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domingo, 11 de outubro de 2020

Elogios a torturador da ditadura brasileira podem criar novas crises diplomáticas - Merval Pereira (O Globo)

A insistência das mais altas autoridades do país em elogiar um TORTURADOR CONDENADO pela Justiça não chocam apenas a consciência moral do país, ela também diminui um pouco mais a já rebaixada imagem do Brasil no exterior, e pode provocar novas fricções com dirigentes estrangeiros. 

Como revelado em matéria de Mariana Sanches, da BBC-Brasil em Washington, o então vice-presidente Joe Biden, em visita ao Brasil, havia entregue ao governo brasileiro documentos esclarecedores sobre a amplidão das torturas e desaparecimentos sob a ditadura militar.

O atual governo brasileiro ENVERGONHA o Brasil no mundo.

Paulo Roberto de Almeida

sábado, 10 de outubro de 2020

Merval Pereira - Crise à vista

- O Globo, 10/10/2020

A insistência com que o vice-presidente Mourão e o presidente Bolsonaro elogiam o coronel Brilhante Ustra pode provocar uma crise diplomática

À medida que fica cada vez mais claro que Joe Biden provavelmente será eleito o próximo presidente dos Estados Unidos, mais problemática fica a prospecção do relacionamento com o Brasil. No momento, a questão ambiental é o principal obstáculo a uma relação equilibrada com os americanos, e o comentário de Biden sobre as queimadas da Amazônia é exemplar dessa dificuldade.  

Mas outro ponto de divergência pode ser a questão das torturas durante a ditadura militar no Brasil. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão insistiu em elogiar o Coronel Brilhante Ustra, único militar condenado por tortura.  

Biden, quando era vice-presidente de Obama, revelou a BBC News, esteve no Brasil para entregar pessoalmente à presidente Dilma documentos sobre torturas e ilegalidades cometidas durante a ditadura militar no Brasil, entre os quais alguns que identificam Ustra como torturador contumaz.  

Segundo a reportagem da BBC News Brasil, um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977, a partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão.  Para Bolsonaro, no entanto, Ustra é “um herói brasileiro” e para Mourão “um homem de honra”.  

O presidente Bolsonaro reagiu à insinuação de Biden de que sérias sanções econômicas serão definidas caso a situação do desmatamento da Amazônia não melhore no Brasil. Nem mesmo a eventual captação, comandada pelos Estados Unidos, de uma verba bilionária para ajudar o combate aos incêndios e ao desmatamento foi considerada boa perspectiva pelo governo brasileiro, que se apressou a dizer que não está à venda, vendo na proposta de Biden a intenção de subjugar, não ajudar.   

O vice-presidente Hamilton Mourão também comanda o Conselho Nacional da Amazônia Legal, e estará no centro de qualquer desavença que surja nessa área ou em outros setores, como o incômodo da nova gestão democrata com ditaduras militares que Bolsonaro e Mourão não se cansam de elogiar.  

Em uma entrevista à Deutsche Welle, o vice-presidente Mourão foi duramente questionado sobre o fracasso do combate às queimadas na Amazônia, sobre a pandemia da Covid-19, que já fez cinco milhões de infectados e quase 150 mil mortes no Brasil e, por fim, sobre os elogios dele e de Bolsonaro ao Coronel Ustra, condenado como torturador.  

Mourão tentou driblar todas as perguntas passando uma visão tranqüilizadora da situação do país, mas não quis escapar da questão sobre as torturas, embora fizesse questão de colocar-se, e ao governo brasileiro, contra a prática: “O que eu posso dizer sobre o homem Carlos Alberto Brilhante Ustra é que ele foi meu oficial comandante durante o final dos anos 70 e ele foi um homem de honra que respeitava os direitos humanos de seus subordinados. Então, muitas das coisas que as pessoas falam dele – posso dizer porque tive amizade muito próxima com ele — não são verdade.”  

Os documentos entregues por Biden foram utilizados na Comissão da Verdade: "Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", disse o então vice-presidente dos Estados Unidos.  A Comissão da Verdade é outro ponto de irritação por parte de Bolsonaro, que nega a validade de suas revelações.

 "Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C.  

Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros”.  

A insistência com que o vice-presidente Mourão e o presidente Bolsonaro elogiam o coronel Brilhante Ustra pode provocar uma crise diplomática semelhante à ocorrida no governo Geisel, quando o democrata Jimmy Carter deu uma guinada na política de Direitos Humanos nos Estados Unidos. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Documentos americanos sobre a repressão violenta da ditadura militar - Mariana Sanches (BBC-Brasil)

 Os 'documentos secretos' levados por Joe Biden ao Brasil que desafiam versão de Bolsonaro sobre ditadura

Em 2014, o então vice-presidente veio ao Brasil e entregou pessoalmente os documentos que contava sobre o período militar. Sua posição sobre a história brasileira diverge da de Bolsonaro.

