Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Joel Pinheiro da Fonseca - Trump acaba de ficar mais forte
Folha de S. Paulo
Se vencer, ainda que preso, ex-presidente sairá de cabeça erguida para se sentar no Salão Oval
Os EUA não têm lei da ficha limpa. Trump será candidato a presidente mesmo com sua condenação criminal, e nada poderá impedi-lo, nem mesmo se for preso quando o juiz sentenciá-lo em julho. Mais do que isso: é o favorito e acaba de ficar mais forte.
Primeiro, o lado técnico: os EUA já tiveram um candidato à Presidência preso. Era o socialista Eugene Debbs na eleição de 1920. Não tinha a menor chance, mas pôde concorrer e receber quase 1 milhão de votos em sua cela em Atlanta sem problema algum. O mesmo valerá para Trump. E, se pode ser candidato, pode vencer.
Uma vez eleito, a lei não prevê o que acontecerá. O que significa que ficará a cargo da política. E com um governo recém-eleito, um Congresso de direita, um Partido Republicano fanaticamente trumpista e uma Suprema Corte conservadora, qual a chance da política decidir barrar o vencedor de uma eleição democrática na qual ele tinha todo o direito de concorrer? A esperança em freios do sistema é vã. Biden, realista, já vaticinou: "Há apenas um jeito de manter Trump fora do Salão Oval: na urna." E, na urna, a condenação pode ter efeito oposto ao esperado.
Ter tido relações com a atriz pornô em 2006 e pago por seu silêncio dez anos depois não fere a lei. No entanto, ao reembolsar o advogado que fez esses pagamentos, Trump os registrou como "despesas jurídicas"; o que, aí sim, configura fraude. Mas esse tipo de fraude, na lei estadual de Nova York, é uma "misdemeanor", uma contravenção, um crime de menor gravidade.
Só foi elevado à categoria de "felony", ofensa criminal mais séria, porque, na interpretação do promotor, a fraude teria sido usada para ocultar outro crime. O outro crime, no caso, seria contra a legislação eleitoral federal. Os pagamentos do advogado à atriz deveriam, segundo a acusação, ser considerados como doações de campanha, e eles violam o limite federal de doações. O problema: na esfera federal, o Departamento de Justiça optou por não processar Trump por esses pagamentos.
Usar um caminho tortuoso para aumentar a gravidade das acusações, sendo que a acusação de contravenção era cristalina, apenas fortalece a impressão de que a Justiça pesou a mão para punir Trump. E, ao fazê-lo, dá ao campo trumpista a confirmação de que seu líder é um perseguido político.
Na eleição americana, que tem taxa de participação baixa se comparada à nossa, persuadir seus apoiadores a saírem de casa para votar é tão ou mais importante que converter indecisos. O sentimento de perseguição, de luta contra uma injustiça, mobiliza o eleitorado.
Nas horas seguintes à condenação, a campanha de Trump bateu um recorde ao receber US$ 34,8 milhões em doações de pequenos doadores. Enquanto um lado comemora e —será possível?— volta a se iludir, o outro está ainda mais convicto de que trava uma guerra de tudo ou nada por sua própria existência contra um sistema que, esse sim, comete muitos e maiores crimes impunemente. A urna é sua última chance de fazer valer a justiça nessa guerra de teor apocalíptico.
Se vencer, ainda que preso, Trump verá as portas da prisão abertas diante de si e de lá sairá de cabeça erguida para se sentar novamente no Salão Oval. Os impactos para a democracia americana e para a ordem mundial são imprevisíveis.
Uma coisa é certa: fortalecerá a direita populista no mundo todo, inclusive no Brasil, independentemente de seus crimes. Por isso, aprendamos a lição: a Lei de Ficha Limpa e outros dispositivos formais são um freio temporário; no longo prazo, a urna é soberana.
Não é só Bolsovirus que é inimigo da imprensa: metade do seu ministério também, com especial “distinção” do patético chanceler acidental, um inimigo particularmente feriz.
Quando Bolsonaro, em meados de 2019, começou a atacar a imprensa (aliás antes, desde sempre), em especial a Folha de SP, e mandou cortar as assinaturas da FSP, o furibundo e desvairado chanceler acidental mandou cortar, na mesma hora, na mesma tarde, a assinatura da FSP. Acostumado a ler os jornais diários na biblioteca do Itamaraty, onde me exilei depois de demitido do IPRI, só tinha acesso a todos os demais, mas não à FSP. Mais ainda: cortou a FSP do clipping diário da imprensa nacional.
