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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 18 de outubro de 2022

Valores e princípios de Norberto Bobbio, segundo Celso Lafer (OESP)

 A AGENDA DE BOBBIO E O MOMENTO BRASILEIRO!


Celso Lafer professor emérito da faculdade de direito da USP e ex-ministro de relações exteriores
O Estado de S. Paulo, 16/10/2022 

Relevante a ressonância da obra de Bobbio entre nós. Amplamente acessível em português, ocupa espaço próprio na lúcida clarificação da Política e do Direito. Conjuga-se com o papel de Bobbio, que transcende a Itália, de intelectual público voltado para a afirmação da democracia, dos direitos humanos e da paz.

Acaba de ser publicada a edição brasileira de Norberto Bobbio – uma biografia cultural, de Mario Losano, eminente professor emérito italiano de Filosofia e Direito. São características de Losano o admirável escrúpulo da pesquisa e a medida no julgar e apreciar a complexidade das coisas. Foi o que norteou a elaboração desta biografia cultural na qual traçou com precisão cartográfica o mapa de sua abrangente obra e os significativos caminhos de sua vida.

Instigado pelo livro de Losano e pela minha conhecida dedicação a Bobbio, vou elencar alguns dos temas recorrentes de sua agenda que são um pano de fundo relevante para o Brasil nesta antevéspera de segundo turno das eleições presidenciais. Começo pelo fascismo.

Os anos de formação e do início do magistério de Bobbio transcorreram na Itália do fascismo de Mussolini, que ele identificou como um dos paradigmas da era dos extremos do século 20. Foram características dos valores e práticas do regime fascista na análise de Bobbio: a glorificação da violência; a contestação da democracia, do Estado de Direito e da divisão dos Poderes; a afirmação belicosa de um Estado potência no plano internacional; a hiperpersonalização do poder como desdobramento do apreço incontido pelo chefe; o apelo aos ressentidos e desenraizados; a substituição do pensamento pelo primado da ação e do movimento.

A obra de Bobbio é uma contestação às práticas e valores do fascismo e do que representou e representa. Foi nesta linha que afirmou a primazia do governo das leis em contraposição ao governo dos homens.

A forma institucional moderna do governo das leis é o constitucionalismo. Num regime constitucional, governantes e governados atuam sob o império da lei, e o poder dos governantes é regulado por normas jurídicas e deve ser exercido em conformidade com elas. Num Estado de Direito constitucional, a ação política submete-se não apenas aos juízos de eficiência, mas também ao da conformidade com as normas fundamentais da Constituição. A dimensão institucional do constitucionalismo pressupõe a separação dos Poderes e a tutela dos direitos humanos que consagra a vigência da perspectiva dos governados e dos seus direitos políticos e sociais.

Bobbio aprofunda o alcance do governo das leis mediante a formulação das regras do jogo democrático como regras de procedimento para a formação da decisão coletiva. Isso inclui o sufrágio universal em eleições periódicas, a regra de maioria que dela resulta, o respeito aos adversários que podem se tornar maioria, o livre debate das alternativas e a preservação das instituições sob a égide do Estado de Direito.

Bobbio define o governo de democracia, que conta cabeças e não corta cabeças, como aquele que postula visibilidade e transparência do poder, ou seja, o exercício em público do poder comum, pois aquilo que é de interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. Daí a contestação ao segredo: ao poder que oculta as coisas nas arcas do Estado e ao poder que se esconde, escondendo por meio da mentira.

Bobbio analisa os riscos da guerra no mundo contemporâneo que se magnificaram com o inédito poder aniquilador das armas nucleares, ampliadas pelo impacto destruidor que a inovação científicotecnológica confere às armas tidas como convencionais. Explicita que é instável e precária a paz lastreada na balança de uma geopolítica de poder.

Por isso, para Bobbio, a paz não se circunscreve à momentânea ausência de guerra. A paz é um valor e precisa ser construída por um pacifismo ativo. O que anima o pacifismo de Bobbio é um pacifismo de meios e de fins que leva em conta que a violência não é parteira da história, e “está se tornando cada vez mais o seu coveiro”.

