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sábado, 27 de junho de 2020

O Coronavirus e a segurança dos alimentos - Marcos Jank (OESP)

 O Coronavirus e a segurança dos alimentos

Jornal “O Estado de S. Paulo”, Opinião, 26/06/2020.

Marcos S. Jank*
    
Antigo conceito de ‘saúde única’ pode ser o caminho para a alimentação no pós-covid.

Causou grande apreensão no mundo alimentar a decisão do governo chinês, na semana passada, de suspender importações de carnes vindas de frigoríficos dos EUA (Tyson), Alemanha (Tönnies) e Noruega (Royal Salmon), alegando o risco de contaminação do produto pela covid-19.

Autoridades sanitárias de vários países informam que não há evidências científicas e de rastreabilidade que possam comprovar a transmissão do novo coronavírus pelo manuseio ou pela ingestão de alimentos. Mesmo se estiver presente na superfície dos alimentos ou nas embalagens, o vírus tem baixa capacidade de sobrevivência e será facilmente eliminado com a lavagem adequada e o cozimento dos produtos. O maior risco seria a transmissão interpessoal no momento da manipulação de alimentos – por exemplo, na sala de cortes do frigorífico ou nos pontos de venda. 

O ponto focal do novo surto chinês é novamente um mercado de alimentos frescos. O primeiro surto, reconhecido oficialmente, aconteceu em dezembro num mercado tradicional (wet market) da cidade de Wuhan. O novo surto surge agora no mercado de produtores de Xinfandi, em Pequim. Tudo indica que o vírus estava presente no ambiente desse mercado, mas não no interior dos alimentos. 

Autoridades chinesas disseram ter obtido 40 testes positivos de covid-19 para uma variante viral que passou por mutação na Europa, encontrada no ambiente. O vírus foi detectado nas tábuas de madeira utilizadas para filetar salmão importado da Noruega, mas não no filé do pescado. Sabe-se que peixes e animais domésticos como aves, suínos e bovinos não transmitem o vírus.

Apesar disso, o governo chinês decidiu retomar as restrições à circulação de pessoas na capital e intensificou os controles de fronteira nas importações de alimentos. Supermercados retiraram o salmão de suas prateleiras e os frigoríficos estrangeiros citados foram suspensos.

Tais decisões precipitadas viraram um prato cheio para redes sociais sensacionalistas que se alimentam de teorias conspiratórias. Imediatamente elas passaram a sugerir que a contaminação teria vindo do exterior, desviando a culpa em relação a uma segunda onda de origem doméstica. Num mundo cada vez mais dominado pelo medo, pela xenofobia e pelas fake news, não creio que essa novela vá terminar apenas no salmão norueguês.

Saúde humana, sanidade animal e risco de zoonoses serão temas de atenção permanente nos próximos anos. A expressão “segurança do alimento” (food safety, em inglês) fará parte do “novo normal” que virá após a pandemia. A humanidade descobriu a sua inimaginável fragilidade em tempos de globalização, tornando-se refém da falta de respiradores, testes e vacinas, o que vai criar a necessidade de reorganizar a saúde pública global.

Até a chegada desse vírus, os principais vetores de crescimento do setor agroalimentar eram produtividade e sustentabilidade. Basicamente produzir grandes volumes de commodities a preços competitivos, de forma sustentável. Lembrando que sustentabilidade compreende o difícil equilíbrio entre eficiência econômica, preservação ambiental e equidade social, um tema pelo qual o Brasil tem sido muito cobrado.

Acontece que o mundo pós-pandemia será dominado pela combinação de três "S" - Saúde, Sanidade e Sustentabilidade - que nada mais é que a repaginação de um antigo conceito chamado “saúde única”, popular no universo da ecologia e da veterinária.

A primeira tentativa sistemática reconhecida de estabelecer uma relação causal entre humanos, animais e meio ambiente foi feita pelo médico grego Hipócrates, ao redor de 400 a.C., em seu livro "Ares, Águas e Lugares". No final do século 19, ao estudar a relação entre doenças humanas e animais, o patologista alemão Rudolf Virchow criou o termo “zoonose”, afirmando que “entre as medicinas animal e a humana não há linhas divisórias – nem deveria haver”.

A expressão “saúde única” surgiu em 2004, propondo uma abordagem holística e transdisciplinar para lidar com a saúde da humanidade, dos animais e dos ecossistemas. O conceito amplo de saúde única abrange temas como risco de doenças zoonóticas, resistência antimicrobiana, sanidade, segurança do alimento, desmatamento, contaminação ambiental e outras ameaças à saúde, compartilhadas por pessoas, animais e meio ambiente.

