Nelson Rodrigues
inventou o óbvio
Arnaldo Jabor
O Estado de S.Paulo, 22/05/2012
Os 100 anos de Nelson Rodrigues estão sendo celebrados
por muita gente que o criticou em vida e hoje o glorifica. Tanto as
depreciações quanto alguns louvores são descabidos - ele não era nem
pornográfico nem um escritor aspirando à condição de estátua. Nelson adorava
elogios, mas odiava os "medalhões".
NR é importante como inventor de linguagem. A
importância de sua obra está onde ela parece 'não ter' importância. Onde ela é
menos "profunda" - ali é que se encontra uma qualidade rara. Era
fácil (e justo) considerar 'gênios' homens como Guimarães Rosa ou Graciliano,
mas Nelson nunca coube nos pressupostos canônicos. Sua obra é um armazém, um
botequim geral, uma quitanda de Brasil.
Formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de
negros 'plásticos e ornamentais', metido no cotidiano marrom do jornal do pai,
Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa
cara, e que ninguém via.
Uma vez ele me disse: "Se Deus perguntar para mim
se eu fiz alguma coisa que preste na vida, eu responderei a Deus: 'Sim, Senhor,
eu inventei o óbvio!'"
Filho do jornalismo policial, Nelson desconstruía o
pedantismo tão comum entre nossos escritores.
Uma
vez ele me disse ao telefone que o "problema da literatura nacional é que
nenhum escritor sabe bater um escanteio": ensolarada imagem esportiva para
definir literatos folgados. Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza
está justamente na observação dos detritos do cotidiano. A faxina que Nelson
fez no teatro e depois na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia.
Nelson baniu as metáforas a pontapés "como ratazanas grávidas" e
criou antimetáforas feitas de banalidades condensadas. "A poesia está nos
fatos", como escreveu Oswald no Pau Brasil. Pois é, Nelson
também odiava metáforas gosmentas. Suas imagens não aspiravam ao
"sublime". Exemplos: "O torcedor rubro-negro sangra como um
César apunhalado", "a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco
infantil", "seu ódio era tanto que ele dava arrancos de cachorro
atropelado", "a bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao
seu dono", "o juiz correu como um cavalinho de carrossel",
"o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura",
"somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem",
"vivemos amarrados no pé da mesa bebendo água numa cuia de queijo
Palmira", "hoje o brasileiro é inibido até para chupar um Chica
Bon".
Visto por ele, tudo boiava no mistério: os ovos
coloridos de botequim, as falas dos 'barnabés', as moscas de velório no nariz
do morto. Nelson fazia a vida brasileira ficar universal, não por grandes
gestos, mas pelo minimalismo suburbano que ele praticava. E o sublime aparecia
na empada, na sardinha frita ou no torcedor desdentado.
Sua obra é um desfile de tipinhos anônimos,
insignificantes - nisso aparecia sua grandeza desprezada. São prostitutas
bondosas, cafajestes poéticos, canalhas reluzentes, vagabundos épicos,
sobrenaturais de almeida, adúlteras heroicas e veados enforcados. Ele me dizia:
"O que estraga a arte é a unidade..."
Ele dava lições de arte e literatura: "Enquanto o
Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que deixou
de ser tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões, pois a
obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita." Existe coisa mais
'contemporânea'?
Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade
profunda", assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust
era "a épica das irrelevâncias..." E isto é muito saudável, num país
onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade.
Nunca deixava a literatura prevalecer sobre a magia
dos fatos. Sempre um detalhe inesperado caricaturava os dramas. No meio da
tragédia, vinha a gíria; no suicídio - o guaraná com formicida; no assassinato
- a navalhada no botequim; na viuvez - o egoísmo; nos enterros - a piada.
Uma vez, me contou que viu uma família esperando num
hospital a notícia sobre um filho atropelado. Morreu ou não? Afligiam-se todos,
vistos pelo Nelson através do vidro do corredor. Viu o médico chegar e dizer
que o menino tinha morrido. "Eu vi pelo vidro. Não ouvi um som. A família
começou a se contorcer em desespero. Pai, mãe, tios gritavam e, através do
vidro, pareciam dançar. Pareciam dançar um mambo. Daí, eu concluí a verdade
brutal: a grande dor dança mambo!..."
Nelson recusava teorias. Contou-me um episódio
hilário: uma vez o Oduvaldo Viana Filho e Ruy Guerra, grandes artistas, chamaram-no
para escrever um roteiro de filme sobre uma mulher adúltera. Nelson foi
trabalhar com eles, mas desistiu e me disse: "Parei, porque eles queriam
que a adúltera fosse para a cama do amante e traísse o marido movida apenas
pelas 'relações de produção'...."
Ele
intuiu na época que a vulgata do marxismo era o ópio dos intelectuais. Foi
chamado de fascista porque puxava o saco do Médici, para ver se soltava o filho
preso havia anos. Eu mesmo sofri por causa dele; em 1973 ousei filmar Toda
Nudez Será Castigada e dei uma entrevista na Veja em que disse que
"fascismo é amplo: existe fascista de direita e de esquerda também".
Pra quê? Mandaram um manifesto à revista onde me esculhambavam indiretamente,
dizendo que o sucesso imenso que o filme fazia "não era a missão do cinema
novo". Foi das grandes dores que senti, pois até amigos assinaram o
maldito texto, que só não foi publicado porque, um dia antes, os generais
tiraram o filme de cartaz, com soldados de metralhadora, levando as cópias dos
cinemas. Aí, meus amigos comunas tiraram o texto, "para não dar razão ao
inimigo principal", que era a ditadura, a censura. (Eu e Nelson éramos
inimigos secundários, para usar o termo de Mao Tsé-tung). O filme voltou ao
cartaz porque ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim e os generais
ficaram com medo da repercussão e liberaram a exibição.
Se fosse vivo, ao ver os escândalos atuais, repetiria
a frase eterna: "Consciência social de brasileiro é medo da polícia."
E-mail: arnaldo.jabor@estadao.com.br