Bobbio discute a laicidade e o espírito laico como uma regra de comportamento num Estado Democrático não confessional. O espírito laico contrapõe-se a todas as formas de intolerância, exclusivismos e fanatismos, impeditivos da convivência inerente ao pluralismo da sociedade. A laicidade assegura a plena liberdade religiosa no espaço do privado e da sensibilidade dos fiéis, mas postula que no âmbito do espaço público as alternativas e as opções se dão no mundo dos homens e não provêm da palavra de Deus.

Bobbio fez o elogio da mitezza, palavra que foi traduzida em português por serenidade e em espanhol por temperança. É uma virtude do espírito laico que se corporifica numa postura de respeitar as ideias alheias, de empenhar-se em compreender antes de discutir, de discutir antes de condenar e de ter medida no julgar perante a complexidade das coisas. A temperança se contrapõe à violência. É a virtude que se exige para conter a onipresença atual do ânimo dos extremos.

sábado, 5 de setembro de 2015

A liberdade de destruir a liberdade: o caso do Partido Totalitário (lembrando Norberto Bobbio)

Quando Norberto Bobbio estaria fazendo 100 anos, em 18 de outubro de 2009 (ele morreu cinco anos antes), eu fiz a minha homenagem a ele, selecionando um trecho de um livro de coletânea de obras suas sobre a liberdade, e seus inimigos.
Como temos muitos inimigos da liberdade, em nosso próprio pais, agora mesmo, creio que seria útil transmitir outra vez essa minha postagem de seis anos atrás.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 4 de setembro de 2015

A liberdade de destruir a liberdade: um aviso preventivo vindo do passado
Paulo Roberto de Almeida

Norberto Bobbio, o maior intelectual italiano do século 20, nasceu em Torino no dia 18 de outubro de 1909, e teria, portanto, neste dia 18 de outubro de 2009, exatamente cem anos, o que ele ‘falhou’ em completar em aproximadamente cinco anos, tendo falecido em Torino em 9 de janeiro de 2004. Retomo esses dados da excelente cronologia elaborada sobre sua vida e obra por Marco Revelli, no volume que adquiri recentemente em Veneza tão pronto ele foi publicado:

Norberto Bobbio
Etica e Politica: Scritti di impegno civile
Progetto editoriale e saggio introduttivo di Marco Revelli
(Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2009, 1718 p.; ISBN: 978-04-57314-2)
(Paguei 55 euros, o que representa 3 centavos de euro por página, cada uma bem mais valiosa em sabedoria e conhecimento do que o seu estrito valor monetário)

O volume é uma compilação de seus escritos mais importantes, divididos em cinco partes, começando por sua Autobiografia intellettuale: Compagni e Maestri (seus colegas de colégio, de universidade e de lutas políticas, sobretudo antifascistas e pela liberdade e democracia na Itália republicana do pós-guerra); Valori Politici e Dilemmi Etici (escritos e conferências sobre a ética e a política, sobre a liberdade e a igualdade, sobre a paz e a guerra); Le Forme della Politica (seus textos mais famosos de polêmica: Democrazia e dittatura, Socialismo e comunismo e Destra e sinistra); e, ao final, Congedo (seus escritos da idade senil: De senectute e A me stesso).
O livro é precedido por uma introdução magistral de Marco Revelli (Nel labirinto del Novecento), de uma cronologia e notas a esta edição, do mesmo autor, que também complementa o livro por notas sobre os textos, por uma bibliografia completíssima e por um índice dos nomes (não, infelizmente não existe um índice de ideias, que teria sido um instrumento muito útil ao pesquisador).