Não contente: mandou cortar totalmente os dois clippings diários da imprensa nacional e internacional, deixando todos os diplomatas, todos os servidores do Serviço Exterior, completamente desprovidos de qualquer fonte de informação sobre o Brasil e sobre os assuntos da política mundial.
Não hesito em classificar sua censura como CRIMINOSA, pois priva os diplomatas de uma ferramenta essencial ao seu trabalho, que é a informação: um embaixador lotado, digamos, na Ásia central, ou no interior da África, se não dispuser dos seus próprios meios de informação, não poderá comentar com seus colegas, ou na chancelaria local, o que está se passando no seu próprio país. CRIMINOSO!
Paulo Roberto de Almeida
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Joel Pinheiro da Fonseca* - Bolsonaro é incapaz da verdade
- Folha de S. Paulo
Como o presidente corrói a liberdade de imprensa no Brasil
A ONG Repórteres Sem Fronteiras, que milita pela liberdade de imprensa em todo o mundo, lançou uma campanha publicitária crítica a Jair Bolsonaro, representado sem roupa. Nela, a ONG mostra a "verdade nua" dos mortos da Covid, tema que o governo busca esconder.
A campanha é bem-vinda. Mesmo antes e independente da pandemia, Bolsonaro já era hostil à imprensa livre. Xingou e caluniou jornalistas e usou —ou ao menos se gaba de usar— verbas do governo como arma para premiar veículos aliados e punir adversários.
Um subproduto dos ataques verbais diretos são agressões verbais e físicas contra jornalistas. Uma sociedade em que parte da população, por uma adesão servil ao presidente, sai de seu caminho para hostilizar ou infernizar jornalistas vistos como "inimigos" do regime não é uma nação com liberdade de imprensa plena.
Durante a pandemia, Bolsonaro também fez por merecer. No início, acusava a imprensa de aumentar a ameaça da pandemia. "No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo", disse em março.
Quando ficou claro que a crise era grande e o Brasil estava despreparado, tentou bagunçar o debate divulgando, não o número de mortos, mas o de curados. Assim é fácil! Os homicídios estão em alta? Basta celebrar todas as pessoas que não foram assassinadas. Depois de problemas na divulgação dos dados oficiais, coube à "malvada" imprensa tomar para si a responsabilidade de publicar os números diários de mortes e contaminações com transparência e agilidade.
Para Bolsonaro, não existem problemas reais; apenas de comunicação. Reduzir o contágio, adquirir uma vacina eficaz para o coronavirus não são medidas importantes. O importante é persuadir o eleitorado de que tudo vai bem. Falar dos vivos, promover a cloroquina. E quem cobra prova de eficácia é tratado como inimigo. O governo segue empurrando seu "tratamento precoce" (um coquetel de cloroquina e outros remédios) goela abaixo do Brasil, enquanto permanecemos acima das mil mortes diárias. O crime tem sido devidamente registrado pela imprensa.
Perseguição direta e indireta é uma maneira de prejudicar a liberdade de imprensa. Desinformar o público e melar o debate com tanta fake news que já não se sabe mais o que é verdade e o que é mentira, também. Estamos ainda longe do nível de repressão à imprensa de uma Cuba ou Venezuela, mas a deterioração é preocupante.
Os riscos para a imprensa num país como o nosso são dois: o primeiro é o de se aliar ao poder da vez, ceder às pressões do dinheiro e da proximidade com os poderosos. O segundo é o de, reagindo aos ataques do governo, tornar-se militante contra ele, retorcendo cada notícia para que desabone o presidente. Embora o primeiro seja claramente o pior, ambos se desviam da missão maior do jornalismo: a busca da objetividade, de modo a municiar o debate público com informações relevantes e verdadeiras.
Nesse contexto, é um privilégio fazer parte da Folha de S. Paulo, que completou 100 anos no dia 19. Em sua primeira encarnação, como Folha da Noite, chegou a ser tirada de circulação pelo presidente Arthur Bernardes. Eleita como uma das maiores inimigas de Bolsonaro, e com jornalistas seus ativamente perseguidos por gângsteres da milícia federal, continua fazendo jus à sua vocação de espinho na carne do poder. Bolsonaro é moralmente incapaz da verdade. Todos já sabem disso; o rei está nu. Cabe à imprensa nem tapar suas deformidades nem aumentá-las; basta mostrar a verdade nua e crua.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Um não-debate, uma vez que se trata apenas da resposta de Joel Pinheiro da Fonseca a um artigo muito abaixo da linha vergonhosa que poderíamos chamar de sectária: Jessé Souza, do Ipea, assinou um artigo mentiroso na Folha de São Paulo, reproduzido a seguir, o que indignou muita gente, com razão. Joel Pinheiro da Fonseca responde com propriedade e sobretudo restabelecendo a verdade, em face do amontoado de mentiras grotescas do presidente do Ipea (lamento pelo Instituto ter um desqualificado como presidente).
