O governo é vítima de seu próprio sucesso?
Por Marcus André Melo
Valor Econômico, 24/06/2013
Analistas das mais diversas matizes buscaram no Egito e na Turquia os modelos para entender a onda de protestos recentes no país. Erraram na geografia e na explicação. A primeira analogia peca por razões óbvias - o contexto social, político e econômico é inteiramente diverso (forte crise econômica; débâcle inesperada de um regime sultanístico). O caso da Turquia é menos óbvio mas não deixa de causar estranheza. Afinal, trata-se de um governo francamente iliberal que vem implementando uma agenda autoritária no plano dos costumes: um problema recorrente desde a década de 20. Há na Turquia em comum com o Brasil pré-2010 um único fator: o dinamismo econômico. No entanto, o modelo mais adequado para entender o caso brasileiro está muito mais perto: é o Chile.
Brasil e Chile são claramente os países de melhor desempenho institucional na região nos últimos 20 anos e, nesse sentido, os protestos aconteceram onde menos se esperava. Isso sugere a imagem de ambos serem vítimas de seu próprio sucesso, devido à elevação de expectativas. Embora contenha um grão de verdade esta explicação é claramente deficiente. Não se trata de elevação mas de reversão de expectativas.
Esgotado o processo acelerado de modernização no Chile, a economia vem se mostrando com produtividade decrescente e poucas perspectivas de expansão. As famílias chilenas gastam mais de 40% de sua renda em educação - o maior percentual dos países da OCDE, por larga margem. Além disso, as expectativas de mobilidade vertical, a partir da educação, têm sido penosamente frustradas a despeito do desemprego de apenas 7-8%. O custo com educação para as famílias cresceu 60% em uma década. No Brasil, os ganhos marginais da inclusão econômica, da expansão do crédito e do boom da demanda externa também esgotaram-se. No plano das famílias, isto se reflete na inadimplência que cresceu 72% entre 2007 e 2013.
Chile e Brasil têm outras coisas em comum: na pesquisa 2013 com 24 países do Latin American Barometer, são os países onde os serviços públicos têm pior avaliação (com a exceção do Haiti e de Trinidad Tobago!). São também os países onde o Judiciário e a mídia têm sido melhor avaliados, nas pesquisas do Global Corruption Barometer(GCB), dentre os países latino-americanos (com exceção do Uruguai). O Chile e o Brasil também aparecem em rankings do IBP, como tendo as instituições de controle externo mais efetivas da América Latina. (mais efetivas do que seus similares na Espanha, França e Itália!). Seus ministérios públicos também aparecem muito bem nos rankings.
O impacto da economia no comportamento político é um dos temas clássicos da ciência política, sobre o que já se escreveram milhares de trabalhos. Os resultados nas democracias maduras são muito robustos: os eleitores votam com o bolso. Mas, nestas democracias, a infraestrutura urbana foi construída há cerca de 100 anos. As variáveis-chave, nestes países, restringem-se à taxa de desemprego e à renda real: daí se utilizar o termo genérico economic vote para designar esta subárea de literatura que trata do comportamento político.
O voto econômico, em países como o Brasil, é um voto que engloba muito mais do que renda e emprego - algo frequentemente esquecido pelos analistas. Ele envolve serviços e infraestrutura pública. No entanto, não se trata apenas de redução absoluta de bem estar - a questão fundamental é o que a literatura denomina privação relativa: a dissonância cognitiva entre o bem estar experimentado e o esperado. Ele pode ocorrer quando tanto as expectativas quanto a capacidade de realizá-las elevam-se, e esta capacidade reduz-se em um segundo momento, abrindo-se, um hiato entre as duas. Isso ocorre quando um boom econômico ocorre e se exaure. Não é a toa que o Chile e o Brasil que apresentam níveis díspares de acesso e de qualidade de serviços públicos - significativamente melhores no Chile - convirjam na avaliação, extremamente, negativa dos serviços públicos. E isto em contexto de níveis históricos de baixo desemprego em ambos países.
Na base dos protestos há, de fato, uma forte reversão de expectativas. Reversão de expectativas e não redução absoluta de bem estar, por um lado, e instituições de controle e mídia razoavelmente efetivas em detectar desmandos (mas não em puni-los), por outro, explicam grande parte da malaise institucional atual. Prima facie o "gigante acordou" como resultado de seu próprio sucesso. Isto seria verdade, se a falta de dinamismo da economia fosse resultado apenas da crise internacional ou desaceleração da China. Mas, como explicar o dinamismo de várias economias na região - vide Colômbia, Peru e México - que supostamente seriam afetadas pelo mesmo ambiente externo desfavorável? As razões da desordem devem ser buscadas nas próprias políticas de governo e no modo de gerenciamento de sua coalizão. Como explicar o declínio relativo da parcela federal no financiamento da atenção à saúde na última década, senão por decisões de política pública? Como explicar o escárnio oficial quanto às reformas institucionais e microeconômicas, preteridas em nome de uma licença para gastar? Ou o ataque contra o Ministério Público? Etc...
Contra o mal estar o governo responde com uma proposta de terapia institucional que exacerba os problemas pois aparece como uma estratégia oportunista de eximir-se da responsabilidade. Fala-se de crise de representação. Se a métrica para dimensionar esta crise for a confiança nas instituições representativas estamos no mesmo barco que as democracias maduras. Se no Brasil o cinismo cívico é elevado - na última pesquisa do GCB (2013), 81% dos cidadãos brasileiros avaliaram os partidos políticos como corruptos ou muito corruptos - ainda estamos abaixo da Espanha (84%), e um pouco acima dos EUA (76%) e França (73%). Que cinismo cívico ou corrupção não se cura com reforma eleitoral, parece ser uma lição que estes países aprenderam, já que ela não está na agenda. Curiosamente esta também tem sido a equivocada terapia proposta no caso chileno.
Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University e do MIT e é colunista convidado do "Valor". Rosângela Bittar volta a escrever agosto
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