Se havia alguma dúvida de que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o presidenciável democrata Joe Biden estão em lados políticos opostos, o debate entre Biden e o presidente Trump na última semana tratou de dissipá-las. Na ocasião, Biden, favorito para vencer o pleito de 3 de novembro pelas atuais pesquisas, criticou a devastação da Amazônia e aventou até sanções econômicas ao país.

O meio ambiente, no entanto, está longe de ser o único tema de discordância entre Biden e Bolsonaro. O ex-vice-presidente americano está no centro de uma das empreitadas pelas quais o atual presidente brasileiro mais demonstrou desprezo e resistência: a apuração, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), de crimes e violações cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.

Em 17 de junho de 2014, Biden, o então vice-presidente na gestão Barack Obama, desembarcou em Brasília com um objeto especial na bagagem: um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977. A partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão, os relatórios americanos detalhavam informações sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.

Até aquele momento, a maior parte dos documentos era considerada secreta pelo governo dos Estados Unidos, que apoiou e colaborou com a ditadura durante boa parte do período em que os militares estiveram no poder.

Biden sabia bem do que se tratava. E sabia também que produziria impacto real ao passar a mídia para as mãos da então presidente brasileira Dilma Rousseff, ela mesma uma das oposicionistas torturadas nos porões da ditadura.

É certo que o governo americano poderia ter enviado o material por internet, pela embaixada nos Estados Unidos.

Mas a gestão Obama-Biden queria gravar seu nome no ato de abertura dos documentos, como um manifesto pela transparência e pelos direitos humanos.

Mais do que isso, queria melhorar relações diplomáticas com base na troca de informações altamente relevantes para a história de países como Brasil, Argentina e Chile.

No caso do Brasil, isso era ainda mais estratégico já que a revelação, meses antes, de que a Agência Nacional de Segurança americana (NSA, na sigla em inglês) havia espionado conversas da mandatária brasileira abalou o alicerce das relações entre os dois países.

"Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21 anos, o que é, obviamente, de grande interesse da presidente", afirmou Biden, sorridente, ao lado de Dilma.

Sem ditadura

A própria definição dada por Biden do regime militar é hoje refutada por Bolsonaro, que nega ter havido ditadura no país.

"Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", concluiu Biden.

Cinco anos após esse encontro entre Dilma e Biden, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro desqualificou por completo as revelações feitas pela CNV, das quais os documentos trazidos por Biden são peça fundamental.

"A questão de 64 não existem documentos se matou ou não matou, isso aí é balela, está certo?", disse Bolsonaro.

O presidente respondia à imprensa, que questionava uma declaração sua dada no dia anterior para atingir o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse pra Santa Cruz que poderia esclarecer a ele como seu pai havia desaparecido.

De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, foi visto pela última vez em fevereiro de 1974, quando foi preso no Rio de Janeiro por agentes do DOI-Codi. Oliveira jamais voltou a ser visto. Ele morreu nas mãos dos agentes.

"Comissão da Verdade? Você acredita em Comissão da Verdade?Você quer documento para isso, meu Deus do céu? Documento é quando você casa, quando você se divorcia. Eles têm documento dizendo o contrário?, acrescentou Bolsonaro.

Mas, afinal, o que há nos documentos trazidos por Biden?

"O suspeito é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada por várias horas. Na cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis. Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não coopere. Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram que ele possui informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento físico e mental até confessar."

"Ele é colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três dias. Em todo esse período, ele não recebe comida nem água."

O texto acima é um trecho de um documento de sete páginas enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973, e trazido por Biden em sua visita.

A comunicação diplomática informa que 126 pessoas teriam passado por tratamento parecido ao relatado, além de outras formas de sevícias, como o "pau de arara". O informe é feito não só com base em depoimentos de vítimas, mas de informantes militares, cuja identidade aparece protegida por trechos apagados no documento.

Detalhes

"Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C.

Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo acredita neles. As pessoas que preferem não reconhecer a verdade sobre o que foi feito são os Bolsonaros e aqueles que realmente cometeram esses crimes".

Mas nem sempre Bolsonaro nega que a ditadura tenha cometido violações aos direitos humanos. Em julho de 2016, em uma entrevista à rádio Joven Pan, ele afirmou: "O erro da ditadura foi torturar e não matar".