O livro é um tesouro de trouvailles (como os textos sobre os amigos, homenagens publicadas em revistas, para nós obscuras, geralmente por ocasião da morte de cada um deles; e Bobbio sobreviveu à maior parte dei suoi compagni), assim como um instrumento poderoso de referências sobre todos os seus trabalhos publicados, aqui apenas selecionados. Bobbio tem, segundo Revelli, 4.803 escritos catalogados, em todas as categorias – livros, artigos, conferências, entrevistas – o que daria 128 volumes, com 944 artigos, 1.452 ensaios, 457 entrevistas, 316 palestras). Ufa!: vai ser preciso alguém tempo para ler tudo, por isso mesmo este volume é um achado.

Na impossibilidade de falar aqui de todos, ou sequer dos mais importantes textos selecionados neste volume, prefiro fazer uma transcrição de um dos escritos compilados por Revelli, que talvez guarde alguma similaridade com a situação política do Brasil atual. Ele foi escrito por Norberto Bobbio em 1969 e fazia parte de uma homenagem prestada ao seu colega de colégio Leone Ginzburg, intelectual de origem russa, judeu, lutador antifascista, assassinado pela Gestapo em Roma, em 1944. No 25o. aniversário de sua morte, Bobbio publicou uma carta numa edição especial, Dialogo con Leone Ginzburg, na revista Resistenza (a. XXXIII, n. 4, aprile 1969), na qual dizia o seguinte (transcrevo o original italiano, e depois tento a minha tradução improvisada):

Oggi, sappiamo che la libertà si può usare per il bene e per il male. Si può usare non per educare ma per corrompere, non per accrescere il proprio patrimonio ideale ma per dilapidarlo, non per rendere gli uomini più saggi e nobili, ma per renderli più ignoranti e volgari. La libertà si può anche sprecare. Si può sprecarla fino al punto di farla apparire inutile, un bene non necessario, anzi dannoso. E a furia di sprecarla, un giorno o l’altro (vicino? lontano?) la perderemo. Ce la toglieranno. Non sappiamo ancora chi: se coloro che abbiamo lasciato prosperare alla nostra destra, o coloro che stanno crescendo tumultuosamente alla nostra sinistra. Abbiamo comunque il sospetto, alimentato da una continua severa lezione durata mezzo secolo, che la differenza non sarà molto grande. (p. cviii-cix)

(tradução não autorizada, e sobretudo não competente, de Paulo R. de Almeida:)
Hoje, sabemos que a liberdade pode ser usada para o bem e para o mal. Ela pode ser usada não para educar, mas para corromper, não para aumentar o próprio patrimônio ideal [mental], mas para dilapidá-lo, não para tornar os homens mais sábios e nobres, mas para torná-los mais ignorantes e vulgares. A liberdade pode inclusive ser desperdiçada. Pode-se desperdiçá-la até o limite de fazê-la parecer inútil, um bem não necessário, aliás prejudicial. E nessa fúria de desperdiçá-la, um dia ou outro (próximo? longínquo?) nós a perderemos. Vão tirá-la de nós. Não sabemos ainda quem: se aqueles que deixamos prosperar à nossa direita, ou aqueles que estão crescendo tumultuosamente à nossa esquerda. Temos de toda forma a suspeita, alimentada por uma contínua e grave lição que perdurou por meio século, que a diferença não será muito grande.

