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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A questao da lideranca do Brasil na America do Sul - Reinaldo Alencar Domingues

Raramente, ou nunca, coloco textos já publicados no Mundorama neste blog, pela simples razão de que representaria duplicar um site que já é conhecido suficientemente dos leitores deste blog, que são também, em grande medida, estudiosos de RI e, portanto, conhecedores dos recursos desse campo.
Mas em certos casos, a duplicação se justifica, como neste caso.
Paulo Roberto de Almeida 



A Aspiração de Liderança Brasileira na América do Sul no Governo Lula 

Reinaldo Alencar Domingues

 
 
 
 
 
 
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            O tema da liderança brasileira na América do Sul tem alcançado grande importância nos debates sobre política externa. No governo Lula, a questão ganhou maior destaque ao gerar uma polêmica no início de seu mandato e por permear indiretamente a visão ampla de inserção regional e internacional do país. A compreensão do papel do Brasil na América do Sul e no mundo depende intimamente da autopercepção das grandezas e limitações do país.[1]
            Percebe-se um vínculo entre a identidade internacional do Brasil e as noções de liderança desenvolvidas ao longo da história. O país assumiu consecutivamente diversas identidades: passou progressivamente da ideia de país americano para a de latino-americano e, em seguida, para a atual concepção de país sul-americano (COUTO, 2009). Em cada um dos momentos, a compreensão do papel do Brasil e as suas concepções de liderança variaram. Sob a gestão do Barão do Rio Branco, o Estado brasileiro adotou a identidade de país americano e o papel de subliderança regional ao aceitar a preeminência norte-americana no continente, ampliando sua margem de ação na vizinhança.
Com a Política Externa Independente (PEI), na década de 1960, o Brasil assumiu a identidade de país latino-americano em desenvolvimento, buscando se destacar como uma das principais vozes no movimento terceiro-mundista. A noção de liderança concebida foi de uma liderança temática – sob o signo do desenvolvimento – e que matinha um apelo de ser um movimento conjunto e mutualmente benéfico a todos.
A partir do governo de Itamar Franco e, em especial, no mandato de Fernando Henrique Cardoso a identidade sul-americana do Brasil estava em construção. Durante a gestão de FHC, a concepção de liderança desenvolvida entendia que esta se daria como consequência natural da proeminência econômica, atribuindo à região uma função diferente da conferida no mandato seguinte.
O governo Lula desenvolveu uma noção própria de liderança, inserindo-a junto à estratégia ampla de autonomia pela diversificação (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007). Segundo esta, a América do Sul assumiria um papel central nas relações do Brasil com o mundo ao ampliar o poder de barganha e de voz do país no cenário internacional. A concepção apresentada pelo presidente abrangeu diversos valores que permearam a ação externa brasileira no período. O caráter não-hegemônico da liderança, a solidariedade e generosidade, e a ênfase nos objetivos comuns da região nortearam as relações do Brasil com seu entorno geográfico.
Apesar dos governos de FHC e Lula partirem de uma ideia semelhante da identidade internacional do Brasil – reconhecendo-o como país sul-americano –, desenvolveram noções distintas de liderança. Esta divergência sugere que, apesar da relação entre as duas variáveis, a percepção e os valores dos formuladores políticos também influenciam a noção de liderança desenvolvida pelo país.
Ao investigar os elementos de poder do Brasil, lançando um olhar sobre o ambiente doméstico do país e colocando-o em perspectiva com o continente, constatam-se duas assimetrias. A primeira refere-se à crescente assimetria entre Brasil e os demais países sul-americanos, ressaltando as potencialidades de uma liderança brasileira. A segunda representa a enorme assimetria entre a América do Sul (o Brasil, inclusive) e os Estados Unidos, destacando as limitações de uma aspiração de liderança brasileira mais ampla e a necessidade de lidar com a presença norte-americana no continente.
A liderança depende, ademais, de vontade e de mobilização em torno da decisão de liderar (DANESE, 2009). Nesse sentido, a ambição maior de um projeto de liderança mundial dos Estados Unidos e a ausência de ameaças críveis na região retiram dos norte-americanos a motivação ou ambição de exercer uma liderança continental. De outro lado, o Brasil atribui à região uma grande relevância, colocando-a entre suas principais prioridades de política externa (SOUZA, 2009).
Nesse contexto, admite-se também a importância das relações entre Brasil e Estados Unidos e suas implicações para a aspiração de liderança brasileira na América do Sul. A política externa norte-americana passou por grandes mudanças na primeira década do século XXI. Abandonou aos poucos a orientação unilateralista da gestão de George W. Bush, para uma orientação mais multilateralista ao aproximar-se do final da década. A crescente indisposição dos Estados Unidos de pagar pelos bens públicos globais (MANDELBAUM, 2002), somada ao endividamento progressivo do país com as duas guerras no Oriente Médio, a crise financeira de 2008 e o caráter transnacional de muitas ameaças em um ambiente internacional globalizado, tornou o cenário favorável ao surgimento de novos atores relevantes internacionalmente.
Apesar disso, a relação entre Brasil e Estados Unidos foi marcada por muitos desacordos ao longo da década. Os desentendimentos estiveram geralmente relacionados a duas questões: a falta de compreensão da tradição de autonomia da política externa brasileira por parte dos EUA e o receio do Brasil referente ao gigante norte-americano. Estes fatores minaram, por vezes, as oportunidades de aproximação entre os dois países. Muitos autores sugeriram enfaticamente os benefícios de uma maior aproximação e coordenação de ambos. Porém, os obstáculos ainda não foram totalmente superados.
A ausência de um projeto claro dos Estados Unidos para a América do Sul, fundamentado em uma agenda mínima relacionada ao narcotráfico, questões energéticas e a estabilidade regional, permitiu que a diplomacia brasileira atuasse com maior liberdade na região.
Porém, a aspiração de liderança brasileira na América do Sul encontra outros obstáculos. Internamente, as mazelas de um país ainda em desenvolvimento geram margem para contestação e dificultam a criação de um consenso interno da decisão de liderar, encontrando maior resistência à mobilização de recursos. Externamente, as suspeitas de um projeto subimperialista brasileiro e os problemas internos do país criam resistência à aspiração nacional e mitigam sua legitimidade.
Em análise dos instrumentos utilizados pelo Brasil na busca pelo exercício da liderança, constata-se que o país procurou exercer uma liderança branda (soft leadership). Destacam-se entre os principais meios do exercício da liderança brasileira, tanto a nível político quanto econômico, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Fundo para Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) – muitas vezes por meio de empresas nacionais.
As interpretações relativas aos investimentos brasileiros na região foram distintas. De um lado, os formuladores políticos do governo Lula os interpretaram como um exemplo claro do comprometimento do país com o desenvolvimento da região e com a superação de assimetrias (AMORIM, 2010). De outro, os países vizinhos muitas vezes os interpretaram como pífios e insuficientes (SORJ; FAUSTO, 2011). No nível doméstico, há parcelas da população que consideram os investimentos desnecessários e até mesmo imorais ante a miséria encontrada no próprio país. Apesar dos desafios e das críticas, deve-se reconhecer as iniciativas brasileiras que não são de maneira alguma irrelevantes. A criação da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-Americano são algumas das importantes iniciativas que foram impulsionadas fortemente pelos esforços brasileiros, cooperando para a construção de uma imagem de liderança conforme a noção desenvolvida pelo governo Lula.
 Como gerenciador de crises na região, a postura do Brasil foi relativamente inconstante. Em casos como o da nacionalização do gás boliviano e da renegociação do Tratado de Itaipu, a diplomacia brasileira agiu – ao menos aparentemente – com certa condescendência com os países que confrontaram seus interesses em nome da generosidade e solidariedade com os mais fracos, reforçando a cordialidade oficial com os vizinhos, para citar a expressão de Cervo (2008). No caso das papeleras, o Itamaraty adotou uma postura reticente, se eximindo do papel de mediador a fim de evitar uma confrontação direta que poderia afetar sua relação com a Argentina, enquanto na crise Colômbia-Equador, agiu com certa discrição, descartando a possibilidade do desentendimento escalar para um conflito armado.
Ao final do período, o crescimento brasileiro resultou em um papel mais relevante no mundo e na preeminência na região. O novo lugar alcançado pelo Brasil no mundo tem gerado dúvidas sobre qual deve ser a orientação da política externa brasileira. A relativa estagnação do processo de integração regional e os problemas políticos enfrentados pelo eixo Brasil-Argentina (apesar do comércio dos dois países ter chegado a US$ 30 bilhões em 2010, com previsões de ultrapassar US$40 bilhões em 2011) têm levado alguns a questionar a estratégia de buscar o aprofundamento do Mercosul, sugerindo que o Brasil já alcançou peso suficiente para buscar sozinho seus interesses. Porém, a oposição entre orientações global e regional não parece totalmente rígida. Estas podem ser, por vezes, complementares (SOARES; SANTOS, 2008).
A aspiração de liderança brasileira se inclui no centro das duas orientações, permitindo que o país fortaleça seus laços regionais enquanto ascende como importante global player. O peso estratégico da América do Sul para o Brasil justifica por si um projeto que vise conduzi-la de forma favorável ao seu interesse nacional. O fato de a região ser um subsistema aberto, estando suscetível a influências externas (como do EUA ou da China), faz com que o projeto brasileiro intencione ser o mais atraente possível, criando incentivos à aceitação voluntária de sua liderança. Por outro lado, como ficou patente em alguns choques de influência como o de Honduras e das negociações com o Irã, a aspiração do Brasil possui uma clara limitação, restringindo-se à sua vizinhança. Ao transbordá-la, o país perde tanto em legitimidade como em influência, ao mesmo tempo em que esbarra em outros atores interessados em manter ou ampliar suas áreas de influência.
Referências:
CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008.
DANESE, Sérgio (2009). A escola da liderança – ensaios sobre a política externa e a inserção internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Record.
LIMA, Maria Regina Soares; SANTOS, Fabiano (2008). “O interesse nacional e a integração regional”. Papéis Legislativos, ano 2, n. 1, p. 01-15, abr. 2008.
MANDELBAUM, Michael (2002). The Inadequacy of American Power. Foreign Affairs, vol. 81, n° 5, September/October, 2002, p. 61-73.
SORJ, Bernardo; FAUSTO, Sergio (2011). O papel do Brasil na América do Sul: estratégias e percepções mútuas. Política Externa, vol. 20, n. 2, p.11-22, Set./Out./Nov. 2011.
VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel (2007). A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 2, p. 273-335, julho/dezembro 2007.
Reinaldo Alencar Domingues é Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Integrará a turma de mestrandos da Universidade de Brasília – UnB em 2012. (reinaldoalencar@gmail.com)

[1] O presente artigo apresenta uma síntese do argumento do autor em seu trabalho de conclusão de curso no Curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília – UCB.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Mudar a política externa - Rubens A. Barbosa

Mudar a política externa
Rubens Barbosa 
O Estado de S.Paulo, 22/11/2011
Convidado pelo Centro de Pensamento Estratégico da Colômbia, importante fórum de debates entre governo, setor privado e universidade criado pelo Ministério das Relações Exteriores daquele país, participei, em Bogotá, na semana passada, de encontro promovido pela Cátedra Ásia-Pacífico para discutir as percepções e políticas do Brasil em relação a esse continente.
Em minha apresentação, ressaltei a prioridade que o governo brasileiro vem dando à Ásia nos últimos dez anos, no contexto da política Sul-Sul. Chamei também a atenção para as medidas que foram tomadas para ampliar a cooperação com a Asean (Associação dos Países do Leste da Ásia) e para os efeitos da crescente influência, particularmente da China, sobre a economia e a política externa brasileiras.
Em uma década, a Ásia tornou-se a principal parceira do Brasil, superando a União Europeia e a América Latina.
As nossas dinâmicas relações com a China estão trazendo oportunidades e desafios que terão de ser respondidos, não com improvisações, mas a partir de uma visão estratégica de médio e longo prazos. As exportações de produtos agrícolas e de minérios deverão continuar a crescer. E a gradual substituição de produtos industriais brasileiros por produtos importados da China poderá acentuar a queda da participação da indústria no nosso PIB. A tendência da concentração das exportações em poucos produtos primários e a desindustrialização, se no curto prazo não forem enfrentadas com políticas efetivas, poderão reduzir o Brasil à categoria de simples produtor de commodities e nossa indústria, ao mercado doméstico.
Os efeitos negativos da reprimarização das exportações e o desaparecimento de setores industriais pela competição com produtos chineses começam a ser sentidos também nos demais países da região. À luz dessas realidades, o Brasil precisa repensar a visão que temos da parceria com nossos vizinhos. A América do Sul está dividida, dificultando a busca de convergências políticas e comerciais. O crescimento do intercâmbio comercial, apesar da paralisia das negociações para aumentar as trocas entre os países sul-americanos, faz com que se acentue a percepção de que a integração regional não é mais necessária.
O crescimento da economia brasileira e a presença cada vez mais visível de empresas brasileiras nos países vizinhos despertam sentimentos contraditórios. Alguns deles vêem o Brasil como uma ameaça à sua soberania e sua economia. Essa percepção vem propiciando movimentos centrípetos, a formação de coalizões e medidas restritivas ilegais, que, na realidade, são claros contrapesos à crescente importância regional do Brasil.
Como o Brasil reagirá a essa visão desconfiada de nossos vizinhos? Em termos da integração econômico-comercial, a meu ver, o Brasil deveria aprofundar os acordos comerciais com todos os países da região, oferecendo a abertura completa de nosso mercado, com regras de origem claras e rígidas, e acelerar a execução de projetos de infraestrutura — rodovias, ferrovias e melhoria das facilidades portuárias — que facilitem o acesso de produtos brasileiros ao mercado asiático pelos portos do Pacífico .
As dificuldades que os países sul-americanos enfrentarão para exportar produtos não agrícolas ou minerais para os mercados europeu e americano, em virtude da presença da China como produtora industrial global, tenderá a criar nos próximos 15 a 20 anos uma dependência crescente das economias da região em relação ao mercado brasileiro.
Por tudo isso, o mundo sinocêntrico deverá obrigar o Brasil a redefinir sua política externa na região, em especial no tocante ao processo de integração regional, com ênfase na integração física, e a reduzir os custos internos (taxa de juro, energia, impostos, infraestrutura) para aumentar a competitividade da economia com vistas a recuperar o dinamismo, o crescimento e a modernização da indústria nacional.
O pensamento estratégico deve antecipar os acontecimentos e acelerar sua ocorrência. Chegou a hora de pensar mais no interesse nacional do que em parcerias estratégicas e politicas de generosidade.

RUBENS BARBOSA é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Governo Collor: reavaliação da politica externa - Basilio Sallum

Neste link, direto:
http://www.scielo.br/pdf/dados/v54n2/v54n2a02.pdf

Dados

Print version ISSN 0011-5258

Dados vol.54 no.2 Rio de Janeiro  2011

http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582011000200002 

Governo Collor: o reformismo liberal e a nova orientação da política externa brasileira*

The collor administration: liberal reformism and the new brazilian foreign policy

Gouvernement collor: le réformisme libéral et la nouvelle orientation de la politique extérieure brésilienne

Brasilio Sallum Jr
Professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP. Brasil (e-mail: brasiliosallum@gmail.com)


ABSTRACT
This article discusses liberalization during the Fernando Collor Administration (1990-1992), seeking to demonstrate that the process was far more complex than the academic literature has acknowledged. The argument is that liberal reformism was dually inspired, namely by neoliberalism and the "competitive integration" project, and that it met resistance from both proponents of national developmentalism and its distributive version. It addition to schematically reconstructing these sets of ideals, the article discusses various state policies inspired by them, including foreign policy, foreign trade reform, privatization, etc. Finally, it seeks to identify the agents that sustained such policies and ideals. The article concludes with the overall results and suggestions for further research on the theme.
Key words: economic liberalization; foreign policy; Collor Administration

RÉSUMÉ
Dans cet article, on examine le processus de libéralisation pendant la période Collor pour chercher ensuite à montrer que ces mécanismes ont été bien plus complexes que ce que rapporte la littérature à leur sujet. On voit que le réformisme libéral a été le fruit d'une double inspiration - le néolibéralisme et le projet d'"intégration compétitive" - et s'est heurté à des résistances venant d'acteurs partisans d'un développementisme national persistant ou de la version redistributive de celui-ci. On a essayé de conceptualiser ces ensembles d'idées et de présenter plusieurs politiques d'État qui y ont puisé, comme ce fut le cas pour la politique extérieure, la réforme du commerce extérieur, la privatisation etc. On s'emploie enfin à identifier les agents qui ont soutenu ces politiques et ces idées et on conclut sur un résumé des résultats et des suggestions en vue d'autres recherches.
Mots-clés: libéralisation économique; politique extérieure; gouvernement Collor

A liberalização econômica ocorrida na América Latina a partir dos anos 1980 e, especialmente, na década de 1990, foi entendida como um processo de expansão do capitalismo a partir de seu núcleo em direção à periferia do sistema. Depois da queda do Muro de Berlim e do colapso da União Soviética, tornou-se predominante a interpretação de que tais alterações atingiriam aos poucos todas as sociedades e as fariam convergir para um mesmo padrão de organização econômica, pautado pelo mercado. Reeditava-se com isso, de outra forma, a perspectiva da "modernização", dominante nos anos 1950. As pressões das grandes transnacionais e das "reformas liberais" tenderiam a incorporar todos os países a um mesmo padrão institucional, fazendo com que passassem de não integrados para "superficialmente integrados" e, depois, para "profundamente integrados" (Haggard, 1995; Omahe, 1991). Em relação à América Latina esta interpretação ganhou até uma versão entusiástica: diversos países latino-americanos estariam passando, na expressão de Sebastian Edwards, "from dispair to hope", na medida em que abandonavam os modelos de substituição de importações e os ensaios heterodoxos de gestão econômica em favor de uma orientação mais amigável em relação ao mercado e de políticas econômicas ortodoxas (Edwards, 1994).
Esta interpretação do processo de liberalização foi combatida por um conjunto de autores que questionaram de várias maneiras a perspectiva da "convergência" procurando demonstrar que, apesar da onda liberalizante, se manteriam diferenças importantes na organização das empresas e do mercado de trabalho, na relação entre Estado e mercado, no plano cultural e assim por diante (Berger e Dore, 1996). Esta literatura crítica em relação ao mainstream ensinou muito sobre a dinâmica diferenciada do capitalismo mundial e fez recuar, na medida em que se passava do século XX para o XXI, a nova teoria da modernização. O avanço econômico da periferia asiática, especialmente da China, onde o peso da intervenção estatal é enorme, contribuiu muito para isso.
A literatura de ciências sociais sobre a liberalização econômica no Brasil não teve evolução similar. Apar das reconstruções do processo de liberalização como processo progressivo, interrompido de quando em quando por obstáculos políticos1, as versões críticas tendem a vê-lo de forma similar, embora com sinais avaliativos diversos. Na versão crítica, o reformismo liberal tem sido sistematicamente identificado com o neoliberalismo e este com a acentuação dos males do capitalismo na periferia, o baixo crescimento, a exclusão social, a desorganização política das classes subalternas e assim por diante (Boito Jr. , 1999; Filgueras, 2000). Embora esta literatura de oposição faça reconstruções pertinentes de algumas dimensões do processo de liberalização, ela uniformiza demais o processo e perde de vista certas especificidades que diferenciam o Brasil, de forma marcante, de outras sociedades latino-americanas de grande porte, como a Argentina e o México.
As interpretações parecem-me particularmente simplistas em relação ao governo Collor (1990-1992), identificado, usualmente, como o marco zero do processo de liberalização no Brasil. Provavelmente a rejeição política e moral que acabou resultando no impeachment do presidente tenha contribuído para esta avaliação unilateral daquele governo. De qualquer modo, os equívocos interpretativos não apenas prejudicam nossa compreensão do passado; também dificultam nosso entendimento do presente, das diferenças que temos em relação a outros países, particularmente os latino-americanos, e das pretensões internacionais do Brasil.
Este artigo pretende contribuir para alterar a interpretação predominante em relação ao reformismo liberal do governo Collor, mostrando que ele não se confundia com o neoliberalismo e sublinhando as conexões entre sua face doméstica e sua face internacional.
(...)
CONCLUSÕES
A reconstrução parcial da política brasileira de liberalização, particularmente daquela encetada durante o governo Collor, permitiu mostrar que as reformas liberais foram orientadas por duas diretrizes diferentes e não por uma apenas, como querem tanto partidários quanto críticos do neoliberalismo. Uma destas diretrizes, a de "integração competitiva", orientou de forma marcante a reorientação estratégica da política externa brasileira e também a reforma da política de comércio exterior, embora esta última sofresse grande impacto negativo da política de estabilização monetária.
A desorganização de vários ramos da administração do Estado, decorrente de uma reforma administrativa mal concebida e executada, e a privatização de parte das empresas do Estado, não devem ser tomadas como indicadores de uma estratégia consistente de promoção do Estado mínimo. Esta estratégia não existiu. Nem pode ser depreendida do reformismo liberal do governo Collor. O neoliberalismo influenciou apenas algumas das políticas reformistas, como a de privatização, e bloqueou uma atuação mais proeminente do BNDES na reestruturação produtiva que promoveria a competitividade da indústria brasileira.
O reformismo liberal que predominou no governo Collor - orientando tanto sua política externa como sua política de comércio exterior - não resultou em ou visou uma demissão da nação e do Estado em favor do mercado; tinha em vista, ao invés, a afirmação nacional pela elevação da capacidade de competição do país, seja na construção e gestão da nova ordem política internacional seja na economia de mercado que se expandia no plano mundial. A argumentação desenvolvida sublinhou, além disso, que o suporte social para a "integração competitiva" não se limitou ao empresariado mas incluiu também o sindicalismo operário de esquerda. Mais ainda, ela sugere que as câmaras setoriais, parte do processo de reestruturação produtiva, foram núcleos que articularam, embrionariamente, reformismo liberal e política social-democrata.
Esta apresentação, mesmo incompleta, de ideários e políticas que marcaram o período Collor, reconstituiu de forma mais complexa - espero - o processo de liberalização ocorrido no Brasil. Procurou enraizar ideários e políticas social e historicamente, mas o fez, bem o sei, esquematicamente. Seguramente isso exige trabalho complementar. A maior complexidade do quadro apresentado favorece também a comparação do caso brasileiro com outros processos de liberalização ocorridos na América Latina. Por último, vale sublinhar que as diversas políticas de liberalização tiveram destinos diversos - mantiveram-se e se renovaram, perderam provisoriamente relevância e depois foram retomadas ou simplesmente foram abandonadas. Com efeito, o processo de liberalização começou e continuou sendo complexo e disputado. É o que, em suma, este artigo pretendeu enfatizar.
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Ver o texto completo no link já referido:  http://www.scielo.br/pdf/dados/v54n2/v54n2a02.pdf

domingo, 6 de novembro de 2011

As grandes linhas da política externa brasileira - Paulo Roberto de Almeida


Republico aqui texto que havia sido postado neste mesmo Blog Diplomatizzando (05/06/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/06/grandes-etapas-da-diplomacia-brasileira.html), mas que ainda permanece válido em seus argumentos principais.

As grandes linhas da política externa brasileira

Paulo Roberto de Almeida *
Publicado, sob o título “Trajetória Coerente”, no suplemento Pensar Brasil”, caderno especial “De Igual para Igual”, do jornal Estado de Minas (Belo Horizonte, Sábado, 9 de abril de 2011, p. 17-19).

A diplomacia brasileira seguiu, ao longo do último meio século, uma trajetória relativamente uniforme e coerente, embora marcada por alguns desvios momentâneos e por orientações políticas contrastantes, segundo as conjunturas políticas e os grandes alinhamentos observados em cada uma das grandes etapas do cenário internacional. Com algumas poucas exceções – possivelmente no imediato seguimento do golpe militar de 1964 e agora, recentemente, durante o governo Lula – ela seguiu invariavelmente algumas orientações básicas, ainda que animadas por preocupações diversas, todas elas comprometidas com o desenvolvimento nacional, a defesa da soberania e o comprometimento com o direito internacional, consubstanciado na Carta da ONU e em alguns outros instrumentos básicos das relações internacionais.
A política externa foi, pode-se dizer com total segurança, persistentemente “desenvolvimentista”. A exemplo da tendência dominante na política econômica, ela esteve engajada no processo de industrialização brasileira, embora atuando bem mais na política comercial (na qual o Itamaraty sempre conservou o “monopólio” negociador) do que na política industrial, onde ele foi ator coadjuvante. Essa foi a linha básica da diplomacia econômica brasileira desde a era Vargas até a atualidade: fazer com que as negociações comerciais externas – multilaterais ou regionais – não dificultassem o processo de industrialização, consumado com base em velhas receitas de substituição de importações e em forte protecionismo tarifário (que o Itamaraty se encarregou de defender junto ao Gatt, ao longo dos anos).
A outra grande vertente de atuação da diplomacia econômica consistiu na sustentação das dificuldades cambiais e de balanço de pagamentos, o que exigia do Itamaraty um bom trabalho junto aos principais credores, todos eles situados na América do Norte e na Europa ocidental. Empréstimos externos e atração de investimentos estrangeiros foram os dois elementos básicos nessa frente e pode-se dizer que o desempenho foi relativamente satisfatório, a despeito de crises desafiadoras no último terço do século XX (petróleo, dívida externa, crises financeiras nos mercados emergentes nos anos 1990). Mas esse tipo de negociação financeira estava mais bem afeta aos responsáveis econômicos e monetários do que aos funcionários do Itamaraty, que ainda assim ofereciam todo apoio nesse tipo de missão, quando não assumiram eles mesmos a responsabilidade pela condução do processo.
Outra área, entretanto, teve a colaboração crucial dos diplomatas para que ela pudesse se desenvolver, pelo menos até certo ponto: a capacitação do Brasil em matéria de enriquecimento nuclear e de domínio das tecnologias industriais ligadas à indústria nuclear para fins civis (energia), o que foi materializado no célebre acordo nuclear Brasil-Alemanha, de 1975 (depois descontinuado, a partir da crise dos anos 1980 e também por causa de fortes pressões contrárias dos Estados Unidos). Ocorreu, nesse setor, durante o governo militar, notável cooperação entre os militares e os diplomatas, inclusive porque ambas as corporações recusavam a adesão do Brasil ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (oferecido em 1968 à comunidade internacional pelas três potências nucleares signatárias, EUA, Reino Unido e União Soviética). Foi o momento de maior independência brasileira em relação aos EUA, depois de algumas décadas de alinhamento, no geral, coincidente com os grandes objetivos da maior potência ocidental, durante os anos da Guerra Fria.
De fato, o Brasil exibiu uma política externa razoavelmente alinhada com os EUA desde antes da Segunda Guerra Mundial, a começar pela renegociação das dívidas contraídas nos anos de entre-guerras e pela própria participação brasileira no conflito, a partir da qual os dirigentes diplomáticos e os líderes políticos brasileiros esperavam uma retribuição à altura, em especial a inclusão do País no seleto clube de grandes potências, experiência logo frustrada pela intransigência do Reino Unido e da União Soviética. Ainda assim, os anos do pós-guerra foram de colaboração e de quase pleno entendimento político, com a compreensão dos militares brasileiros e da grande maioria dos diplomatas em relação às prioridades e à grande estratégia dos EUA na era da Guerra Fria: a contenção da União Soviética e a luta contra a penetração e a influência comunistas em diversos países da periferia ou da própria Europa ocidental.
Os únicos pontos de desacordo se situavam justamente na cooperação econômica, com o Brasil e a maioria dos latino-americanos pedindo uma extensão ao continente da generosa ajuda para recuperação e reconstrução que os americanos prestavam à Europa no quadro do Plano Marshall. Os EUA nunca consentiram nessa extensão, inclusive porque consideravam, não sem razão, que os problemas da América Latina não eram exatamente de reconstrução, e sim de desenvolvimento, para o que recomendavam não ajuda estatal, mas reformas econômicas e abertura aos investimentos estrangeiros. A questão do financiamento ao desenvolvimento latino-americano foi resolvida mais adiante, com a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento, apenas depois de intensa pressão brasileira, notadamente através da Operação Pan-Americana, proposta pelo presidente Juscelino Kubitschek: tratou-se da primeira grande iniciativa brasileira em termos de liderança regional e de diplomacia multilateral, mesmo se limitada ao hemisfério americano.
Ainda assim, ela serviu para formar os diplomatas brasileiros nos novos temas da diplomacia do desenvolvimento e do multilateralismo econômico, bem como nos seus procedimentos específicos (em relação, por exemplo, à velha escolha da diplomacia bilateral, de caráter essencialmente político), o que iria ser extremamente útil nas negociações do Gatt, com a nascente Comunidade Econômica Europeia e nos novos acordos em torno dos produtos de base (café, cacau, açúcar, etc.). O Brasil tornou-se um dos principais promotores do movimento em favor da reforma do Gatt desde o final dos anos 1950, num sentido de não-reciprocidade e de concessões sem contrapartida, assim como participou ativamente do processo que conduziu à criação da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), tornando-se um dos líderes do grupo dos países em desenvolvimento (que veio a ficar conhecido como G77, do número de membros no momento de sua criação, em 1964).
O ponto alto dessa fase foi, evidentemente, a chamada “política externa independente”, quando o Brasil se liberta do estrito alinhamento aos cânones da Guerra Fria e passa a buscar oportunidades comerciais e de relacionamento político com os países socialistas e com as nações periféricas de modo geral. Entre os grandes temas debatidos nessa época esteve o de Cuba, cujo regime socialista foi considerado pela OEA como “incompatível com o sistema interamericano”, tese americana a que o Brasil se opôs por não haver, na Carta da OEA, nenhum caracterização quanto a regimes políticos. O Brasil, em todo caso, se absteve, quando a decisão foi votada, apoiado em argumentos essencialmente jurídicos esgrimidos pelo chanceler Santiago Dantas.
Ocorreu, então, a primeira ruptura, embora relativamente breve, nas linhas tradicionais da política externa brasileira, quando os militares, talvez para “agradecer” aos EUA a ajuda preventiva dada durante o golpe, concordam em sustentar a postura americana na região, participando da invasão da República Dominicana, contra uma revolução democrática em 1965. Foi, porém, um breve interlúdio, já que a partir de 1967, a diplomacia retomou sua postura desenvolvimentista e pela autonomia tecnológica (já dando início a um programa nuclear independente, que sofreria as referidas sanções americanas). Pelo resto do regime militar e também durante a fase de redemocratização, a diplomacia brasileira atuou com plena independência e profissionalismo, assumindo uma postura moderadamente terceiro-mundista e, certamente, desenvolvimentista. Conflitos pontuais se manifestam nas relações com os EUA, tanto no plano bilateral – fricções comerciais, política nuclear, justamente – como no plano multilateral – resoluções da ONU e temas da agenda do desenvolvimento nos quais os EUA geralmente se singularizavam pela postura oposicionista.
Desde essa época, e praticamente até hoje, a diplomacia brasileira vem construindo seu espaço próprio nos contextos regional e internacional, estimulando parcerias seletivas com alguns grandes países em desenvolvimento – em especial com a Índia, com a qual havia uma grande interface negociadora em temas comerciais – e colocando as bases de um grande espaço de integração econômica na América do Sul, primeiro via Alalc e Aladi, depois via Mercosul e outros esquemas sub-regionais. Ao promover a integração regional, a diplomacia brasileira sempre foi extremamente cautelosa em não proclamar qualquer veleidade de liderança brasileira no continente, muito facilmente confundida com pretensões hegemônicas e, portanto, recusada peremptoriamente pela maior parte dos vizinhos (com a possível exceção dos menores, interessados em algum tipo de barganha preferencial). Essa postura cuidadosa foi no entanto descurada pelo governo Lula, gerando resistências e contrariedades nos vizinhos mais importantes, que inclusive se mobilizaram contrariamente a um dos  objetivos de alguns governos brasileiros: a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
O governo Lula, justamente, representou uma ruptura nos antigos padrões profissionais da diplomacia, introduzindo uma agenda partidária e ideológica que redundou, em diversos casos, em um infeliz alinhamento com ditaduras e violadores dos direitos humanos em diversos continentes, numa demonstração de anti-americanismo infantil e, em última instância, prejudicial à credibilidade da política externa brasileira. Felizmente, o novo governo Dilma restabeleceu padrões de comportamento e de votação nos foros multilaterais bem mais conformes à tradição diplomática brasileira, condizentes inclusive com princípios constitucionais sobre valores democráticos e a defesa dos direitos humanos e com o espírito verdadeiro da Carta da ONU.

* Diplomata de carreira e professor universitário; autor de diversos livros de relações internacionais (www.pralmeida.org).
Chamada: Diplomacia brasileira sempre se caracterizou pelo profissionalismo e por uma diplomacia de caráter nacional; regime militar e governo Lula representaram exceções nessa linha cautelosa e guiada por interesses nacionais, não partidários.

[2554; Brasília, 11 de março de 2011; rev. 12/03/2011]