E dois anos mais tarde, em meados de 2018, quando já estava em pré-campanha presidencial, confrontado com a informação de um relatório da CIA, aberto em 2015 no escopo do mesmo projeto de desclassificação de Biden, que o presidente Ernesto Geisel teria aprovado a execução sumária de adversários do regime, o atual presidente disse à rádio Super Notícia: "Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece."

Tortura e morte

Um dos outros documentos trazidos por Biden evidencia que a máquina repressiva da ditadura brasileira não só torturou como matou. Nele, o cônsul-geral americano em São Paulo, Frederic Chapin, afirma que ouviu o relato de "um informante e interrogador profissional trabalhando para o Centro de Inteligência Militar de Osasco", em São Paulo.

Em um telegrama de maio de 1973, Chapin escreve o seguinte: "Ele (o informante) explicou como havia quebrado uma célula 'comunista' envolvendo um agente da polícia civil. O policial foi forçado a falar depois de ter tomado choques elétricos nos ouvidos e mencionou sua conexão com uma amiga, que foi imediatamente detida. Ela não foi cooperativa, no entanto, então foi deixada no pau-de-arara por 43 horas, sem alimentos ou água."

"Isso a quebrou, nossa fonte contou. Tortura, de uma forma ou de outra, é prática comum em interrogatórios em Osasco. Ele também nos deu um relato em primeira mão do assassinato de um subversivo suspeito, o que chamou de 'costurar' o suspeito, ou seja, dar tiros nele da cabeça aos pés com uma arma automática."

O termo "costurar" seria referência a um método para desfigurar o cadáver e evitar sua futura identificação.

Assassinatos cometidos pela repressão

O cônsul Chapin relata ainda que "vários agentes de segurança nos informaram que suspeitos de terrorismo são mortos como prática padrão. Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos na região de São Paulo no ano passado (1972)".

Ao registrar as mortes em São Paulo, Chapin aponta para a atuação do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista, um dos principais órgãos de repressão do país, entre 1970 e 1974. Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado civilmente pela Justiça pelos crimes de tortura. Ele é também considerado um herói e uma referência por Bolsonaro, que já afirmou ter como livro de cabeceira a obra de Ustra, A verdade sufocada.

"Sou capitão do Exército, conhecia e era amigo do coronel, sou amigo da viúva. (...) o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra recebeu a mais alta comenda do Exército, a Medalha do Pacificador, é um herói brasileiro", afirmou Bolsonaro em 2016.

Enquanto era deputado, no dia da votação da abertura de processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, naquele mesmo ano, Bolsonaro citou o militar em seu voto: "Perderam em 1964, perderam em 2016. (...) Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim".

"Só terroristas"

Outro documento da leva de Biden desafia um argumento central de Bolsonaro sobre o período: o de que o regime militar só prendeu, torturou e matou "terroristas".

Em dezembro de 2008, quando o Ato Institucional número 5, instrumento da ditadura que cassou liberdades individuais, completava 40 anos, o então deputado federal Bolsonaro ocupou o plenário da Câmara para dizer: "Eu louvo os militares que, em 1968, impuseram o AI-5 para conter o terror em nosso País, (...) Mas eu louvo o AI-5 porque, pela segunda vez, colocou um freio naqueles da esquerda que pegavam em armas, sequestravam, torturavam, assassinavam e praticavam atos de terror em nosso País".

Mas em outubro de 1970, o serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS, a unidade de polícia política paulista.

Horth não era um comunista subversivo e afirmou aos diplomatas americanos que "cinco dos seis prisioneiros em suas celas eram absolutamente inocentes da acusação de subversão política".

Outro documento, de dezembro de 1969, dá força ao questionamento sobre os crimes reais dos alvos escolhidos pela repressão ao informar que freiras dominicanas foram presas, humilhadas e torturadas em Ribeirão Preto.

"Mais do que trazer novos fatos, os documentos americanos foram cruciais porque comprovaram muitos fatos a partir de uma fonte insuspeita. Estamos, afinal, falando de relatórios da diplomacia dos Estados Unidos, que não tinham qualquer simpatia pelos oposicionistas de esquerda e que apoiavam os militares", afirmou à BBC News Brasil Pedro Dallari, relator da CNV.

Prova de que o governo americano era, naquele período, abertamente a favor do regime está em uma comunicação do embaixador americano William Rountree de julho de 1972. Na carta, ele alerta ao Departamento de Estado que qualquer tentativa de fazer críticas públicas contra o que qualifica como "excessos" cometidos contra os direitos humanos poderia "prejudicar nossas relações gerais".

CNV

Os documentos americanos tornaram-se especialmente importantes para a CNV diante da negativa das Forças Armadas Brasileiras de oferecer evidências que corroborassem os depoimentos de vítimas de tortura em dependências militares.