Acredito, pessoalmente, que esta advertência de Bobbio, feita no seguimento das convulsões estudantis que agitaram a Europa, e um pouco todo o mundo, a partir de 1968, com seu cortejo de atos libertários, bastante criatividade e espontaneidade, mas também com muitas exibições de irracionalidade anticapitalista e de comportamentos antidemocráticos – basta dizer que a Revolução Cultural chinesa, um exemplo extremo de irracionalidade obscurantista, era saudada pelos revoltosos de “maio de 1968” como se fosse a libertação final da exploração capitalista e da democracia burguesa –, se aplica inteiramente à conjuntura presente no Brasil, com seu cortejo de ataques velados à liberdade de imprensa, seu festival de banalidades políticas e de irracionalidades econômicas, enfim suas ameaças latentes a uma liberdade duramente conquistada em algumas décadas de lutas democráticas (hoje enganosamente apropriadas por aqueles mesmos que queriam esmagar a liberdade no altar de suas crenças ultrapassadas).
Bobbio nasceu numa Itália pré-fascista, cresceu na crise política do pós-primeira guerra, atravessou todo o período de totalitarismo mussoliniano (tendo inclusive, por razões familiares, flertado com o movimento em sua juventude), se fez homem na luta antifascista dos anos 1930 e 40, participou da construção constitucional da Itália liberada e republicana do pós-segunda guerra, e deu sua imensa contribuição intelectual para os debates do seu tempo: as difíceis escolhas entre liberdade e igualdade, entre democracia representativa e seus simulacros pela via direta ou plebiscitária – um cenário que infelizmente ressurge de maneira irracional na América Latina – e faleceu sem ter visto o sistema político italiano expurgado das pragas da corrupção e do loteamento das instituições estatais por políticos fisiológicos.
A sua Itália era – e é – muito parecida com o Brasil em seus “costumes” políticos. Pena que não ostentemos (ainda?) nenhum Norberto Bobbio entre nós.
Minhas homenagens a Norberto Bobbio em seus ‘100’ anos de vida...

Brasília, 2051: 17.10.2009

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A liberdade de destruir a liberdade: um aviso preventivo de Norberto Bobbio

Elaborei o texto abaixo em 2009, quando Norberto Bobbio estaria completando 100 anos, como uma espécie de homenagem a ele.
Poderia ter escolhido outro trecho ou passagem de sua obra, mas escolhi essa deliberadamente porque já naquele entonces eu temia pelas liberdades no Brasil.
Agora então, nem falar.
Segue o repeteco, pois a advertência continua mais válida do que nunca...
Paulo Roberto de Almeida


A liberdade de destruir a liberdade: um aviso preventivo vindo do passado
Minha homenagem a Norberto Bobbio nos seus 100 anos de nascimento

Paulo Roberto de Almeida

Norberto Bobbio, o maior intelectual italiano do século 20, nasceu em Torino no dia 18 de outubro de 1909, e teria, portanto, neste dia 18 de outubro de 2009, exatamente cem anos, o que ele ‘falhou’ em completar em aproximadamente cinco anos, tendo falecido em Torino em 9 de janeiro de 2004. Retomo esses dados da excelente cronologia elaborada sobre sua vida e obra por Marco Revelli, no volume que adquiri recentemente em Veneza tão pronto ele foi publicado:

Norberto Bobbio
Etica e Politica: Scritti di impegno civile
Progetto editoriale e saggio introduttivo di Marco Revelli
(Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2009, 1718 p.; ISBN: 978-04-57314-2)
(Paguei 55 euros, o que representa 3 centavos de euro por página, cada uma bem mais valiosa em sabedoria e conhecimento do que o seu estrito valor monetário)

O volume é uma compilação de seus escritos mais importantes, divididos em cinco partes, começando por sua Autobiografia intellettuale: Compagni e Maestri (seus colegas de colégio, de universidade e de lutas políticas, sobretudo antifascistas e pela liberdade e democracia na Itália republicana do pós-guerra); Valori Politici e Dilemmi Etici (escritos e conferências sobre a ética e a política, sobre a liberdade e a igualdade, sobre a paz e a guerra); Le Forme della Politica (seus textos mais famosos de polêmica: Democrazia e dittatura, Socialismo e comunismo e Destra e sinistra); e, ao final, Congedo (seus escritos da idade senil: De senectute e A me stesso).
O livro é precedido por uma introdução magistral de Marco Revelli (Nel labirinto del Novecento), de uma cronologia e notas a esta edição, do mesmo autor, que também complementa o livro por notas sobre os textos, por uma bibliografia completíssima e por um índice dos nomes (não, infelizmente não existe um índice de ideias, que teria sido um instrumento muito útil ao pesquisador).

