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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

A tragédia dos refugiados afegãos no Paquistão (FSP)

 Paquistão anuncia expulsão de 1,7 milhão de afegãos, e migrantes buscam o Brasil Redefinição da política de acolhida brasileira trava solicitações de vistos humanitários na capital Islamabad 


 SÃO PAULO 
Segundo país que mais recebe afegãos que fogem do regime do Talibã e do colapso econômico, o Paquistão anunciou uma nova política migratória, descrita como uma "repatriação gradual", que pode expulsar cerca de 1,7 milhão de afegãos de seu território. 

 A medida aumentou a preocupação de migrantes no país, muitos dos quais já relatavam ser alvos de abusos e coação por policiais. E reflete também no Brasil. ONGs relatam que estão recebendo ainda mais pedidos de ajuda de afegãos que, vivendo no Paquistão, tentam emigrar para o Brasil com o visto de acolhida humanitária. Aqueles que desejam solicitar o visto brasileiro, no entanto, estão impossibilitados. A embaixada de Islamabad —uma das duas únicas, além da de Teerã, que acolhe pedidos— não está recebendo solicitações.

 A representação consular aguarda o governo brasileiro publicar edital com as novas regras para concessão de vistos humanitários para voltar a operar. Nesse meio-tempo, afegãos que estão no Paquistão relatam se sentir ainda mais inseguros. A política foi alterada pelo governo Lula no final do mês passado, e sua falta de detalhamento levou a uma ampla desinformação. O principal ponto de dúvida está no trecho que diz que a concessão de vistos estará sujeita à existência de vagas para abrigo por organizações. 

A informação deu margem para a interpretação de que, para vir, o migrante deve ser "convidado" por alguma ONG ou receber algum tipo de "carta de patrocínio", o que não é o caso, segundo o Itamaraty. A pasta disse à Folha que todos os pedidos realizados na embaixada de Islamabad até 1º de outubro passado seguem sendo processados normalmente. O posto concedeu 4.041 vistos a afegãos desde a implementação de sua política de acolhimento para migrantes da nacionalidade, em setembro de 2021. Hamid Liyaqat, 35, é um dos que tentam deixar os arredores de Islamabad e emigrar para o Brasil. No país com a esposa, os três filhos —de 7, 4 e 2 anos—, a mãe e três irmãs, ele diz que não se sente seguro e não vê oportunidades. 

Os filhos e suas irmãs mais novas, de 13 e 16 anos, não conseguem frequentar o ensino público de educação. O afegão deixou a província de Bamyan, onde vivia, logo após o Talibã retomar o poder, em outubro de 2021, rumo ao Paquistão. O restante da família se juntou a ele pouco depois, mas não sem antes sentir o impacto da repressão do regime fundamentalista —ele relata que oficiais invadiram sua casa e agrediram sua mãe. Hamid trabalhava como vice-diretor da polícia civil de Bamyan junto a um projeto do Pnud, o programa da ONU para o desenvolvimento. Mas a rixa do Talibã com sua família vem de antes. Seu pai, relata, era membro da polícia nacional e foi assassinado por talibãs em 2013. 

 O próprio Hamid chegou a ser sequestrado pelo grupo em 2020, quando fazia o percurso com destino à capital Cabul junto com a mulher, então grávida de seis meses, segundo documentos oficiais do governo da época que o afegão compartilhou com a reportagem. Hamid diz que já solicitou o visto mais de uma vez e aguarda resposta. A imigração é não só uma tentativa de buscar mais oportunidades, como de proteger a família dos abusos policiais que ela enfrenta. "Temos muito medo. Ficamos quase 24 horas por dia em casa. Se saímos, policiais nos param e exigem dinheiro. Se não damos, nos ameaçam até com a expulsão. Estão nos humilhando." Ahmad (nome fictício) relata situação semelhante. O afegão cruzou a fronteira com o Paquistão em novembro de 2021 e diz que corria riscos por ser cristão —o Talibã lidera um regime fundamentalista islâmico. 

Ele afirma que há dois anos solicitou o visto brasileiro, mas que ainda não teve resposta. O desespero bateu à porta de fato nesta semana, após o governo local anunciar as deportações. Ele, que mora na cidade de Rawalpindi e prefere não revelar a identidade por questões de segurança, diz que, se for pego pela polícia, será entregue ao Talibã e morto. Procurada, a embaixada do Paquistão no Brasil disse que as acusações sobre a ação de seus policiais são "totalmente sem fundamento e fora de contexto". Nesta terça-feira (3), o Paquistão anunciou que todos os migrantes em situação ilegal no país devem sair de forma voluntária até o final de outubro se quiserem evitar prisão e deportação forçada. Autoridades afirmaram que uma linha telefônica seria criada para que pessoas possam denunciar esses migrantes em troca de recompensa. A política foi anunciada após uma série de ataques no Paquistão a poucos meses das eleições de janeiro. 

