A ESTRUTURA DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO COLLOR
Paulo Roberto de Almeida
Genebra, 03/01/1990
O projeto de reforma administrativa contido no documento "Brasil Novo", divulgado em finais de dezembro último pela equipe de transição do Governo Collor, contempla uma mudança substancial no perfil do Poder Executivo, refletindo-se, particularmente, numa redução drástica do número de ministérios. A área econômica é, evidentemente, o centro do processo de reformulação administrativa, devendo conhecer, mesmo que o esquema proposto não venha a ser totalmente implementado, uma concentração de poderes no novo Ministério da Economia, paralelamente à incorporação de toda a atividade empresarial do Estado numa nova pasta da Infraestrutura. Os setores vinculados à produção agrícola, à ação social e aos assuntos trabalhistas e previdenciários também devem passar pelo mesmo processo de centralização e absorção de instituições e programas previamente existentes.
Em contraste com as tendências "concentradoras" - mas certamente racionalizadoras - do proposto organograma, a área das relações exteriores foi mantida, assim como os ministérios militares e o da Justiça, no lado "conservador" da nova estrutura do Executivo, confirmando aliás a estabilidade institucional inerente a um setor de notória especialização política e funcional. Ainda assim, como a refletir as promessas de maior abertura internacional para o Brasil anunciadas pelo Presidente eleito, a estrutura do processo decisório na esfera das relações exteriores provavelmente não será a mesma observada até aqui. O elemento original, como se verá mais adiante, é a criação de uma "Câmara de Assuntos Estrangeiros" no âmbito de um novo órgão destinado ao "aconselhamento político" do Presidente, o "Conselho de Governo".
Antes de mais nada, porém, cabe relembrar as linhas básicas da atual ordem constitucional no que concerne as relações internacionais do Brasil. Rejeitado o modelo parlamentarista da Comissão de Sistematização, a opção final da Constituinte pelo presidencialismo significou, como se sabe, a continuidade da atual repartição de competências nessa área, com o controle exclusivo pelo Presidente de todo o processo diplomático, limitando-se o Congresso a uma função de controle dos atos internacionais conduzidos pelo Executivo. O Poder Legislativo, é verdade, teve seus poderes de fiscalização bastante ampliados, passando inclusive a dispor sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios. O Congresso passou a examinar todos os atos internacionais "que acarretem encargos ou compromisso gravosos ao patrimônio nacional", enquanto o Senado ampliou suas faculdades no estabelecimento de "limites globais e condições para as operações de crédito externo" de todos os agentes do Poder Público.
A Carta constitucional de outubro de 1988 instituiu o "Conselho de Defesa Nacional", definido como "órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático". A este Conselho compete opinar sobre eventos relevantes para a vida do País, como as questões da guerra e da paz, a segurança do território nacional e temas relativos à independência nacional, dele fazendo parte, como membro nato, o Ministro das Relações Exteriores.
Precisamente nesse setor da "defesa nacional", o projeto de reforma administrativa do Governo Collor cria, dentre os órgãos de assessoramento direto do Presidente da República, uma "Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional", ao lado de outras instâncias mais tradicionais (como a Consultoria Geral da República e os gabinetes civil e militar, que perdem, assim, seu status ministerial) ou de caráter inédito até aqui (como o "Alto Comando das Forças Armadas", conduzido ao nível de assessoria). A nova Secretaria de Defesa Nacional (destinada, previsivelmente, a substituir o Serviço Nacional de Informações, que simplesmente desaparece do novo organograma), teria suas atividades orientadas num sentido predominantemente externo, e não mais de "segurança interna".
A reforma administrativa pretendida pelo novo Governo, num saudável enxugamento da máquina pública, preserva intactos apenas cinco dos 27 ministérios criados durante o Governo Sarney: os das três Armas, o da Justiça e, obviamente, o das Relações Exteriores, estes dois últimos os únicos de presença constante nos 170 anos de Brasil independente. Sem entrar nos méritos ou desvantagens "políticas" da criação de apenas um ministério militar (o da Defesa, com secretarias subordinadas para cada uma das Armas, similarmente ao que está sendo proposto para as áreas da Economia e da Infraestrutura), cabe simplesmente observar que tal medida, além de contribuir para reduzir ainda mais o perfil da estrutura ministerial, traria inegáveis vantagens "externas", já que, supostamente, se estaria caminhando para a formulação de uma verdadeira doutrina militar integrada (ou seja comum às três Armas), no quadro de uma mesma concepção estratégica global e em perfeita sintonia com uma política externa nacional. As razões que impedem tal esforço ulterior de racionalização administrativa e política, amplamente desejável do ponto de vista de nossa inserção internacional, não são, como se sabe, motivadas por considerações de ordem "externa", mas se situam no âmbito propriamente "interno" do sistema político brasileiro e têm muito a ver com a preeminência das Forças Armadas na ordem política do País, ao longo de toda sua história republicana, e com as pretensões hegemônicas de uma ou outra instituição castrense.