O livro é um tesouro de trouvailles (como os textos sobre os amigos, homenagens publicadas em revistas, para nós obscuras, geralmente por ocasião da morte de cada um deles; e Bobbio sobreviveu à maior parte dei suoi compagni), assim como um instrumento poderoso de referências sobre todos os seus trabalhos publicados, aqui apenas selecionados. Bobbio tem, segundo Revelli, 4.803 escritos catalogados, em todas as categorias – livros, artigos, conferências, entrevistas – o que daria 128 volumes, com 944 artigos, 1.452 ensaios, 457 entrevistas, 316 palestras). Ufa!: vai ser preciso algum tempo para ler tudo, por isso mesmo este volume é um achado.

Na impossibilidade de falar aqui de todos, ou sequer dos mais importantes textos selecionados neste volume, prefiro fazer uma transcrição de um dos escritos compilados por Revelli, que talvez guarde alguma similaridade com a situação política do Brasil atual. Ele foi escrito por Norberto Bobbio em 1969 e fazia parte de uma homenagem prestada ao seu colega de colégio Leone Ginzburg, intelectual de origem russa, judeu, lutador antifascista, assassinado pela Gestapo em Roma, em 1944. No 25o. aniversário de sua morte, Bobbio publicou uma carta numa edição especial, Dialogo con Leone Ginzburg, na revista Resistenza (a. XXXIII, n. 4, aprile 1969), na qual dizia o seguinte (transcrevo o original italiano, e depois tento a minha tradução improvisada):

Oggi, sappiamo che la libertà si può usare per il bene e per il male. Si può usare non per educare ma per corrompere, non per accrescere il proprio patrimonio ideale ma per dilapidarlo, non per rendere gli uomini più saggi e nobili, ma per renderli più ignoranti e volgari. La libertà si può anche sprecare. Si può sprecarla fino al punto di farla apparire inutile, un bene non necessario, anzi dannoso. E a furia di sprecarla, un giorno o l’altro (vicino? lontano?) la perderemo. Ce la toglieranno. Non sappiamo ancora chi: se coloro che abbiamo lasciato prosperare alla nostra destra, o coloro che stanno crescendo tumultuosamente alla nostra sinistra. Abbiamo comunque il sospetto, alimentato da una continua severa lezione durata mezzo secolo, che la differenza non sarà molto grande. (p. cviii-cix)

(tradução não autorizada, e sobretudo não competente, de Paulo R. de Almeida:)
Hoje, sabemos que a liberdade pode ser usada para o bem e para o mal. Ela pode ser usada não para educar, mas para corromper, não para aumentar o próprio patrimônio ideal [mental], mas para dilapidá-lo, não para tornar os homens mais sábios e nobres, mas para torná-los mais ignorantes e vulgares. A liberdade pode inclusive ser desperdiçada. Pode-se desperdiçá-la até o limite de fazê-la parecer inútil, um bem não necessário, aliás prejudicial. E nessa fúria de desperdiçá-la, um dia ou outro (próximo? longínquo?) nós a perderemos. Vão tirá-la de nós. Não sabemos ainda quem: se aqueles que deixamos prosperar à nossa direita, ou aqueles que estão crescendo tumultuosamente à nossa esquerda. Temos de toda forma a suspeita, alimentada por uma contínua e grave lição que perdurou por meio século, que a diferença não será muito grande.

