógica de Joyce. Ou de duas, segundo Kluge, que parece não ter dúvidas sobre em que cenário esse casal viveria hoje: o do pós-bolha que abalou o crédito das bolsas e instituições bancárias. Enzensberger, a título de colaboração, sugere que Kluge filme as pessoas abandonando suas casas nos EUA por não poder mais pagar as prestações ao banco.

Kluge, assim como Enzensberger, são da escola de Habermas. Em outras palavras: marxista. Naturalmente discorda de quem acha que a modernidade já deu seu último suspiro. Vendo a China comunista avançar e potências capitalistas ocidentais agonizando na UTI, Kluge sente-se mais ou menos como Eisenstein se sentia em 1929 com o quebra da bolsa de Nova York. Mais do que fornecer respostas à crise econômica mundial, seu filme fala de gente que se vê como dinossauro mas que ainda acredita no projeto iluminista da Escola de Frankfurt, como o jovem marxista Fred Walhasch, que escreve para jornais estrangeiros e elabora dossiês. Walhasch diz no filme: "Vivo como o próprio Marx. Ninguém me quer".

Ninguém quer igualmente filmes de 9 horas e meia. Vivemos numa sociedade de espetáculo e filmar O Capital exige coragem e determinação para ir contra essa tendência e reconstruir a arte cinematográfica de autores como Eisenstein, Murnau, Lang e Bergman. Ao desenterrar o projeto do filme do russo, Kluge tinha em mente unir a filosofia de Kant, Adorno e Habermas - naturalmente atento às inovações sintáticas da literatura de Joyce e à montagem por associações do cinema de Eisenstein. Assim, Kluge recorre a versos escritos na prisão, em 1871, por Louise Michael, a poeta da Comuna de Paris, mostrados por meio de cartelas (como no cinema mudo), além de usar fragmentos de óperas de Luigi Nono (Al Gran Sole Carico D"Amore), Max Brand (Maquinista Hopkins) e Wagner (Tristão e Isolda, uma montagem dirigida por Werner Schroeter em que os marinheiros da obra de Wagner saem diretamente do Encouraçado Potemkin).

Kluge ainda se apropria, com apetite antropofágico, de um deslumbrante exercício visual do cineasta Tom Tykwer ( de Perfume e Corra, Lola, Corra) sobre o fetiche da mercadoria. O filme de Tykwe tem 12 minutos e chama-se O Homem na Coisa. O diretor acompanha os passos apressados de uma garota em Berlim e, no lugar de contar sua história, começa a divagar, acompanhando os movimentos da câmera, que focaliza as maçanetas das portas das casas, os interfones, a bolsa e os sapatos da mulher. O olho selvagem da câmera penetra na realidade do processo de produção, enquanto o narrador conta a história dos objetos e demonstra, como queria Marx, que uma mercadoria não tem nada de trivial, que ela está cheia de metafísica, de conteúdo teológico.

O filme de Kluge ainda recorre a fragmentos de uma ópera que estreou justamente em 1929, no auge da crise mundial: Maquinista Hopkins, do austríaco Max Brand, incluído na lista dos "entarted" (degenerados) pelos nazistas. Como em Metrópolis, de Lang, Brand fala de um mundo novo nada admirável que surge das máquinas e da depressão econômica. A ópera se passa nos galpões de uma fábrica e ilustra, no terceiro DVD, como Eisenstein teria incorporado a linguagem operística à sintaxe cinematográfica, além de filmes como Ninotchka, de Lubistch, e peças de Brecht. Kluge realiza o sonho do cineasta russo.

NOTÍCIAS DA ANTIGUIDADE IDEOLÓGICA
Sesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195, 3095-9402. Amanhã, 10h às 22h30 (com intervalos). Grátis.


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Cá entre nós: nove horas de Capital, do capital, de filme sobre o capital, deve ser tão chato quanto o próprio. Os marxistas religiosos não vão confessar, claro, que acharam chato, mas duvido que alguém goste de ficar nove horas assistindo a baboseiras sobre quão selvagem é o capitalismo e como é injusto o sistema de mercado. Para isso não me pegam. Já enfrentei o livro e fiz até um resumo do Capital. Não pretendo repetir a dose.
Fica para os true believers...
Paulo Roberto de Almeida

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Addendum:
Quem quer que tiver se submetido ao crash course on Capital, favor postar aqui suas impressões capitalistas...
Paulo Roberto de Almeida