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sexta-feira, 19 de março de 2021

A linguagem diplomática que pode ser usada contra o Brasil - Gustavo Macedo (Nexo Jornal)

 Ensaio: 

A linguagem diplomática que pode ser usada contra o Brasil

Gustavo Macedo


Apesar de improvável, há teses que podem conectar o princípio da ‘responsabilidade de proteger’, comumente associado à proteção de populações civis de atrocidades em massa, à preservação da Amazônia

Gustavo Macedo


‘A imagem que se constrói lá fora é de um Brasil descomprometido com suas responsabilidades, colocando em risco a segurança ambiental do planeta. Cresce a disposição para que algo seja feito.’ 

Leia no ensaio do cientista político Gustavo Macedo.


Há exatos dez anos o Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) autorizava a intervenção militar na Líbia com base no princípio da responsabilidade de proteger”. A intervenção foi um desastre, mudou o regime político líbio e destruiu a legitimidade institucional que existia no país. Hoje, o território fragmentado convive com uma guerra civil, é rota de comércio de escravos e posto avançado de grupos terroristas que assombram o continente.

Renovado, o princípio sempre volta a aparecer quando é conveniente. Dessa vez, discute-se seu uso contra o Brasil.

Embora a Amazônia se estenda por nove países sul-americanos, 60% dela está em território brasileiro, o que explica a preocupação da opinião pública internacional com sua destruição. Fato esse acentuado pelo descaso do Brasil na proteção do ecossistema mais biodiverso da Terra. De acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o desmatamento florestal      cresceu 34% em relação ao ano anterior, e tudo indica que aumentou ainda mais em 2020 apesar da crise econômica. 

Apesar disso, o governo tem trabalhado contra suas obrigações constitucionais e compromissos internacionais ao desmantelar a escassa estrutura institucional da qual dispomos. O Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 prevê uma redução de 27,4% no orçamento do Ministério do Meio Ambiente – o menor das últimas duas décadas; enquanto o governo age para reduzir os autos de infração realizados pelo Ibama de 14.641 em 2019 para 9.516 em 2020

Pouco a pouco, a imagem que se constrói lá fora é de um Brasil descomprometido com suas responsabilidades, colocando em risco a segurança ambiental do planeta. Cresce, portanto, a disposição para que algo seja feito.

Naturalmente, qualquer discussão coletiva de uma ação externa contra a vontade do Brasil passará pelo Conselho de Segurança e a aprovação por seus membros permanentes. Eis que infelizmente, para nós brasileiros, nossas relações com esses membros já viram dias melhores. 

Em 2019 o presidente francês Emmanuel Macron declarou que se deveria discutir a internacionalização da Amazônia e uma eventual intervenção. Em 2020 nos indispusemos com nosso maior parceiro comercial quando membros do governo brasileiro perpetraram ataques xenófobos contra a China. E, finalmente, em 2021, Joe Biden assumiu o comando dos Estados Unidos após sair vitorioso de uma campanha presidencial na qual atacou a política ambiental do Brasil.

Episódios como esses têm reanimado a hipótese de que a responsabilidade de proteger poderia ser usada de alguma forma no caso brasileiro.

Todavia, embora pareça improvável, essa conexão não é impossível. Seria preciso alguma criatividade para conectar responsabilidade de proteger com proteção ambiental. Fato é que o princípio nunca se preocupou com ameaças ambientais, e seu foco sempre foi a proteção das populações civis de atrocidades em massa. Dito isso, expomos abaixo três teses que podem vir a ser usadas contra o Brasil em algum momento.

À primeira vista, falar sobre proteger a Amazônia soa como proteger a fauna e a flora de seu extermínio. Essa é a tese da prevenção de um ‘ecocídio’, ou seja, quando a atividade humana viola os princípios da justiça ambiental por meio do dano sistemático ou destruição de ecossistemas ou ataque à saúde e bem-estar de uma espécie. 

Ecocídio é uma ideia da década de 1970, mas que até hoje não é reconhecida como um crime internacional pelas Nações Unidas. Assumir que a vida de plantas e animais são tão sagradas quanto a humana ainda parece ser um capítulo distante na história da diplomacia. 

Politicamente, essa também é a hipótese mais fraca para uma ação internacional. Os principais países de economia industrializada que hoje assumem uma bandeira ambiental são justamente aqueles que mais destruíram suas florestas, ou de suas colônias, durante seu processo de industrialização a partir do século 19. 

A tese mais recente também é frágil. Em 2017, o Conselho de Segurança adotou uma decisão histórica por meio de sua resolução 2.347 ao deliberar que a destruição e tráfico de patrimônios culturais pode ser considerada um crime de guerra. Baseada na Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972, a resolução abre brechas para questionar a relação entre natureza e cultura.