Acredito, pessoalmente, que esta advertência de Bobbio, feita no seguimento das convulsões estudantis que agitaram a Europa, e um pouco todo o mundo, a partir de 1968, com seu cortejo de atos libertários, bastante criatividade e espontaneidade, mas também com muitas exibições de irracionalidade anticapitalista e de comportamentos antidemocráticos – basta dizer que a Revolução Cultural chinesa, um exemplo extremo de irracionalidade obscurantista, era saudada pelos revoltosos de “maio de 1968” como se fosse a libertação final da exploração capitalista e da democracia burguesa –, se aplica inteiramente à conjuntura presente no Brasil, com seu cortejo de ataques velados à liberdade de imprensa, seu festival de banalidades políticas e de irracionalidades econômicas, enfim suas ameaças latentes a uma liberdade duramente conquistada em algumas décadas de lutas democráticas (hoje enganosamente apropriadas por aqueles mesmos que queriam esmagar a liberdade no altar de suas crenças ultrapassadas).
Bobbio nasceu numa Itália pré-fascista, cresceu na crise política do pós-primeira guerra, atravessou todo o período de totalitarismo mussoliniano (tendo inclusive, por razões familiares, flertado com o movimento em sua juventude), se fez homem na luta antifascista dos anos 1930 e 40, participou da construção constitucional da Itália liberada e republicana do pós-segunda guerra, e deu sua imensa contribuição intelectual para os debates do seu tempo: as difíceis escolhas entre liberdade e igualdade, entre democracia representativa e seus simulacros pela via direta ou plebiscitária – um cenário que infelizmente ressurge de maneira irracional na América Latina – e faleceu sem ter visto o sistema político italiano expurgado das pragas da corrupção e do loteamento das instituições estatais por políticos fisiológicos.
A sua Itália era – e é – muito parecida com o Brasil em seus “costumes” políticos. Pena que não ostentemos (ainda?) nenhum Norberto Bobbio entre nós.
Minhas homenagens a Norberto Bobbio em seus ‘100’ anos de vida...

Brasília, 2051: 17.10.2009

sábado, 1 de novembro de 2014

Noberto Bobbio sobre a liberdade de destruir a liberdade - Paulo Roberto de Almeida

Um texto meu de 2009, mas totalmente apropriado ao Brasil dos dias que correm.


A liberdade de destruir a liberdade: um aviso preventivo vindo do passado
Minha homenagem a Norberto Bobbio nos seus 100 anos de nascimento

Paulo Roberto de Almeida

Norberto Bobbio, o maior intelectual italiano do século 20, nasceu em Torino no dia 18 de outubro de 1909, e teria, portanto, neste dia 18 de outubro de 2009, exatamente cem anos, o que ele ‘falhou’ em completar em aproximadamente cinco anos, tendo falecido em Torino em 9 de janeiro de 2004. Retomo esses dados da excelente cronologia elaborada sobre sua vida e obra por Marco Revelli, no volume que adquiri recentemente em Veneza tão pronto ele foi publicado: 
 
Norberto Bobbio
Etica e Politica: Scritti di impegno civile
Progetto editoriale e saggio introduttivo di Marco Revelli
(Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2009, 1718 p.; ISBN: 978-04-57314-2)
(Paguei 55 euros, o que representa 3 centavos de euro por página, cada uma bem mais valiosa em sabedoria e conhecimento do que o seu estrito valor monetário)

O volume é uma compilação de seus escritos mais importantes, divididos em cinco partes, começando por sua Autobiografia intellettuale: Compagni e Maestri (seus colegas de colégio, de universidade e de lutas políticas, sobretudo antifascistas e pela liberdade e democracia na Itália republicana do pós-guerra); Valori Politici e Dilemmi Etici (escritos e conferências sobre a ética e a política, sobre a liberdade e a igualdade, sobre a paz e a guerra); Le Forme della Politica (seus textos mais famosos de polêmica: Democrazia e dittatura, Socialismo e comunismo e Destra e sinistra); e, ao final, Congedo (seus escritos da idade senil: De senectute e A me stesso).
O livro é precedido por uma introdução magistral de Marco Revelli (Nel labirinto del Novecento), de uma cronologia e notas a esta edição, do mesmo autor, que também complementa o livro por notas sobre os textos, por uma bibliografia completíssima e por um índice dos nomes (não, infelizmente não existe um índice de ideias, que teria sido um instrumento muito útil ao pesquisador).

O livro é um tesouro de trouvailles (como os textos sobre os amigos, homenagens publicadas em revistas, para nós obscuras, geralmente por ocasião da morte de cada um deles; e Bobbio sobreviveu à maior parte dei suoi compagni), assim como um instrumento poderoso de referências sobre todos os seus trabalhos publicados, aqui apenas selecionados. Bobbio tem, segundo Revelli, 4.803 escritos catalogados, em todas as categorias – livros, artigos, conferências, entrevistas – o que daria 128 volumes, com 944 artigos, 1.452 ensaios, 457 entrevistas, 316 palestras). Ufa!: vai ser preciso algum tempo para ler tudo, por isso mesmo este volume é um achado.