No caso específico da sanidade animal, creio que o grande objetivo deveria ser reduzir a imensa heterogeneidade das cadeias alimentares no mundo, por meio da convergência regulatória dos sistemas de defesa sanitária – a refrigeração das cadeias de produtos perecíveis, o controle sanitário efetivo dos mercados tradicionais, o fim do comércio ilegal de animais silvestres, a criação confinada de animais domésticos e a melhoria dos sistemas verticais de integração entre agricultores e indústrias de insumos e processadoras.

O Brasil lidera as exportações mundiais de carne bovina e de aves e ocupa o quarto lugar em carne suína. É hora de assumir e comandar esse debate, evitando atitudes arbitrárias e não científicas, derrubando fake news e propondo uma estrutura sólida da saúde única para o mundo pós-covid.


ESTUDOS
Impactos da Covid-19 no Agronegócio e o Papel do BrasilParte 1 | Cadeias Produtivas e Segurança Alimentar
Parte 2 | Saúde Única, Zoonoses e Segurança do Alimento, que traz uma análise completa do tema do artigo de hoje.

BOLETINS: passamos a divulgar mensalmente o “Boletim Especial Covid-19” com informações e análises sobre o impacto da pandemia de Covid-19 no agronegócio mundial.

LIVRO
China-Brazil Partnership on Agriculture and Food Security, lançado em junho de 2020 pela Esalq-USP e pela China Agricultural University (CAU), com parceria institucional do centro.


sexta-feira, 29 de maio de 2020

Parceria Brasil-China para a segurança alimentar - Marcos S. Jank, Pei Guo, Silvia H. G. Miranda

Segue abaixo artigo publicado no Estadão, em parceria com os professores Pei Guo (CAU) e Silvia Miranda (ESALQ).

O texto sintetiza o livro China-Brazil Partnership on Agriculture and Food Security, que será lançado no dia 3 de junho pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq-USP) e pela China Agricultural University (CAU), por meio de um debate virtual e da disponibilização da versão completa da obra para download gratuito.

Para mais informações: 

Abraço, Marcos

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Parceria Brasil-China para a segurança alimentar

Jornal “O Estado de S. Paulo”, Opinião, 29/05/2020.

Marcos S. Jank*
Pei Guo**
Silvia H. G. de Miranda***

Nos anos 1970 o Brasil e a China, as maiores economias da América Latina e da Ásia, iniciaram reformas que colocaram os dois países entre os quatro maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agropecuários e alimentos.

Em 1978 Deng Xiaoping iniciou reformas que levaram mais de 200 milhões de chineses a deixar a zona rural para trabalharem nas novas manufaturas do país, formando a maior classe média emergente do planeta. Isso permitiu que a agricultura chinesa se modernizasse, incorporando tecnologia, insumos modernos e escala de produção. Ao mesmo tempo, sabiamente o país decidiu se especializar em atividades intensivas em mão de obra, como aquicultura (pescados) e hortifrutigranjeiros, hoje os setores mais dinâmicos da pauta de exportações agrícolas da China. Mais tarde, o impacto da chamada indústria 4.0 sobre as cadeias agroalimentares chinesas ficou evidente, levando digitalização, drones, estufas flexíveis, inteligência artificial, robótica e comércio eletrônico para o campo.

Nesse mesmo período o Brasil descobriu a fórmula para vencer as dificuldades da produção agrícola em regiões tropicais dominadas por solos pobres e pragas abundantes. A solução veio da combinação de tecnologias inovadoras e agricultores capacitados que migraram para os cerrados do Centro-Norte do País, ganhando produtividade e combinando economias de escala (grandes propriedades) e de escopo (duas safras por ano, integração lavoura-pecuária). O Brasil especializou-se em atividades intensivas em terra e capital, a exemplo do complexo integrado de produção de grãos e carnes e da produção eficiente de açúcar, etanol e bioeletricidade de cana-de-açúcar.

As profundas transformações do Brasil e da China se casaram em 2000, quando a demanda explosiva por proteína animal (carnes, pescados e lácteos) da classe média emergente chinesa se encontrou com a imensa oferta de soja do cerrado brasileiro. A soja, uma planta originária da China, é a principal fonte de proteína da alimentação animal.