"Ao mesmo tempo em que chegavam os documentos americanos, recebíamos retorno dos militares dizendo que suas sindicâncias não localizaram nada", afirma Dallari.

Kornbluh concorda que, enquanto muito da documentação brasileira do período pode já ter se perdido, os arquivos americanos são fonte importante para acessar a história brasileira.

"Parte dos militares brasileiros esconderam com sucesso a maioria de seus próprios documentos e mantiveram isso fora do escrutínio público. E conseguiram escapar de qualquer tipo de responsabilidade legal por seus crimes contra os direitos humanos. E então os documentos americanos fornecem um histórico fidedigno de pelo menos alguns casos. E se as coisas mudarem no Brasil, essas são evidências de crimes que ainda podem ser litigados", afirma o especialista, que menciona a lei da Anistia, de 1979, que impediu a responsabilização criminal de agentes e oposicionistas por crimes cometidos durante a ditadura.

Em 2014, durante os trabalhos da CNV, o Exército brasileiro afirmou que não opinaria sobre o reconhecimento do Estado Brasileiro em relação às torturas, enquanto a Força Aérea e a Marinha disseram não ter provas para reconhecer, tampouco refutar as acusações de violações de direitos humanos nas décadas de 60 e 70.

O que o histórico diz sobre relação Brasil-EUA em possível governo Biden?

Para Dallari, apesar de o golpe de 1964 ter recebido o apoio do governo americano, então sob a batuta do democrata Lyndon Johnson, nas últimas décadas, os democratas deixaram claro ter interesse em colaborar com processos de investigação sobre atrocidades cometidas pelos governos na região e o papel dos Estados Unidos nelas.

"Eu não tenho porque duvidar que Obama e Biden tivessem real interesse em abrir essas informações. E o primeiro presidente americano a se opor a violações dos direitos humanos na região foi outro democrata, o presidente Jimmy Carter", diz ele, em referência ao presidente americano entre 1977 e 1981.

Na verdade, desde a administração Clinton, nos anos 1990, documentos secretos sobre ditaduras latino-americanas têm se tornado públicos. Mas foi na gestão Obama que essa abertura dos arquivos ganhou tons de política de relações exteriores, em algo que Kornbluh batizou de "diplomacia da abertura".

Além do Brasil, Argentina e Chile também receberam acesso a documentos, em um esforço americano para melhorar sua imagem e seu relacionamento na região.

E com Biden e Dilma, o especialista afirma que esse tipo de diplomacia alcançou um de seus pontos mais altos, já que as relações foram reconectadas depois da visita de Biden em 2014.

"Tenho certeza de que ele foi informado sobre o teor dos documentos. E é uma tarefa importante a de carregar esses documentos que descrevem violações graves dos direitos humanos durante a era militar. Certamente foi uma experiência de aprendizado para o vice-presidente Biden e um lembrete pungente para ele dos horrores cometidos", diz Kornbluh.

Em conversas com a BBC News Brasil, conselheiros da campanha de Biden têm dito que o tema dos direitos humanos é central para o candidato, especialmente na América Latina.

Mas embora ainda exista um grande arquivo intocado sobre a história da ditadura do Brasil, especialmente de informações dos órgãos de inteligência como FBI e CIA, é improvável que Biden faça qualquer nova abertura se vencer as eleições.

Isso porque documentos secretos americanos sobre outros países só podem se tornar públicos se os governos dessas nações requisitarem acesso aos americanos. E hoje não há interesse no governo brasileiro por esse tipo de informação.

"Naquele momento, a abertura foi importante e ajudou os dois países a se reaproximarem. Agora, em um possível governo Biden, com Bolsonaro no Brasil, é um contexto completamente diferente. Mas se Bolsonaro cometer violações de direitos humanos, a administração Biden agiria de modo muito mais rápido e negativo do que Trump e pressionaria Bolsonaro a parar", diz Kornbluh.


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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A empulhação americana no caso do açúcar e a sabujice confirmada do chanceler acidental - Mariana Sanches (BBC)

 Os americanos querem enganar os brasileiros? Parece que sim. E quais são os idiotas que querem se deixar enganar? São aqueles que pretendem que os americanos fizeram uma concessão ao Brasil em troca da importação livre de direitos de etanol de milho americano, quando eles NÃO FIZERAM NENHUMA CONCESSÃO, apenas realocaram cotas de açúcar já disponíveis.

MENTIRA, o que qualquer autoridade americana ou brasileira possa dizer sobre esse "acordo" enganoso.