Na impossibilidade de falar aqui de todos, ou sequer dos mais importantes textos selecionados neste volume, prefiro fazer uma transcrição de um dos escritos compilados por Revelli, que talvez guarde alguma similaridade com a situação política do Brasil atual. Ele foi escrito por Norberto Bobbio em 1969 e fazia parte de uma homenagem prestada ao seu colega de colégio Leone Ginzburg, intelectual de origem russa, judeu, lutador antifascista, assassinado pela Gestapo em Roma, em 1944. No 25o. aniversário de sua morte, Bobbio publicou uma carta numa edição especial, Dialogo con Leone Ginzburg, na revista Resistenza (a. XXXIII, n. 4, aprile 1969), na qual dizia o seguinte (transcrevo o original italiano, e depois tento a minha tradução improvisada):

Oggi, sappiamo che la libertà si può usare per il bene e per il male. Si può usare non per educare ma per corrompere, non per accrescere il proprio patrimonio ideale ma per dilapidarlo, non per rendere gli uomini più saggi e nobili, ma per renderli più ignoranti e volgari. La libertà si può anche sprecare. Si può sprecarla fino al punto di farla apparire inutile, un bene non necessario, anzi dannoso. E a furia di sprecarla, un giorno o l’altro (vicino? lontano?) la perderemo. Ce la toglieranno. Non sappiamo ancora chi: se coloro che abbiamo lasciato prosperare alla nostra destra, o coloro che stanno crescendo tumultuosamente alla nostra sinistra. Abbiamo comunque il sospetto, alimentato da una continua severa lezione durata mezzo secolo, che la differenza non sarà molto grande. (p. cviii-cix)

(tradução não autorizada, e sobretudo não competente, de Paulo R. de Almeida:)
Hoje, sabemos que a liberdade pode ser usada para o bem e para o mal. Ela pode ser usada não para educar, mas para corromper, não para aumentar o próprio patrimônio ideal [mental], mas para dilapidá-lo, não para tornar os homens mais sábios e nobres, mas para torná-los mais ignorantes e vulgares. A liberdade pode inclusive ser desperdiçada. Pode-se desperdiçá-la até o limite de fazê-la parecer inútil, um bem não necessário, aliás prejudicial. E nessa fúria de desperdiçá-la, um dia ou outro (próximo? longínquo?) nós a perderemos. Vão tirá-la de nós. Não sabemos ainda quem: se aqueles que deixamos prosperar à nossa direita, ou aqueles que estão crescendo tumultuosamente à nossa esquerda. Temos de toda forma a suspeita, alimentada por uma contínua e grave lição que perdurou por meio século, que a diferença não será muito grande.