Paulo Roberto de Almeida
Quem deu o golpe, e contra quem?
JESSÉ SOUZA
RESUMO Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo de
impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma
ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta
crise, como outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da
classe média pela "elite de dinheiro".
*
O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida
social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que
nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.
O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança
escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que
se uniram em 1930.
A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um
mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de
reinvenção nacional.
O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte
mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de
consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer "compreendeu" esse sonho,
posto que "afetivamente" nunca sentiu compromisso com os destinos do
país.
Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o
sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma
elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as
riquezas do país para o bolso de meia dúzia.
A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder "comprar" todas as outras elites.
É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a
elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a
lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção
legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via
financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de
TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.
De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas
mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam
a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as
Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em
dia.
A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois
polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por
um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças
Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.
O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece
em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é
que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na
sociedade.
INFRAESTRUTURA
O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º
PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão
ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e
setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de
universidades e centros de pesquisa em todo o país.
Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto
de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se
lançassem em uma batalha ideológica contra a "república socialista do
Brasil" e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua
inabalável "vocação democrática".
O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal
pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de
curto prazo e uma nova derrota do sonho de um "Brasil grande".
Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é
o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume
é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O
público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por
que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do "esquecimento" no
mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para
que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.
Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim,
não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no
Executivo.
A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza
acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior
eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela
imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até
hoje.
Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo
mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o
dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.
O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de
apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a
ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do
salário mínimo.
Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.
Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova
proximidade em shopping centers e aeroportos, mas "pegava mal" expressar
o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa
classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus
empregos.
O discurso da "corrupção seletiva" manipulado pela mídia permite que se
enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma
atitude de pretenso "campeão da moralidade". O que antes se dizia a boca
pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e
empunhando a bandeira nacional. Está criada a "base popular", produto da
mídia servil à elite da rapina.
A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012
reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na
existência de uma "boa burguesia", ou seja, a fração industrial
supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento
do mercado interno.
Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que
permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos
endinheirados de modo invisível, funcionando como uma "taxa" que
encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido
para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa
comprada.
Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está
armada e unida contra a presidente. As "jornadas de junho" daquele ano
vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática,
transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a
elite endinheirada e a classe média "campeã da moralidade e da decência"
contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.
Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto,
perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e
moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o
aparato jurídico-policial do Estado.
Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle
recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse
aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e
demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao "sentimento
de casta" que os concursos dirigidos aos filhos das classes do
privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas
não são controlados por ninguém, em verdadeiros "partidos corporativos"
lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.
A manipulação da "corrupção seletiva" pela imprensa é o discurso ideal
para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos
em suposto "bem comum". O troféu de "campeão da moralidade pública"
passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um
conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos
cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.
Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o
golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada
por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros
da "justiça seletiva" ele não teria acontecido.
O Estado policial a cargo da "casta jurídica" já está sendo testado há
meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma
"seletividade midiática", o princípio: para os inimigos a lei, e para os
amigos a "grande pizza".
A "pizza" para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do
dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo.
Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.
Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de
fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais
fracos, travestindo-o de "coragem cívica".
Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente
como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário
de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar
o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de
ladrões na política, uma justiça de "justiceiros" que os protege, uma
elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à
pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é
o espelho do que nos tornamos.
JESSÉ SOUZA, 56, autor de "A Tolice da Inteligência Brasileira"
(Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da
UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen.
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A objetividade contra o discurso sectário
JOEL PINHEIRO DA FONSECA
RESUMO Em resposta a texto de Jessé Souza publicado neste caderno
no último domingo (24/4), o autor discorda da tese de que o impeachment
da presidente Dilma Rousseff seja golpe da elite em resposta à ascensão
dos pobres. O embate político brasileiro seria, na verdade, entre dois
diferentes projetos para o desenvolvimento.