Paulo Roberto de Almeida 

Por que anúncio de Bolsonaro sobre cota de açúcar dos EUA para o Brasil não é vitória diplomática


  • Mariana Sanches - @mariana_sanches
  • Da BBC News Brasil em Washington, 21/09/2020

Depois de uma sequência recente de derrotas diplomáticas para os Estados Unidos no comércio bilateral, o presidente Jair Bolsonaro foi ao Twitter nesta segunda-feira, dia 21, anunciar que os americanos aumentarão a compra de açúcar brasileiro em 80 mil toneladas e, junto com uma foto do chanceler Ernesto Araújo, afirmou que esse é "o primeiro resultado das recém-abertas negociações Brasil-EUA para o setor de açúcar e álcool". 

A manifestação ocorre semanas após o aço brasileiro ter sido cortado em mais de 80% das importações americanas e de o Brasil ter renovado uma isenção de tarifas à entrada de quase 200 milhões de litros de etanol americano no país, o que o setor sucroalcooleiro classificou como "enorme sacrifício". 

Final de Twitter post, 1

De acordo com fontes com conhecimento direto das negociações ouvidas pela BBC News Brasil, o Itamaraty teria tomado as medidas para tentar colaborar com a campanha de reeleição do presidente Donald Trump, que tem entre os operários da siderurgia e os fazendeiros de milho parte de sua base eleitoral. 

Oficialmente, o chanceler Araújo afirmou que a concessão era necessária para abrir negociações que poderiam resultar em uma redução das barreiras tarifárias de 140% que os americanos impõem sobre o açúcar brasileiro há décadas. 

Mas as negociações caíram mal politicamente e geraram críticas de subserviência do país diante de seu aliado preferencial. A tensão ainda aumentou depois que Araújo serviu de cicerone ao secretário de Estado americano Mike Pompeo em uma visita relâmpago à Roraima, na última sexta-feira, quando o americano fez críticas ao regime venezuelano. 

"No geral, há uma percepção de que o Brasil não está sendo tratado de uma maneira justa perante os Estados Unidos, por isso o governo está tentando dar uma publicidade para algo trivial e esperado, para buscar um equilíbrio nessa imagem para o seu público", afirmou reservadamente à BBC News Brasil um embaixador especializado em comércio internacional.

Segundo o diplomata, trata-se de algo "trivial" e "esperado" porque embora o presidente sugira que houve um incremento permanente na quantidade de açúcar que o Brasil poderá exportar aos americanos, o que aconteceu na verdade foi uma realocação temporária de fornecedores feita pelos americanos. 

Os Estados Unidos importam anualmente mais de 3 milhões de toneladas de açúcar - e dão preferência a vendedores da África ou América Central. Mas, caso esses fornecedores habituais não vendam a quantidade necessária e haja um subabastecimento do mercado americano, a Secretaria de Agricultura dos Estados Unidos informa o representante comercial do país que redireciona suas compras para outros produtores, como o Brasil. 

A mesma coisa aconteceu no ano passado e em fevereiro desse ano, sem que Bolsonaro fizesse do fato motivo de comemoração nas redes nessas duas ocasiões.

"Os Estados Unidos não fizeram nenhum favor ao Brasil, apenas realocaram algum volume (de açúcar) ao Brasil, dentro do mercantilismo geral deles. Isso precisa ser esclarecido, para que não pareça uma vitória diplomática que não foi", afirmou o embaixador Paulo Roberto de Almeida.

Pompeo, de máscara, descendo de escada no avião
Legenda da foto, 

Visita de Pompeo a Roraima gerou diversas críticas no mundo político

Mas o momento político atual pode ter levado a essa mudança de postura do presidente. No último fim de semana, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, criticou a visita de Pompeo a Roraima e acusou sua presença de eleitoreira e de afronta à autonomia do país.

"A visita do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, nesta sexta-feira, às instalações da Operação Acolhida, em Roraima, junto à fronteira com a Venezuela, no momento em que faltam apenas 46 dias para a eleição presidencial norte-americana, não condiz com a boa prática diplomática internacional e afronta as tradições de autonomia e altivez de nossas políticas externa e de defesa", afirmou Maia. 

Suas críticas foram endossadas em carta por todos os ex-chanceleres do período democrático: Fernando Henrique Cardoso (governo Itamar Franco), Francisco Rezek (governo Collor), Celso Lafer (governos Collor e FHC), Celso Amorim (governos Itamar Franco e Lula), José Serra e Aloysio Nunes Ferreira (governo Temer).