Os atentados são orquestrados por militantes islâmicos e se tornaram mais frequentes desde 2022, quando foi rompido um cessar-fogo entre o governo e o Tehreek-e-Taliban Pakistan (TTP), o talibã paquistanês. Os extremistas tentam pressionar as autoridades a implementarem um regime com base na sharia, a lei islâmica, espécie de marco moral com base no Alcorão. Na semana passada, dois atentados suicidas mataram mais de 60 pessoas durante uma celebração religiosa do aniversário do profeta Maomé. Na ação mais letal, em janeiro, mais de cem foram mortos em um atentado a uma mesquita em Peshawar —o local sagrado ficava em um complexo que abriga prédios oficiais. 

 O governo afirma que hoje 4,4 milhões de afegãos vivem no Paquistão, sendo 1,7 milhão sem documentação. Dados do Acnur, a agência de refugiados da ONU, por sua vez, indicam que há 3,7 milhões de afegãos. O regime talibã chamou de "inaceitável" a ação paquistanesa. À Folha a embaixada do Paquistão no Brasil disse que a política de repatriação vale para todos os migrantes em situação irregular, não apenas os afegãos, e que essa ação é válida perante "as leis soberanas do país". Grande parte dos afegãos que buscam o Brasil sai do Paquistão, país que compartilha uma fronteira de mais de 2.600 quilômetros com o Afeganistão. Segundo dados públicos da OIM, braço da ONU para migrações que apoiou a vinda de ao menos 439 afegãos para o Brasil, 80% deles saíram do Paquistão antes de desembarcar no país —outros 17% saíram do Irã, país com maior diáspora afegã (4,5 milhões). 


terça-feira, 3 de outubro de 2023

A tragédia dos refugiados afegãos e a incapacidade das estruturas brasileiras de acolhimento - Mayara Paixão Bruno Santos (FSP)

Afegãos ofertam até propina a ONGs após nova política no Brasil gerar confusão 

Mudança determina concessão de vistos apenas caso seja comprovada disponibilidade de vagas em abrigos 

Mayara Paixão Bruno Santos 

FOLHA DE SÃO PAULO, 3/10/2023

 "Olá, sou Mahsa [nome fictício], de Cabul, e estou no Irã atualmente. Trabalhava para o governo afegão e já estou há dois anos esperando um visto de acolhida humanitária. Por favor, me ajudem a conseguir o visto para o Brasil, tenho dinheiro, caso seja necessário." Mensagens como essa passaram a lotar canais de comunicação de ONGs que atuam com acolhida de migrantes no Brasil desde que o governo alterou, na última semana, a política de vistos humanitários para afegãos. A portaria entrou em vigor nesta segunda-feira (2). Ainda não há, porém, detalhamento de como as mudanças serão colocadas em prática. E é neste limbo informacional que uma confusão se instaurou entre a diáspora afegã que já está no Brasil e a que deseja emigrar fugindo do Talibã. 

A desinformação está em todo lugar. A Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (Arro, na sigla em inglês), uma das ONGs que atuam com afegãos, viu saltar o número de mensagens recebidas, algumas delas com oferta de propina, desde o anúncio da nova portaria. Em nota, a Arro diz que o pouco que se sabe até aqui mostra "brechas regulatórias que, se não observadas, poderão gerar tentativas de fraudes e corrupção de todo o terceiro setor envolvido na causa". 

Também critica o fato de nem as próprias ONGs terem sido procuradas para que entendam o papel a cumprir daqui para a frente. O principal ponto de dúvida está no trecho que diz que a concessão de vistos estará sujeita à existência de vagas para abrigo por organizações que tenham firmado acordos com o Estado. A informação deu margem para a interpretação de que, para vir, o migrante deve ser "convidado" por alguma ONG ou receber algum tipo de "carta de patrocínio". 

 À Folha o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, corresponsável pelo tema junto com o Itamaraty, afirmou que as ONGs não terão nenhuma interferência no processo de aprovação dos vistos e que nenhuma carta ou documento do tipo é necessário. Segundo a pasta, as organizações firmarão acordos com o Estado para que se tenha conhecimento de quantas vagas há para acolher afegãos e qual o plano de acolhimento —o objetivo é facilitar oportunidades econômicas e aulas de português para os imigrantes, por exemplo.