*
Em outras ocasiões, defendi nesta Folha que o impeachment não era
ilegítimo (ou seja, não é golpe) mas que tampouco era desejável. O
governo Dilma se emendaria, seguiria contrito e bem ou mal faria o
ajuste fiscal necessário; o governo estaria bastante desgastado, e o
projeto fracassado do PT seria rechaçado nas urnas em 2018.
Agora as circunstâncias mudaram. Temos um governo a serviço do partido,
que já abandonou qualquer projeto de ajuste e que se mostra incapaz de
governar. Enquanto isso, a economia não dá sinais de melhora, e o
desemprego já passa dos 10%; não podemos nos dar ao luxo de esperar mais
três anos. Nessa conjuntura, defender o governo com unhas e dentes não é
tarefa fácil. Não faltam, contudo, intelectuais dispostos a fazê-lo,
com variável grau de seriedade.
Em "Quem deu o golpe, e contra quem?"
(Ilustríssima, 24/4), Jessé Souza apresenta uma leitura de nossa
história amplamente guarnecida de adjetivos e juízos de valor, mas
desprovida de fatos. Faz acusações sem prova e rebaixa a discussão, tudo
para proteger um projeto de poder particularmente criminoso, cuja
incompetência tem destruído o sonho de milhões de brasileiros.
Para Souza, nossa história é dominada por uma "elite de rapina" que
sabota qualquer esforço mais generoso de promover a ascensão social do
restante do país, como supostamente era o objetivo do PT e de Dilma. Não
só o golpe de 64, mas também as Diretas-Já e os protestos de 2013 foram
ardis da elite malvada contra as classes trabalhadoras.
Nos raros momentos em que não está atribuindo finalidades escusas a seus
desafetos e interpretando a linha do tempo seletiva e minguada que ele
mesmo constrói, Souza comete inverdades flagrantes, como a afirmação de
que a imprensa internacional tem "denunciado" o processo de impeachment
como golpe.
Uma rápida pesquisa revela que nenhum jornal importante o fez. Aliás,
publicações de peso como "Le Monde", "The Economist" e "Washington Post"
rejeitaram explicitamente a tese do golpe em seus editoriais. Tal tese
existe apenas entre nossa elite cultural engajada.
ALIANÇAS
Para manter a narrativa moralista em nível quase de caricatura, ele
ignora por completo as complexidades de alianças políticas que, se
lembradas, refutam sua leitura. A "av. Paulista", símbolo máximo das
forças do mal, era, até pouco tempo atrás, aliada de Dilma. Basta
lembrar que a Fiesp elogiou a redução tarifária da eletricidade e as
isenções e desonerações de setores e empresas.
O subsídio do BNDES a grandes corporações, conhecido como "bolsa
empresário" (que supera em valor o Bolsa Família), fez a alegria do alto
empresariado brasileiro. O setor bancário lucrou como nunca, e sua
atitude oscilava entre o apoio explícito e o silêncio omisso. A mudança
de trajetória dos juros, ademais, foi consequência direta da piora de
nossos fundamentos econômicos, causados por esse mesmo governo.
A afirmação de que o que move o impeachment é o ódio contra a ascensão
econômica dos pobres não resiste à mais simples constatação: a luta para
derrubar o governo só tomou fôlego a partir de 2015, justamente quando o
desemprego passa a subir rapidamente e a inflação corrói a renda dos
mais pobres. Naquela época dourada em que o PT podia se gabar de que
pobre andava de avião, não havia nenhum movimento minimamente forte que
defendesse o impeachment.
Para completar, Souza omite e relativiza os crimes e a corrupção. O
petrolão, maior esquema de corrupção da história do Brasil, nem é
mencionado. Cabe dizer que ele não é uma consequência inevitável do
capitalismo –mesmo porque países muito mais capitalistas que o Brasil
não têm a mesma corrupção que nós–, e sim fruto de um projeto de captura
do Estado que viola as regras mais elementares de nosso sistema. O
mesmo vale para a fraude fiscal cometida pelo governo Dilma e que dá a
base legal do impeachment.
Apesar do viés, o artigo nos leva a considerar horizontes mais amplos.
Para além da grave ilegalidade cometida pelo governo Dilma ao fraudar as
contas para esconder o rombo fiscal, é possível buscar uma narrativa
maior por trás do impeachment –o embate de forças históricas que
disputam os rumos do Brasil. Não vejo, contudo, a luta maniqueísta entre
espíritos generosos, de um lado e aves de rapina, do outro.