O clima político ficou tão difícil que nesta segunda-feira senadores chegaram a cogitar o adiamento da sabatina de mais de 20 candidatos brasileiros a embaixadores pelo mundo, que esperam confirmação pela Casa de seus postos. O boicote foi desmobilizado depois que Ernesto Araújo aceitou comparecer ao Senado na próxima quinta-feira para explicar em detalhes a visita de Mike Pompeo.

Duas grandes sacas de açúcar em galpão
Legenda da foto, 

Sacas de açúcar para exportação no Rio Grande do Sul; produtores negaram que medida anunciada por Bolsonaro seja uma vitória

Os principais interessados no anúncio de Bolsonaro, os produtores de açúcar, tampouco consideraram o aumento na cota uma vitória. De acordo com dados da Câmara de Comércio Exterior, nas últimas cinco safras o Brasil exportou em média 25,6 milhões de toneladas de açúcar no total. Nesse universo, as 80 mil toneladas que os Estados Unidos devem comprar agora representam apenas 0,3%. 

Em nota, a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA) e o Fórum Nacional Sucroenergético (FNS) afirmaram que "essa cota adicional de açúcar é consideravelmente inferior à cota mensal de etanol que o Brasil ofereceu novamente aos Estados Unidos em setembro" e reafirmou que a medida não é "uma concessão americana". 

"Devemos esclarecer que se trata de um procedimento normal adotado pelos EUA nos últimos anos, sem representar qualquer avanço estrutural para um maior acesso do açúcar brasileiro àquele país", dizem os produtores na nota.

A BBC News Brasil consultou o Itamaraty a respeito das negociações com os americanos e da cota de açúcar, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Dentro do órgão, auxiliares do ministro afirmam que relações comerciais nesses moldes são normais, mas que fica difícil compreender esses movimentos a partir de um prisma "em que concessões brasileiras representam submissão absoluta do Brasil enquanto que qualquer medida americana é 'prêmio de consolação'". 

Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro operou uma profunda mudança na política internacional brasileira, transformando os Estados Unidos em seu aliado preferencial.

O embaixador especialista em comércio ouvido reservadamente pela BBC News Brasil afirma que cotas e concessões são comuns nas relações internacionais, mas que em ambientes polarizados, onde que esse tipo de transação tem chamado a atenção, tem levado políticos a tentar explorá-los a seu favor. 

"Nesse caso do açúcar, não há o que se falar em vitória diplomática, é uma questão circunstancial. O Itamaraty e o setor produtivo sabem disso. Mas o resto da população, especialmente os apoiadores do presidente, não sabem. E vão se satisfazer com a mensagem dele", afirma.

Sob pressão ambiental pela segunda vez, Bolsonaro dirá na ONU que foi bem na pandemia e que Brasil alimenta o mundo (BBC Brasil)

 Sob pressão ambiental pela segunda vez, Bolsonaro dirá na ONU que foi bem na pandemia e que Brasil alimenta o mundo

Mariana Sanches, BBC Brasil (de Washington), 21/09/2020

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/09/21/sob-pressao-ambiental-pela-segunda-vez-bolsonaro-dira-na-onu-que-foi-bem-na-pandemia-e-que-brasil-alimenta-o-mundo.htm

Bolsonaro grava vídeo em foto de 2019; discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU também será gravado, por conta da pandemia de coronavírus - Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro grava vídeo em foto de 2019; discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU também será gravado, por conta da pandemia de coronavírus Imagem: Marcos Corrêa/PR

Presidente brasileiro enviou discurso gravado para a abertura da Assembleia Geral da ONU, na próxima terça-feira.

Sob intenso escrutínio mundial por seu desempenho na condução do Brasil durante a pandemia de coronavírus e pelas queimadas na Amazônia e no Pantanal, ainda mais intensas do que em 2019, o presidente Jair Bolsonaroabrirá na próxima terça-feira (22/09), a 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.

Em um discurso gravado ainda na semana passada, ele deve defender que o país não só teve um bom desempenho doméstico na crise sanitária como garantiu a segurança alimentar de um bilhão de pessoas ao redor do mundo graças ao agronegócio nacional, alvo real daqueles que criticam a atual gestão ambiental brasileira, segundo a interpretação do governo.

Condução da pandemia

Com mais de 4,5 milhões de infectados e 135 mil mortos por covid-19, o governo brasileiro adotou postura contrária a medidas de isolamento social e ao uso de máscara, recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e advogou por tratamentos à doença sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina.

Mas a recente tendência de queda no número de novos contágios e mortes no país deve dar a Bolsonaro subsídios para argumentar que a situação do Brasil parece sob controle.

Ele também deve dizer que graças à sua resistência em determinar a paralisação das atividades econômicas e ao auxílio-emergencial de R$ 600 mensais recebido por mais de 60 milhões de brasileiros, o chamado "coronavoucher", a economia brasileira seguiu em funcionamento e as perspectivas de recessão do país não são tão severas quanto as de outras nações emergentes, como a Índia.

O impacto do auxílio no bolso de parcela relevante da população é apontado por especialistas como uma das explicações para as taxas de popularidade atuais do presidente, que chegou a estudar meios para tornar permanente ao menos parte do programa.

"Bolsonaro vai defender sua atuação na pandemia e sugerir que as críticas a ela eram mera perseguição política", afirma a professora de relações internacionais Elaini da Silva, da PUC-SP.

Meio ambiente, indígenas e agronegócio

O presidente deve lembrar ainda que, mesmo diante da crise, o Brasil cumpriu um papel pelo qual merece respeito internacional: forneceu alimentos para uma série de países no mundo. O presidente tem dito que se tivesse continuado a fazer demarcações de terra indígena, essa produção não seria possível.

"A ONU queria que nós passássemos de 14% para 20% de território demarcado. Falei-lhes: 'Não'. Nós não podemos sufocar aquilo que nós temos aqui que tem nos garantido a nossa segurança alimentar bem como a de mais de um bilhão de habitantes do mundo", afirmou Bolsonaro em discurso na sexta-feira, 18, em Sinop (MT).

No ano passado, para contrapor acusações de que desrespeitava os direitos dos povos indígenas, Bolsonaro levou ao plenário da Assembleia Geral a jovem liderança indígena Ysani Kalapalo, que hoje se diz decepcionada com o presidente. E em seu discurso, atacou o líder indígena caiapó Raoni Metuktire, a quem acusou de ser manipulado por ONGs e governos estrangeiros com interesses escusos na Amazônia.

Durante a pandemia, a tensão entre governo e os indígenas se intensificou. A Organização Panamericana de Saúde (OPAS), braço da OMS nas Américas, afirmou que as populações nativas têm sido cinco vezes mais atingidas do que a média da população brasileira. E em relatório lançado em agosto, o relator especial da ONU sobre direitos humanos e substâncias e resíduos tóxicos, Baskut Tuncak, afirmou que "no Brasil, as comunidades Yanomami encaram uma crise existencial e sanitária pelo contato com mineradores ilegais".

Bolsonaro deve ainda dizer que as queimadas são processos naturais e que tem acontecido não só no Brasil, como nos Estados Unidos e na África. E que o agronegócio brasileiro é eficiente e não têm responsabilidade pela devastação. Como já fez no discurso na ONU no ano passado, Bolsonaro acusará os críticos de ter motivação protecionista. A pauta ambiental seria apenas uma desculpa para que países europeus fechassem seus mercados para produtos brasileiros.

Há cinco dias, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Dinamarca, Noruega, Países Baixos e Bélgica assinaram uma carta aberta endereçada ao vice presidente Hamilton Mourão em que se dizem "profundamente preocupados" com o desmatamento da Amazônia que "tem crescido em níveis alarmantes".

Quase 20% do Pantanal já foi destruído por incêndios. Já na Amazônia, as queimadas cresceram 12% esse ano. Mourão tem dito que o Brasil reconhece que há um problema, mas que não aceita interpretações "simplistas" do fato. Membros do alto escalão do Itamaraty que conversaram com a BBC News Brasil anteveem ao menos um momento de constrangimento brasileiro no evento.

Os diplomatas esperam ataques diretos ao país durante uma sessão da cúpula de líderes em biodiversidade. O chanceler Ernesto Araújo foi o escalado para rebater, em vídeo de 3 minutos, às possíveis críticas.

Líderes online

Pela primeira vez em seus 75 anos, a ONU não verá os discursos dos chefes de Estado ao vivo e presencialmente em sua sede em Nova York (EUA). Primeiro grande epicentro da pandemia em território americano, Nova York enfrentou um extenso período de quarentena que tem sido relaxado gradualmente.

Ainda assim, a ONU tem mantido boa parte de suas atividades diplomáticas em modo remoto. Apenas votações de resoluções em que não há consenso têm sido feitas por um integrante de cada delegação em plenário — a organização chegou a cogitar a possibilidade de votação online, mas países como a Rússia se opuseram por considerar haver risco de hackeamento.

E embora o presidente americano Donald Trump e ao menos uma dezena de outros líderes estrangeiros tenham expressado interesse de ir pessoalmente fazer o discurso, a organização da Assembleia Geral deixou claro que nenhuma autoridade seria dispensada de cumprir um rígido isolamento de 14 dias antes de poder se apresentar no púlpito, o que desencorajou os mandatários.