De 2000 a 2020 as importações chinesas saltaram de 2% para 35% da pauta exportadora do agronegócio brasileiro, tornando a China, de longe, a principal cliente global do Brasil. O agronegócio responde por metade das exportações totais do Brasil para a China.

No sentido inverso, o Brasil tornou-se o principal fornecedor de produtos agropecuários para a China, respondendo por 20% das importações do país asiático e ocupando o primeiro lugar nas importações chinesas de soja, celulose, açúcar, algodão e carnes bovina e avícola.

O comércio do agronegócio decolou entre os dois países, mas muito ainda pode ser feito para ampliá-lo nos dois sentidos, aumentando volumes e diversificando e diferenciando os produtos comercializados. Mas o comércio não é tudo. Há imensas oportunidades para maior cooperação entre os dois países em áreas como investimentos, infraestrutura, sustentabilidade, ciência e inovação.

A China poderia beneficiar-se dos conhecimentos sobre tecnologia tropical brasileira na agropecuária e em bioenergia, principalmente em etanol combustível. O Brasil poderia conectar-se à revolução digital, de drones e do comércio eletrônico da China. O Brasil carece de capital e investimentos na agricultura e de melhorias na infraestrutura de apoio ao setor. Os dois países enfrentam grandes desafios no tema da sustentabilidade: o Brasil, nas questões ligadas a desmatamento ilegal, biodiversidade e uso da terra; a China, em temas como falta de água, degradação de solos, poluição do ar e mau uso de pesticidas.

O tema da sanidade e segurança do alimento tornou-se central neste momento de pandemia global. As cadeias da proteína animal dos dois países poderiam estar mais integradas, com a construção de uma sólida parceria estratégica de longo prazo no setor.

Os temas acima listados fazem parte do livro Parceria Brasil-China para a Agricultura e a Segurança Alimentar (China-Brazil Partnership on Agriculture and Food Security), que será lançado na próxima semana pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq-USP) e pela China Agricultural University(CAU), sob a nossa coordenação.

São 12 capítulos em inglês que trazem análises e perspectivas chinesas e brasileiras de 24 especialistas ligados às duas universidades. O livro analisa a evolução da agricultura e das políticas agrícolas nos dois países, os casos de maior sucesso internacional e uma ampla discussão sobre temas-chave da relação bilateral, como comércio, infraestrutura, investimentos, inovação e sustentabilidade.

O lançamento será feito por meio de um debate virtual organizado pela Esalq no dia 3 de junho às 10 horas, em seguida será posta à disposição a versão eletrônica do livro para download gratuito. Trata-se provavelmente da mais completa obra já produzida sobre as relações Brasil-China no agronegócio.

(**) Pei Guo é professor titular e ex-reitor da Faculdade de Economia e Administração da China Agricultural University (CAU).
(***) Silvia H. G. de Miranda é professora associada e vice-diretora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA) da Esalq-USP.

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Resenha:
Este trecho é parte de conteúdo que pode ser compartilhado utilizando o link https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/05/29/livro-sobre-parceria-entre-brasil-e-china-e-indispensavel.ghtml

Livro:
 
China-Brazil Partnership on Agriculture and Food Security
Editora: Esalq/USP
Organizadores: Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”
da Universidade de São Paulo e China Agricultural University (CAU)
Editores: Marcos Sawaya Jank, Pei Guo e Sílvia Helena Galvão de Miranda
Número de páginas: 428
Idioma: inglês
Ano: 2020

O livro estará disponível para download gratuito a partir das 10h do dia 3 de junho.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Um alerta global para zoonoses e segurança do alimento - Marcos S. Jank

Um alerta global para zoonoses e segurança do alimento

Jornal “O Estado de S. Paulo”, Opinião, 24/04/2020.

Marcos S. Jank*

Brasil deve liderar busca de novos paradigmas de sanidade animal nas cadeias agroalimentares.

A forte relação entre zoonoses, sanidade animal e segurança do alimento será um dos principais temas a serem revistos no mundo pós-pandemia. Zoonoses são doenças causadas por vírus e outros patógenos que contaminam animais, podendo ou não “pular” entre espécies e infectar seres humanos. Exemplos recentes são influenzas, HIV, Ebola, Sars e Mers. O coronavírus é só mais um que atinge humanos. E não será o último.