O real embate de nossa política é entre a busca do desenvolvimento em
algum atalho facilmente trilhado pela canetada política e pelo gasto
irresponsável –os crentes no poder mágico do Estado–, e a crença de que o
importante é ter um sistema funcional e sustentável para promover o
desenvolvimento de longo prazo.
PÉS PELAS MÃOS
Intenções boas e más existem em todos os lados. Elas em nada alteram os
resultados práticos de diferentes políticas. Saído de uma ditadura
estatizante, burocrática e autoritária, o Brasil meteu os pés pelas mãos
repetidamente. Inflação, desemprego e uma "década perdida" foram os
resultados de governos supostamente preocupados com o desenvolvimento.
A discussão séria de políticas públicas prescinde da avaliação moral dos
participantes. Suponhamos que a política monetária dos anos 1980
estivesse de fato munida das melhores e mais generosas intenções ao
atribuir ao Banco Central a missão de financiar o desenvolvimento do
Brasil. Funcionou? Não. Apenas gerou a hiperinflação que só seria
vencida com o Plano Real. Foi somente no governo FHC que, contrapondo-se
à demagogia populista de curto prazo, se conseguiu o equilíbrio fiscal e
a estabilidade monetária que permitiram ao país crescer. O primeiro
mandato de Lula manteve essas conquistas e trouxe um importante foco em
políticas de transferência de renda para a base da pirâmide.
O que poderia ser um novo caminho para um Brasil mais sério, contudo,
foi abortado pelo projeto de poder do Partido dos Trabalhadores. A
partir de 2006, machucado pelo mensalão, o governo fez o que se chamou
na época de uma "inflexão desenvolvimentista", e voltamos aos velhos
vícios.
As obras vistosas do PAC, a miragem do pré-sal, a aposta na expansão do
crédito ao consumo, a política de campeões nacionais, o controle de
preços, a piora de nossa dívida pública, as aventuras geopolíticas. Se
foram mesmo reflexos de boas intenções eu não sei, o fato é que nos
lançaram no que já é uma nova década perdida. Década que foi antecedida
por muitas oportunidades perdidas.
O Brasil surfou a onda internacional favorável, quando nossas
exportações valiam muito, e não fez nenhuma reforma significativa: nosso
Estado não investiu em nossos gargalos e criou dificuldades para o
investimento privado; nada se fez pela educação básica; nossa arcaica
legislação trabalhista (que mantém 40% da mão de obra na informalidade)
ficou intocada; a bomba-relógio da Previdência foi empurrada para o
futuro incerto; nossos impostos continuaram superiores aos de países com
a mesma renda per capita, sem falar de nossa complexidade tributária,
que é recordista mundial inconteste.
Em suma, apostamos na demanda sem nada fazer para resolver as limitações
de nossa oferta. O desenvolvimento ilusório deu lugar à recessão.
E agora, quando o Brasil precisa encontrar saídas, ficamos presos à
polarização crescente. O terrorismo eleitoral governista impediu
qualquer debate nos anos decisivos de 2010 e 2014. Perdeu-se de vista
qualquer ideia de projeto para o Brasil.
É o retumbante fracasso teórico e prático do projeto governista que cria
a necessidade da demonização de propostas alternativas. O resultado é o
empobrecimento do debate público e a entronização de um discurso
altamente moralista que, como sempre acontece, serve para justificar
práticas corruptas.
Quais países na América Latina e na África têm tido mais sucesso? Os que
criam instituições sólidas e regras claras, com equilíbrio fiscal,
respeito à propriedade e facilidade de empreender e investir, ou os que,
em nome de algum ideal, gastam o que não têm e criam entraves ao
trabalho e ao lucro?
Essa escolha determinará nosso futuro, para o nosso bem, ela deve ser
discutida sem partir do pressuposto de que o lado contrário é mau por
natureza.
Uma política séria, madura e democrática (que aceita e respeita a
existência de uma oposição) não demoniza adversários, discute soluções.
Essa evolução –que é também institucional– tem sido combatida ferozmente
pelo governo e por sua tropa de choque intelectual. Felizmente, ninguém
mais acredita no discurso oficial.
O governo responsável por lançar 3 milhões de famílias da classe C para a
classe D segue dizendo que governa para os pobres. Resta à oposição ter
a grandeza e a maturidade que a gestão do PT não teve. Onde vigora o
espírito sectário, devemos cultivar a objetividade. Ou então
reeditaremos o fracasso petista em uma versão verde e amarela.
JOEL PINHEIRO DA FONSECA, 30, é economista, mestre em filosofia e trabalha na comunicação do Partido Novo.