Normalmente apinhado de representantes, dessa vez o plenário da ONU terá apenas um representante da delegação fixa de cada país, responsável por apresentar o discurso de seu chefe de Estado antes da entrada do vídeo.

Menos agressividade

Integrantes do Itamaraty acreditam que o discurso do presidente será menos agressivo dessa vez do que no ano passado, quando ele quebrou o protocolo para afrontar nominalmente cidadãos de seu próprio país, como Raoni, e afirmou que sua eleição salvará o Brasil do socialismo. Alguns motivos explicam essa leitura. Naquele momento, poucos meses após a posse, argumentam os diplomatas, Bolsonaro precisava "marcar uma posição", "reposicionar o Brasil".

Agora é diferente. Nos últimos dois meses, o presidente tem adotado uma estratégia de comunicação mais moderada e menos verborrágica em suas falas públicas. Além disso, o próprio fato de o discurso ter sido gravado pressupõe a possibilidade de ensaio e de edição e evita mudanças de tom de último minuto, como aconteceu em 2019.

"Eu apostaria em uma atitude mais defensiva e menos virulenta. Digamos que um repeteco com menos brilho até porque ninguém deve dar muita importância ao discurso dele", afirmou o embaixador Paulo Roberto de Almeida.

Para a professora de relações internacionais Elaini da Silva, as ações de política internacional do governo no último ano, quando o Brasil passou a mostrar um alinhamento ideológico consistente com os Estados Unidos, acabaram por levar a um certo isolamento do país que devem tirar relevância do discurso de Bolsonaro.

"Pode haver até uma certa curiosidade antropológica das outras delegações. Mas tanto pela pandemia quanto pelas queimadas, o Brasil erodiu a autoridade que teria para falar aos outros países a partir de sua experiência, queimou muito 'soft power'", afirma Silva, mencionando um conceito da diplomacia que se refere à capacidade de influência cultural e ideológica de um país sobre os demais.

Trump

O discurso de Bolsonaro pode ser ainda eclipsado pelo de Donald Trump. Concorrendo à reeleição em menos de 50 dias, o republicano não deve desperdiçar a oportunidade de se dirigir diretamente ao eleitorado americano em seu discurso na Assembleia Geral da ONU.

Crítico ao multilateralismo, Trump tem atuado para fragilizar organismos internacionais como a própria ONU e, com mais intensidade, a OMS e a Organização Mundial do Comércio (OMC). No caso da OMS, o governo americano iniciou a retirada formal do país dos quadros da organização e não participa do consórcio de mais de 70 países para o desenvolvimento de uma vacina contra covid-19.

Trump acusa a OMS, a OMC e a própria ONU de terem sido ao menos parcialmente sequestradas pelos interesses chineses. No caso da OMS, o governo americano afirma que a organização foi "leniente"e "corrupta" na maneira como conduziu a crise do coronavírus, protegendo a China, que teria escondido a gravidade do vírus.

Entre diferentes delegações em Nova York existe a tensão de que em seu discurso na Assembleia, Trump possa ameaçar cortar fundos da ONU ou até algum tipo de retirada americana da organização. Essa poderia ser uma jogada política com ressonância em seu eleitorado. Trump afirma ser defensor dos Estados Unidos em primeiro lugar e explora uma certa confusão no público em geral sobre o que são organismos multilaterais e como eles lidam com a China, cuja aversão é hoje prevalente tanto entre republicanos quanto entre democratas.

O presidente americano ainda não definiu se fará seu discurso de forma gravada ou em transmissão online ao vivo.

"Se for ao vivo, as pessoas podem tratar como algo dito no improviso e não levar tão a sério. Mas se ele disser isso em um vídeo gravado, com um roteiro, é muito mais difícil retroceder ou ignorar ", disse Richard Gowan, Diretor do Grupo de Crises Internacionais da ONU ao site americano Político.

É também incerto se em seu próprio discurso Bolsonaro fará alguma menção à tentativa de reeleição de Trump, a qual apoia. Reservadamente, um embaixador brasileiro afirmou que qualquer menção seria totalmente não recomendada, especialmente porque Trump aparece em desvantagem nas pesquisas eleitorais e pode vir a perder para o democrata Joe Biden.

Um comentário sobre preferência por Trump em um evento de alto nível como a Assembleia Geral deixaria o Brasil marcado para estabelecer relacionamento com um novo governo americano, caso Biden vença.

"Mas a gente sabe como o Bolsonaro é. No apoio com o Macri, ele foi até o fim, mesmo quando já estava claro que ele ia perder a presidência argentina", diz o embaixador.