No caso do Ministério das Relações Exteriores, contudo, sua preservação nada mais é do que o simples reconhecimento da necessária continuidade administrativa e política numa área extremamente sensível para a vida do País, vivendo, como todos os outros, num contexto mundial ainda por muito tempo caracterizado pela atuação contraditória, e muitas vezes conflitiva, de Estados nacionais independentes. Antes mesmo da formação histórica do moderno Estado burocrático, os "negócios estrangeiros" já existiam como um dos atributos mais essenciais da afirmação externa de qualquer nação soberana e politicamente organizada: os príncipes passam, mas as chancelarias ficam, os governos são substituídos, mas o fluxo das relações internacionais não cessa. Nada mais natural, portanto, do que manter o Itamaraty intocado em sua competência funcional e em seu funcionamento efetivo.
Preservar o instrumento de atuação externa da Nação não significa, contudo, deixar intocada a política externa nacional ou, em relação ao tema que nos ocupa especificamente, manter a mesma estrutura decisória na área das relações exteriores do País. Mantido, pois, o Ministério das Relações Exteriores na máquina executiva da próxima Administração, a novidade institucional vem pela criação de uma "Câmara de Assuntos Estrangeiros", uma das seis câmaras setoriais do já mencionado Conselho de Governo. Se o organograma interno prever, ademais dos ministros envolvidos, a participação de um "assessor executivo" para a coordenação dos trabalhos em cada área, no caso da Câmara de Assuntos Estrangeiros este poderá até mesmo ser designado na pessoa de um diplomata de carreira, mas a função eminentemente política dessa Câmara no quadro do processo decisório governamental como um todo não obriga a tal escolha (embora num País caracterizado por baixo coeficiente de abertura externa e carente de "personalidades internacionais", como é o Brasil, o mais provável é que as opções se limitem à carrière).
Deixando, contudo, de lado o funcionamento e as atribuições específicas da nova Câmara, seria interessante refletir tentativamente sobre seu significado institucional no contexto político a ser inaugurado em março próximo. O País sai de uma longa fase de transição democrática durante a qual a deficiente legitimidade política dos mandatários limitou severamente o encaminhamento, pelo Governo federal, dos mais diversos problemas da nacionalidade: a questão social, a distribuição da justiça, o crescimento econômico, o controle das contas públicas, a promoção do ensino, a preservação do meio ambiente, a modernização tecnológica e o peso da dívida externa.
Ao Conselho de Governo cabe definir as linhas gerais do programa de governo a ser definido pela nova Administração em cada um de seus setores de atuação. Os problemas mais urgentes são, sem dúvida alguma, de ordem interna: a aceleração inflacionária e a falência do Estado enquanto tal, ou seja, sua incapacidade em fazer face à insolvência da máquina pública e à ausência de autoridade política e administrativa. Mas, os desafios externos não são menos importantes: renegociar a dívida externa, avançar nos esforços integracionistas em nível regional, realizar o aggiornamento tecnológico nacional e conseguir a chamada "inserção competitiva" do Brasil na economia internacional. Aliás, o primeiro desses desafios, a dívida externa é, também e principalmente, um problema "interno": sua carga insuportável limita a capacidade do Estado em qualquer tentativa de ajuste interno, em termos de combate anti-inflacionário, e compromete as chances de encaminhamento de recursos para investimentos produtivos. De forma similar, a questão ambiental, por exemplo, converteu-se, antes de mais nada, numa complicada questão "externa": o País é constantemente "cobrado" pela opinião pública internacional pelo tratamento dispensado às suas florestas, a seus rios e às suas populações indígenas. O mesmo poderia ser dito, entre outras, das questões social e tecnológica: não há mais limites precisos entre o que é "externo" e o que releva apenas da competência "interna" do País.
Desse ponto de vista, o "aconselhamento político" do Presidente da República a ser feito pelo Conselho de Governo da próxima Administração não pode prescindir de uma visão global e de um tratamento integrado dos problemas acima enunciados. No que concerne particularmente a Câmara que vai ocupar-se dos "assuntos estrangeiros" - e estes tocam tanto a dívida externa, o comércio internacional e o meio ambiente, quanto a tradicional esfera do relacionamento bilateral com nossos principais parceiros - ela deve poder constituir-se no verdadeiro núcleo formulador das diretrizes políticas mais gerais para a atuação externa do Estado brasileiro. Convenientemente articulado com as demais Câmaras setoriais, a Câmara de Assuntos Estrangeiros teria condições de converter-se em nó crucial do processo decisório nacional em termos de política externa.
O Itamaraty, pela qualidade de seus quadros, pela sólida reputação construída na administração responsável das relações exteriores do Brasil e pela imagem de seriedade que projeta externamente, tem todas as condições para, aberto ao acolhimento das mais variadas contribuições societais - da comunidade acadêmica aos homens de negócios e dos partidos políticos às associações civis -, participar plenamente do fluxo de inputs direcionados à Câmara de Assuntos Estrangeiros, bem como influir decisivamente no processo de tomada de decisões políticas que dali passar a emergir. Um só motivo fundamenta esta afirmação: afinal de contas, a boa política externa, assim como a boa educação, começa em casa.
Paulo Roberto de Almeida é PhD em Ciências Sociais.
[Genebra, 03/01/90]
[Relação de Trabalhos nº 178]