Entusiastas dessa hipótese possivelmente explorariam a ameaça ao Complexo Ambiental da Amazônia Central, cravado no coração da floresta e reconhecido como patrimônio natural da humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 2003. Fariam uso, por exemplo, do fato de que em janeiro deste ano Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, anunciou que a região será cedida à exploraçãoda iniciativa privada.

Tanto no ecocídio quanto no “genocídio cultural” a humanidade ameaçada estaria para além das fronteiras do estado brasileiro, visto que todos os cidadãos do mundo seriam de algum modo prejudicados.

Por fim, há a responsabilidade de proteger brasileiros de outros brasileiros. Isto é, proteger as populações nativas de um extermínio que estaria sendo negligenciado ou assistido por setores do próprio governo. Esse último ponto é o mais afastado da ecologia, porém é o mais provável de colar multilateralmente. 

Com o governo Bolsonaro, denúncias de graves violações de direitos humanos têm se intensificado. Além do aumento expressivo do número de assassinatos no campo e em terras indígenas, até mesmo a negligência em proteger povos indígenas contra o avanço da covid-19 tem sido apontada como uma estratégia do governo para eliminar povos nativos e enfraquecer a resistência à destruição ambiental.

Caso o Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheça as evidências da ocorrência de um genocídio indígena, o Conselho de Segurança poderia agir.

A responsabilidade de proteger não pressupõe o uso da força, mas ter seu nome vinculado a esse debate seria uma mancha permanente na imagem internacional do Brasil. Embora a destruição da Amazônia não seja a única causa das mudanças climáticas, nem os crimes de atrocidade sejam consensuais, a discussão certamente crescerá nos próximos anos. O movimento será favorecido pelo atual isolamento diplomático brasileiro.

Gustavo Macedo é doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo). Foi pesquisador junto ao Departamento de Prevenção de Genocídios e Responsabilidade de Proteger da Organização das Nações Unidas entre 2017 e 2018. Autor do relatório “Making Atrocity Prevention Effective”.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Proteger a Amazônia: redefinir R2P - Jean-Baptiste Jeangène Vilmer

Jean-Baptiste Jeangène Vilmer, que é diretor do Instituto de Pesquisas Estratégicas da Escola Militar francesa argumenta que é preciso avançar no conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P), no sentido de integrar a preservação do meio ambiente como uma das preocupações relevantes da comunidade internacional.
Ademais do artigo abaixo reproduzido, publicado no Le Monde (28/08/2019, p. 24), há uma entrevista que ele concedeu para a Radio France Culture: https://www.franceculture.fr/emissions/le-temps-du-debat/faut-il-un-droit-dingerence-international-ecologique
 
 Em seu artigo, ele parte do caso brasileiro para a redefinição da noção de soberania, essencial para a preservação de um bem comum para toda a humanidade, indicando os meios coercitivos (não desejáveis) e os indutivos (preferíveis) para esse objetivo.
Paulo Roberto de Almeida

« Il faut mieux protéger l’Amazonie »

Jean-Baptiste Jeangène Vilmer
Le Monde, 28 Août 2019

Contraindre un Etat à assurer la sauvegarde d’un bien commun de l’humanité implique de redéfinir la notion de souveraineté, explique Jean-Baptiste Jeangène Vilmer, directeur de l’Institut de recherche stratégique de l’Ecole militaire.

Actuellement consumée par des dizaines de milliers de feux et une déforestation qui rase l’équivalent de deux terrains de football par minute, la forêt amazonienne agonise sous nos yeux. Parce qu’il s’agit de la plus grande forêt tropicale au monde, du plus grand réservoir de biodiversité et de l’un des principaux stabilisateurs climatiques de la planète, nous souffrirons tous de sa destruction.
Cette catastrophe a suscité des réactions du secrétaire général de l’ONU et de plusieurs chefs d’Etat. Si la France est en première ligne – « Notre maison brûle », a réagi le président Macron, parlant d’une « crise internationale » –, c’est, non seulement, pour défendre un intérêt national en tant que pays amazonien, par son département de Guyane, mais aussi et surtout pour porter des valeurs universelles.
La forêt amazonienne est, en effet, un cas particulier : comme les « espaces communs » tels l’océan, l’atmosphère, les pôles ou encore l’espace, elle constitue une ressource dont les bienfaits bénéficient à tous et dont la destruction nuirait à tous. Mais, contrairement à eux, elle est située sur le territoire d’Etats souverains, qui n’hésitent pas à le rappeler : « L’Amazonie appartient au Brésil », avait ainsi martelé le président Bolsonaro en juillet, avant de répondre au président Macron qu’il s’ingérait dans « un problème interne ». Celui qui s’estime propriétaire d’un bien peut décider qu’il porte la responsabilité d’en prendre soin – ce qui était le cas jusqu’alors – ou qu’il a le droit de ne pas le faire, ce qui semble être le cas désormais.
Climatosceptique, M. Bolsonaro ne cache pas qu’il considère la protection de l’environnement comme un obstacle au développement économique. Depuis son arrivée au pouvoir, la déforestation s’est accélérée. En juin 2019, elle avait augmenté de 88 % par rapport à l’année précédente, selon les chiffres de l’agence spatiale brésilienne – dont le directeur s’est fait limoger après cette révélation. Le président est en outre accusé d’être resté inactif face aux incendies pendant plusieurs semaines.