 A seleção de quem receberá o visto seguirá sendo feita pelo governo com apoio da duas agências da ONU, a OIM (Organização Internacional para as Migrações) e o Acnur (Agência da ONU para Refugiados). Um edital com os detalhes, ainda segundo o ministério chefiado por Flávio Dino, deve sair em breve. Enquanto isso, afegãos no Brasil relatam preocupação e incerteza. 

Não apenas com essa alteração como também com o fim da concessão de vistos em algumas embaixadas, como a da Turquia, onde há vasta comunidade afegã que, ao ver seu visto temporário expirar, busca o Brasil como opção. Wahidullah Seerat, 27, formado em administração de empresas na Índia, é um dos tantos afegãos que se dizem confusos e temerosos sobre os efeitos das mudanças. Há uma semana ele mora do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, onde espera vaga em um abrigo ao lado de dezenas de famílias que têm acesso limitado a chuveiros e reclamam das condições de higiene. Ele compartilhou com a reportagem vídeos que circulam em redes sociais com as informações que, segundo o governo afirmou, estão incorretas. 

No TikTok, o vídeo de um repórter independente diz que, agora, "qualquer cidadão afegão que planeje obter um visto no Brasil precisará de apoio prévio da sociedade civil". O conteúdo teve mais de 145 mil visualizações em apenas quatro dias. Seerat viu-se forçado a se exilar do Afeganistão após organizar um evento sobre marketing em uma universidade de sua província, Badakhshan, com homens e mulheres —o regime repele eventos mistos e tem retirado os direitos das mulheres. 

Funcionários talibãs o procuraram e o ameaçaram. Até que ele fugiu para a Turquia. No país do Oriente Médio Seerat ainda tem amigos afegãos cujos vistos temporários vencerão em breve. O sonho deles, assim, era vir para o Brasil. Mas o fim da possibilidade de solicitar o visto na embaixada de Ancara frustrou essa possibilidade e, relata Seerat, os deixou em desespero. "Agora vão migrar para algum país da Europa em rotas ilegais, com risco de morrerem no trajeto." Para a Conectas Direitos Humanos, as novas medidas geram uma restrição do acesso ao território brasileiro para afegãos e terceiriza um dever do Estado. "As ONGs têm capacidade limitada e não deveriam ter responsabilidade primordial por esse serviço. 

A acolhida humanitária deveria ser uma tarefa principalmente do Estado", diz Marina Rongo, assessora da organização. "Tudo isso aumenta o tempo de espera para essas pessoas que estão numa situação extremamente grave, tentando salvar as próprias vidas. E também aumenta os riscos de tráfico de pessoas e contrabando." Já o governo afirma que um dos objetivos da mudança é justamente "evitar a exposição de migrantes ao aliciamento por criminosos". Como a Folha mostrou, um argumento-chave da decisão foi tentar conter a rota perigosa que muitos afegãos empreendem depois de chegar ao Brasil rumo aos EUA. No Terminal 2 do aeroporto de Guarulhos, não é difícil encontrar relatos de afegãos que começam a cruzar as Américas em trechos por vezes mortais, como a selva de Darién, no Panamá. Desde que iniciou a política de vistos humanitários para afegãos em 2021, pouco após o retorno do regime fundamentalista do Talibã ao poder, o Brasil emitiu ao menos 9.392 documentos. 

No país da Ásia Central, o perigo é não apenas a repressão política, mas também o colapso econômico. Dados da ONU mostram que pelo menos 15,3 milhões de afegãos vivem em insegurança alimentar aguda. Ou seja: passam fome. Das 34 províncias afegãs, 25 convivem com desnutrição. Metade das crianças de menos de 5 anos de idade e 25% das mulheres grávidas e puérperas precisam de apoio nutricional para sobreviver. O Brasil, enquanto isso, segue sendo descrito como um destino "amigável", de portas abertas. Para a veterinária Razia Rastgar, 26, foi a única oportunidade vista para buscar trabalho. 

Na província de Herat, ela atuava com organizações humanitárias que prestavam apoio a fazendeiros. Chegou a prestar serviço à FAO, organização da ONU para alimentação e agricultura. Mas há um ano o Talibã a proibiu de trabalhar quando cerceou a participação de mulheres em ONGs. Rastgar está com o marido, com quem é casada há um ano, no aeroporto, enquanto aguarda uma vaga em um abrigo —e uma oportunidade de voltar a trabalhar.