Ensaio:
A linguagem diplomática que pode ser usada contra o Brasil
Gustavo Macedo
Apesar de improvável, há teses que podem conectar o princípio da ‘responsabilidade de proteger’, comumente associado à proteção de populações civis de atrocidades em massa, à preservação da Amazônia
Gustavo Macedo
‘A imagem que se constrói lá fora é de um Brasil descomprometido com suas responsabilidades, colocando em risco a segurança ambiental do planeta. Cresce a disposição para que algo seja feito.’
Leia no ensaio do cientista político Gustavo Macedo.
Há exatos dez anos o Conselho de Segurança da ONU
Renovado, o princípio sempre volta a aparecer quando é conveniente. Dessa vez, discute-se seu
Embora a Amazônia se estenda por nove países sul-americanos, 60% dela está em território brasileiro, o que explica a preocupação da opinião pública internacional com sua destruição. Fato esse acentuado pelo descaso do Brasil na proteção do ecossistema mais biodiverso da Terra. De acordo com o I
Apesar disso, o governo tem trabalhado contra suas obrigações constitucionais e compromissos internacionais ao desmantelar a escassa estrutura institucional da qual dispomos. O Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 prev
Pouco a pouco, a imagem que se constrói lá fora é de um Brasil descomprometido com suas responsabilidades, colocando em risco a segurança ambiental do planeta. Cresce, portanto, a disposição para que algo seja feito.
Naturalmente, qualquer discussão coletiva de uma ação externa contra a vontade do Brasil passará pelo Conselho de Segurança e a aprovação por seus membros permanentes. Eis que infelizmente, para nós brasileiros, nossas relações com esses membros já viram dias melhores.
Em 2019 o presidente francês Emmanuel Macron declarou que se deveria discutir a internacionalização da Amazônia e uma eventual intervenção. Em 2020 nos indispusemos com nosso maior parceiro comercial quando membros do governo brasileiro perpetraram ataques xenófobos contra a China. E, finalmente, em 2021, Joe Biden assumiu o comando dos Estados Unidos após sair vitorioso de uma campanha presidencial na qual atacou a política ambiental do Brasil.
Episódios como esses têm reanimado a hipótese de que a responsabilidade de proteger poderia ser usada de alguma forma no caso brasileiro.
Todavia, embora pareça improvável, essa conexão não é impossível. Seria preciso alguma criatividade para conectar responsabilidade de proteger com proteção ambiental. Fato é que o princípio nunca se preocupou com ameaças ambientais, e seu foco sempre foi a proteção das populações civis de atrocidades em massa. Dito isso, expomos abaixo três teses que podem vir a ser usadas contra o Brasil em algum momento.
À primeira vista, falar sobre proteger a Amazônia soa como proteger a fauna e a flora de seu extermínio. Essa é a tese da prevenção de um ‘ecocídio’, ou seja, quando a atividade humana viola os princípios da justiça ambiental por meio do dano sistemático ou destruição de ecossistemas ou ataque à saúde e bem-estar de uma espécie.
Ecocídio é uma ideia da década de 1970, mas que até hoje não é reconhecida como um crime internacional pelas Nações Unidas. Assumir que a vida de plantas e animais são tão sagradas quanto a humana ainda parece ser um capítulo distante na história da diplomacia.
Politicamente, essa também é a hipótese mais fraca para uma ação internacional. Os principais países de economia industrializada que hoje assumem uma bandeira ambiental são justamente aqueles que mais destruíram suas florestas, ou de suas colônias, durante seu processo de industrialização a partir do século 19.
A tese mais recente também é frágil. Em 2017, o Conselho de Segurança adotou uma decisão histórica por meio de sua resolução 2.347 ao deliberar que a destruição e tráfico de patrimônios culturais pode ser considerada um crime de guerra. Baseada na Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, a resolução abre brechas para questionar a relação entre natureza e cultura.
Entusiastas dessa hipótese possivelmente explorariam a ameaça ao Complexo Ambiental da Amazônia Central, cravado no coração da floresta e reconhecido como patrimônio natural da humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 2003. Fariam uso, por exemplo, do fato de que em janeiro deste ano Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, anunciou que a região será cedida à exploraçãoda iniciativa privada.
Tanto no ecocídio quanto no “genocídio cultural” a humanidade ameaçada estaria para além das fronteiras do estado brasileiro, visto que todos os cidadãos do mundo seriam de algum modo prejudicados.
Por fim, há a responsabilidade de proteger brasileiros de outros brasileiros. Isto é, proteger as populações nativas de um extermínio que estaria sendo negligenciado ou assistido por setores do próprio governo. Esse último ponto é o mais afastado da ecologia, porém é o mais provável de colar multilateralmente.
Com o governo Bolsonaro, denúncias de graves violações de direitos humanos têm se intensificado. Além do aumento expressivo do número de assassinatos no campo e em terras indígenas, até mesmo a negligência em proteger povos indígenas contra o avanço da covid-19 tem sido apontada como uma estratégia do governo para eliminar povos nativos e enfraquecer a resistência à destruição ambiental.
Caso o Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheça as evidências da ocorrência de um genocídio indígena, o Conselho de Segurança poderia agir.
A responsabilidade de proteger não pressupõe o uso da força, mas ter seu nome vinculado a esse debate seria uma mancha permanente na imagem internacional do Brasil. Embora a destruição da Amazônia não seja a única causa das mudanças climáticas, nem os crimes de atrocidade sejam consensuais, a discussão certamente crescerá nos próximos anos. O movimento será favorecido pelo atual isolamento diplomático brasileiro.
Gustavo Macedo é doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo). Foi pesquisador junto ao Departamento de Prevenção de Genocídios e Responsabilidade de Proteger da Organização das Nações Unidas entre 2017 e 2018. Autor do relatório “Making Atrocity Prevention Effective”.