« Responsabilité de protéger »

Le cas brésilien est spectaculaire mais il n’est certainement pas le seul. Se pose donc une question générale : comment contraindre un Etat souverain à protéger un bien commun qui se trouve sur son territoire et dont la destruction aurait un impact planétaire ?
D’abord en défendant une redéfinition de la souveraineté-pouvoir (le pouvoir d’opprimer sa population ou de détruire son environnement) vers une souveraineté-responsabilité (la responsabilité d’en prendre soin). C’est l’un des fondements de la notion de « responsabilité de protéger » (R2P) acceptée par l’ensemble des Etats membres de l’ONU comme s’appliquant aux atrocités de masse (génocide, crimes contre l’humanité, nettoyage ethnique, crimes de guerre). L’idée est que l’Etat a la responsabilité première de prévenir et de faire cesser ces crimes sur son territoire mais que, s’il échoue, par manque de volonté ou de capacité, la communauté internationale a une responsabilité subsidiaire d’intervenir.
Aujourd’hui, la destruction de l’environnement ne figure pas dans son champ d’application et, à l’exception d’une tentative infructueuse de l’alors ministre français des affaires étrangères et européennes Bernard Kouchner et de quelques autres de faire valoir que la R2P s’applique aussi aux catastrophes naturelles – lorsque le cyclone Nargis avait dévasté la Birmanie en 2008 et que le gouvernement refusait l’aide internationale –, il n’y a pas de précédent.
Une manière indirecte d’inclure l’environnement dans la responsabilité de protéger serait d’affirmer que les actions délibérées, généralisées ou systématiques causant des dommages étendus, durables et graves à l’environnement naturel portent atteinte non seulement à la sécurité de la planète mais aussi aux conditions d’existence de l’humanité. De ce point de vue, le crime d’écocide est aussi une forme de crime contre l’humanité. Le Conseil de sécurité des Nations unies pourrait en outre estimer qu’en contribuant au changement climatique, la destruction de la forêt amazonienne constitue une menace envers la paix et la sécurité internationales, lui permettant d’adopter des réponses coercitives.

Financement collectif

Si l’usage de la force – une intervention militaire pour établir un périmètre de protection et empêcher la déforestation par exemple – semble farfelue et dangereuse car certainement contre-productive, on ne peut exclure que, dans une situation similaire dans dix ou vingt ans, si l’enjeu est alors perçu comme vital, la question finisse par se poser. Aujourd’hui, la coercition consiste à exercer une pression croissante sur l’Etat hôte du bien commun à protéger (accord UE-Mercosur, importations, etc.).
Une autre approche, par l’incitation, serait de financer collectivement la protection : la communauté internationale pourrait créer un fonds d’investissement environnemental pour inciter les Etats ayant un bien commun mondial sur leur territoire à en prendre soin. L’aide serait conditionnée à la mise en place de politiques favorables à l’environnement. La réponse peut aussi être régionale, avec la mise en place de brigades internationales de bombardiers d’eau par exemple, sur le modèle européen du nouveau mécanisme « rescEU », mis en place cette année.
Dans tous les cas, il est important, d’une part, de ne pas braquer l’opinion publique du pays concerné car c’est sur elle, sur la société civile, qu’il faudra s’appuyer pour infléchir des politiques gouvernementales, et c’est pourquoi l’offre de coopération est dans un premier temps préférable à ce qui pourrait être perçu comme une punition humiliante. D’autre part, il faut comprendre les logiques économiques à l’œuvre et prendre le problème à la racine. Dans le cas du Brésil, la déforestation est due à la culture de soja et à l’élevage bovin, c’est-à-dire, in fine, à la demande mondiale de viande. Tant que celle-ci continuera d’augmenter, la forêt, donc le climat, seront menacés.

Jean-Baptiste Jeangène Vilmer est directeur de l’Institut de recherche stratégique de l’Ecole militaire (IRSEM). Il est l’auteur du « Que sais-je ? » La Responsabilité de protéger (Paris: PUF, 2015).