As primeiras pessoas infectadas pelo coronavírus frequentaram o mesmo mercado de produtos frescos e perecíveis em Wuhan, na China. Trata-se de um típico wet market ou “mercado molhado”, nome que se origina do uso frequente de água ou gelo para conservar produtos perecíveis, além da lavagem do recinto com água para escoar sangue e resíduos.

A maioria dos wet markets não dispõe de refrigeração adequada, daí o nome “molhado”, em vez de resfriado ou congelado, formas que conservam melhor o produto. Mais da metade da venda de alimentos frescos (frutas, verduras, carnes e pescados) nos países em desenvolvimento é feita em mercados desse tipo, onde o controle sanitário costuma ser bastante frouxo.

Muitos deles também oferecem animais domésticos vivos para abate, que ficam presos em gaiolas ou pequenos espaços e são abatidos, eviscerados e cortados no próprio mercado, de acordo com a demanda do cliente.

Não raro tais mercados têm ainda uma seção de “animais silvestres e exóticos” que oferta alguns tipos de roedores, macacos, tatus, tartarugas, sapos, morcegos e cobras, vendidos no mesmo modelo dos animais domésticos. Vale lembrar que mais de 800 milhões de pessoas se alimentam de animais silvestres, principalmente na Ásia e na África, a maioria por razões nutricionais e via autoconsumo, sem aglomerações.

O problema que estamos tratando é a existência de criação ou caça comercial de animais silvestres, que acabam sendo vendidos nos mercados molhados, elevando o risco de transmissão de zoonoses. Em outras palavras, uma parcela dos wet markets oferta animais domésticos e silvestres (vivos ou convertidos em carnes e subprodutos) no mesmo espaço sujo e comprimido em que circulam centenas de pessoas todos os dias. No período que trabalhei na Ásia visitei vários desses mercados de padrão século 19 (ou antes), encaixados em megacidades, ao lado de prédios moderníssimos de padrão século 21. A sensação era a de andar dentro de uma “bomba biológica” de alta periculosidade. Mas nunca imaginei que ela poderia ser tão avassaladora.

Acontece que as cadeias produtivas de alimentos são muito heterogêneas no mundo, seja na propriedade rural, no processamento, na distribuição ou no varejo. Empresas multinacionais que seguem os melhores padrões sanitários globais convivem no mercado com espeluncas que abatem e evisceram animais na frente do consumidor, sem nenhuma fiscalização. Dois pesos e duas medidas na aplicação de leis sanitárias. Régua alta para alguns, baixa para outros.

A solução para esse problema, que está na raiz da epidemia, é o controle sanitário rígido dos wet markets, incluindo coibir a caça comercial ilegal de animais silvestres, além da aplicação efetiva de legislações sanitárias e punição exemplar dos abusos. Mas há outros fatores de mudança, em que o Brasil tem vasta experiência e muito a ensinar. São eles: 1) a criação e manutenção de cadeias frias desde o abate dos animais até a preparação final da comida; e 2) o modelo de “integração vertical” produtor-processador vigente nas cadeias de aves e suínos - indústrias alimentares e cooperativas oferecem animais para engorda, rações, vacinas, medicamentos e assistência técnica plena a seus produtores integrados, melhorando a sanidade e a segurança do alimento.

O Brasil também tem desafios internos a serem vencidos em sanidade animal, tais como a aplicação uniforme da legislação em todo o território nacional e o controle sanitário efetivo das nossas fronteiras. Mas não há a menor dúvida de que estamos muito à frente da grande maioria dos países, particularmente do mundo em desenvolvimento. Não seríamos líderes globais na exportação de carnes bovina, avícola e suína para mais de 150 países se não tivéssemos um sistema sanitário de padrão global, que pode e deve ser melhorado após esta pandemia.

Acredito que o Brasil deveria assumir posição protagônica nos debates sobre sanidade humana e segurança do alimento que certamente vão ser realizados na OMS, na FAO, no G-20 e na Organização Internacional de Epizootias (OIE).

A queda do Muro de Berlim, em 1989, marcou a reorganização política do mundo, com o fim da guerra fria. Em setembro de 2001, o atentado às torres gêmeas de Nova York marcou a reorganização da segurança internacional, com a conscientização sobre os riscos do terrorismo global. O coronavírus marcará a reorganização da sanidade humana, que descobriu sua inimaginável fragilidade ante a globalização. 

Alguns acharão que isso representará uma crise para o agronegócio. Eu prefiro ver como uma oportunidade de valorização e aprimoramento do nosso papel no mundo agroalimentar.