Acredito, pessoalmente, que esta advertência de Bobbio, feita no seguimento das convulsões estudantis que agitaram a Europa, e um pouco todo o mundo, a partir de 1968, com seu cortejo de atos libertários, bastante criatividade e espontaneidade, mas também com muitas exibições de irracionalidade anticapitalista e de comportamentos antidemocráticos – basta dizer que a Revolução Cultural chinesa, um exemplo extremo de irracionalidade obscurantista, era saudada pelos revoltosos de “maio de 1968” como se fosse a libertação final da exploração capitalista e da democracia burguesa –, se aplica inteiramente à conjuntura presente no Brasil, com seu cortejo de ataques velados à liberdade de imprensa, seu festival de banalidades políticas e de irracionalidades econômicas, enfim suas ameaças latentes a uma liberdade duramente conquistada em algumas décadas de lutas democráticas (hoje enganosamente apropriadas por aqueles mesmos que queriam esmagar a liberdade no altar de suas crenças ultrapassadas).
Bobbio nasceu numa Itália pré-fascista, cresceu na crise política do pós-primeira guerra, atravessou todo o período de totalitarismo mussoliniano (tendo inclusive, por razões familiares, flertado com o movimento em sua juventude), se fez homem na luta antifascista dos anos 1930 e 40, participou da construção constitucional da Itália liberada e republicana do pós-segunda guerra, e deu sua imensa contribuição intelectual para os debates do seu tempo: as difíceis escolhas entre liberdade e igualdade, entre democracia representativa e seus simulacros pela via direta ou plebiscitária – um cenário que infelizmente ressurge de maneira irracional na América Latina – e faleceu sem ter visto o sistema político italiano expurgado das pragas da corrupção e do loteamento das instituições estatais por políticos fisiológicos.
A sua Itália era – e é – muito parecida com o Brasil em seus “costumes” políticos. Pena que não ostentemos (ainda?) nenhum Norberto Bobbio entre nós.
Minhas homenagens a Norberto Bobbio em seus ‘100’ anos de vida...

Brasília, 2051: 17.10.2009

sábado, 10 de agosto de 2013

Celso Lafer publica livro sobre Norberto Bobbio, o liberal-socialista

É uma honra para a Editora Perspectiva convidá-lo para o lançamento do livro de Celso Lafer: Norberto Bobbio: Trajetória e Obra.


Atenciosamente,
EdPersp [P021]
Av. Brigadeiro Luís Antonio, 3025 - Jd. Paulista - São Paulo - SP - Brasil - CEP- 01401-000  - Fonefax: (11)3885-8388 - www.editoraperspectiva.com.br



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Celso Lafer (São Paulo, 1941), professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP foi, até sua aposentadoria em 2011, professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, na qual estudou (1960-1964) e na qual lecionou (desde 1971) Direito Internacional e Filosofia do Direito. Obteve o seu MA (1967) e o seu PhD (1970) em Ciência Política na Universidade de Cornell, EUA, e a livre-docência em Direito Internacional Público (1977) e a titularidade em Filosofia do Direito (1988), ambas na Faculdade de Direito da USP. Com destacada atuação político-diplomática, foi ministro de Estado das Relações Exteriores em duas ocasiões (1992 e 2001-2002) e também ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (1999). Atuou como embaixador, chefe da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas e à OMC – Organização Mundial do Comércio em Genebra (1995-1998), entidade na qual presidiu o Órgão de Solução de Controvérsias (1996) e seu Conselho Geral (1997). Ainda na OMC, presidiu os painéis: “India: Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textiles and Industrial Products” (1998) e “United States: Measures Affecting Imports of Certain Passenger Vehicle and Light Truck Tires from China” (2010). É, desde 2007, presidente da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Preside, ainda, o Conselho Deliberativo do Museu Lasar Segall e o Conselho Editorial da revista Política Externa, da qual foi coeditor, com Gilberto Dupas (2000-2008). Doutor honoris causa da Universidade de Buenos Aires (2001), da Universidade Nacional de Córdoba, (2002) e da Universidade Nacional Tres de Febrero (2011), da Argentina, e da Universidade Jean Moulin Lyon 3 (2012), da França. É Honorary Fellow da Universidade Hebraica de Jerusalém (2006). Recebeu o prêmio Moinho Santista da Fundação Bunge na área de Relações Internacionais (2001) e a medalha Armando Salles de Oliveira por serviços prestados à valorização da USP. É membro titular da Academia Brasileira de Ciências (eleito em 2004). Ensaísta consagrado, recebeu o prêmio Jabuti em 1989, por A Reconstrução dos Direitos Humanos (Companhia das Letras, 1988). Pela Perspectiva, publicou, entre outros,Comércio e Relações Exteriores (1977), Ensaios Sobre a Liberdade (1980), O Brasil e a Crise Mundial: Paz, Poder e Política Externa (1984) e A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira (2004). Em 21 de julho de 2006, foi eleito o quinto ocupante da cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras.