O tema da liderança brasileira na América do Sul tem alcançado grande importância nos debates sobre política externa. No governo Lula, a questão ganhou maior destaque ao gerar uma polêmica no início de seu mandato e por permear indiretamente a visão ampla de inserção regional e internacional do país. A compreensão do papel do Brasil na América do Sul e no mundo depende intimamente da autopercepção das grandezas e limitações do país.[1]
Percebe-se um vínculo entre a identidade internacional do Brasil e as noções de liderança desenvolvidas ao longo da história. O país assumiu consecutivamente diversas identidades: passou progressivamente da ideia de país americano para a de latino-americano e, em seguida, para a atual concepção de país sul-americano (COUTO, 2009). Em cada um dos momentos, a compreensão do papel do Brasil e as suas concepções de liderança variaram. Sob a gestão do Barão do Rio Branco, o Estado brasileiro adotou a identidade de país americano e o papel de subliderança regional ao aceitar a preeminência norte-americana no continente, ampliando sua margem de ação na vizinhança.
Com a Política Externa Independente (PEI), na década de 1960, o Brasil assumiu a identidade de país latino-americano em desenvolvimento, buscando se destacar como uma das principais vozes no movimento terceiro-mundista. A noção de liderança concebida foi de uma liderança temática – sob o signo do desenvolvimento – e que matinha um apelo de ser um movimento conjunto e mutualmente benéfico a todos.
A partir do governo de Itamar Franco e, em especial, no mandato de Fernando Henrique Cardoso a identidade sul-americana do Brasil estava em construção. Durante a gestão de FHC, a concepção de liderança desenvolvida entendia que esta se daria como consequência natural da proeminência econômica, atribuindo à região uma função diferente da conferida no mandato seguinte.
O governo Lula desenvolveu uma noção própria de liderança, inserindo-a junto à estratégia ampla de autonomia pela diversificação (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007). Segundo esta, a América do Sul assumiria um papel central nas relações do Brasil com o mundo ao ampliar o poder de barganha e de voz do país no cenário internacional. A concepção apresentada pelo presidente abrangeu diversos valores que permearam a ação externa brasileira no período. O caráter não-hegemônico da liderança, a solidariedade e generosidade, e a ênfase nos objetivos comuns da região nortearam as relações do Brasil com seu entorno geográfico.
Apesar dos governos de FHC e Lula partirem de uma ideia semelhante da identidade internacional do Brasil – reconhecendo-o como país sul-americano –, desenvolveram noções distintas de liderança. Esta divergência sugere que, apesar da relação entre as duas variáveis, a percepção e os valores dos formuladores políticos também influenciam a noção de liderança desenvolvida pelo país.
Ao investigar os elementos de poder do Brasil, lançando um olhar sobre o ambiente doméstico do país e colocando-o em perspectiva com o continente, constatam-se duas assimetrias. A primeira refere-se à crescente assimetria entre Brasil e os demais países sul-americanos, ressaltando as potencialidades de uma liderança brasileira. A segunda representa a enorme assimetria entre a América do Sul (o Brasil, inclusive) e os Estados Unidos, destacando as limitações de uma aspiração de liderança brasileira mais ampla e a necessidade de lidar com a presença norte-americana no continente.
A liderança depende, ademais, de vontade e de mobilização em torno da decisão de liderar (DANESE, 2009). Nesse sentido, a ambição maior de um projeto de liderança mundial dos Estados Unidos e a ausência de ameaças críveis na região retiram dos norte-americanos a motivação ou ambição de exercer uma liderança continental. De outro lado, o Brasil atribui à região uma grande relevância, colocando-a entre suas principais prioridades de política externa (SOUZA, 2009).
Nesse contexto, admite-se também a importância das relações entre Brasil e Estados Unidos e suas implicações para a aspiração de liderança brasileira na América do Sul. A política externa norte-americana passou por grandes mudanças na primeira década do século XXI. Abandonou aos poucos a orientação unilateralista da gestão de George W. Bush, para uma orientação mais multilateralista ao aproximar-se do final da década. A crescente indisposição dos Estados Unidos de pagar pelos bens públicos globais (MANDELBAUM, 2002), somada ao endividamento progressivo do país com as duas guerras no Oriente Médio, a crise financeira de 2008 e o caráter transnacional de muitas ameaças em um ambiente internacional globalizado, tornou o cenário favorável ao surgimento de novos atores relevantes internacionalmente.
Apesar disso, a relação entre Brasil e Estados Unidos foi marcada por muitos desacordos ao longo da década. Os desentendimentos estiveram geralmente relacionados a duas questões: a falta de compreensão da tradição de autonomia da política externa brasileira por parte dos EUA e o receio do Brasil referente ao gigante norte-americano. Estes fatores minaram, por vezes, as oportunidades de aproximação entre os dois países. Muitos autores sugeriram enfaticamente os benefícios de uma maior aproximação e coordenação de ambos. Porém, os obstáculos ainda não foram totalmente superados.
A ausência de um projeto claro dos Estados Unidos para a América do Sul, fundamentado em uma agenda mínima relacionada ao narcotráfico, questões energéticas e a estabilidade regional, permitiu que a diplomacia brasileira atuasse com maior liberdade na região.
Porém, a aspiração de liderança brasileira na América do Sul encontra outros obstáculos. Internamente, as mazelas de um país ainda em desenvolvimento geram margem para contestação e dificultam a criação de um consenso interno da decisão de liderar, encontrando maior resistência à mobilização de recursos. Externamente, as suspeitas de um projeto subimperialista brasileiro e os problemas internos do país criam resistência à aspiração nacional e mitigam sua legitimidade.
Em análise dos instrumentos utilizados pelo Brasil na busca pelo exercício da liderança, constata-se que o país procurou exercer uma liderança branda (soft leadership). Destacam-se entre os principais meios do exercício da liderança brasileira, tanto a nível político quanto econômico, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Fundo para Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) – muitas vezes por meio de empresas nacionais.
As interpretações relativas aos investimentos brasileiros na região foram distintas. De um lado, os formuladores políticos do governo Lula os interpretaram como um exemplo claro do comprometimento do país com o desenvolvimento da região e com a superação de assimetrias (AMORIM, 2010). De outro, os países vizinhos muitas vezes os interpretaram como pífios e insuficientes (SORJ; FAUSTO, 2011). No nível doméstico, há parcelas da população que consideram os investimentos desnecessários e até mesmo imorais ante a miséria encontrada no próprio país. Apesar dos desafios e das críticas, deve-se reconhecer as iniciativas brasileiras que não são de maneira alguma irrelevantes. A criação da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-Americano são algumas das importantes iniciativas que foram impulsionadas fortemente pelos esforços brasileiros, cooperando para a construção de uma imagem de liderança conforme a noção desenvolvida pelo governo Lula.
Como gerenciador de crises na região, a postura do Brasil foi relativamente inconstante. Em casos como o da nacionalização do gás boliviano e da renegociação do Tratado de Itaipu, a diplomacia brasileira agiu – ao menos aparentemente – com certa condescendência com os países que confrontaram seus interesses em nome da generosidade e solidariedade com os mais fracos, reforçando a cordialidade oficial com os vizinhos, para citar a expressão de Cervo (2008). No caso das papeleras, o Itamaraty adotou uma postura reticente, se eximindo do papel de mediador a fim de evitar uma confrontação direta que poderia afetar sua relação com a Argentina, enquanto na crise Colômbia-Equador, agiu com certa discrição, descartando a possibilidade do desentendimento escalar para um conflito armado.
Ao final do período, o crescimento brasileiro resultou em um papel mais relevante no mundo e na preeminência na região. O novo lugar alcançado pelo Brasil no mundo tem gerado dúvidas sobre qual deve ser a orientação da política externa brasileira. A relativa estagnação do processo de integração regional e os problemas políticos enfrentados pelo eixo Brasil-Argentina (apesar do comércio dos dois países ter chegado a US$ 30 bilhões em 2010, com previsões de ultrapassar US$40 bilhões em 2011) têm levado alguns a questionar a estratégia de buscar o aprofundamento do Mercosul, sugerindo que o Brasil já alcançou peso suficiente para buscar sozinho seus interesses. Porém, a oposição entre orientações global e regional não parece totalmente rígida. Estas podem ser, por vezes, complementares (SOARES; SANTOS, 2008).
A aspiração de liderança brasileira se inclui no centro das duas orientações, permitindo que o país fortaleça seus laços regionais enquanto ascende como importante global player. O peso estratégico da América do Sul para o Brasil justifica por si um projeto que vise conduzi-la de forma favorável ao seu interesse nacional. O fato de a região ser um subsistema aberto, estando suscetível a influências externas (como do EUA ou da China), faz com que o projeto brasileiro intencione ser o mais atraente possível, criando incentivos à aceitação voluntária de sua liderança. Por outro lado, como ficou patente em alguns choques de influência como o de Honduras e das negociações com o Irã, a aspiração do Brasil possui uma clara limitação, restringindo-se à sua vizinhança. Ao transbordá-la, o país perde tanto em legitimidade como em influência, ao mesmo tempo em que esbarra em outros atores interessados em manter ou ampliar suas áreas de influência.
Referências:
CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008.
DANESE, Sérgio (2009). A escola da liderança – ensaios sobre a política externa e a inserção internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Record.
LIMA, Maria Regina Soares; SANTOS, Fabiano (2008). “O interesse nacional e a integração regional”. Papéis Legislativos, ano 2, n. 1, p. 01-15, abr. 2008.
MANDELBAUM, Michael (2002). The Inadequacy of American Power. Foreign Affairs, vol. 81, n° 5, September/October, 2002, p. 61-73.
SORJ, Bernardo; FAUSTO, Sergio (2011). O papel do Brasil na América do Sul: estratégias e percepções mútuas. Política Externa, vol. 20, n. 2, p.11-22, Set./Out./Nov. 2011.
VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel (2007). A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 2, p. 273-335, julho/dezembro 2007.
Reinaldo Alencar Domingues é Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Integrará a turma de mestrandos da Universidade de Brasília – UnB em 2012. (reinaldoalencar@gmail.com)
[1] O presente artigo apresenta uma síntese do argumento do autor em seu trabalho de conclusão de curso no Curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília – UCB.
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