Afegãos ofertam até propina a ONGs após nova política no Brasil gerar confusão
Mudança determina concessão de vistos apenas caso seja comprovada disponibilidade de vagas em abrigos
Mayara Paixão Bruno Santos
FOLHA DE SÃO PAULO, 3/10/2023
"Olá, sou Mahsa [nome fictício], de Cabul, e estou no Irã atualmente. Trabalhava para o governo afegão e já estou há dois anos esperando um visto de acolhida humanitária. Por favor, me ajudem a conseguir o visto para o Brasil, tenho dinheiro, caso seja necessário." Mensagens como essa passaram a lotar canais de comunicação de ONGs que atuam com acolhida de migrantes no Brasil desde que o governo alterou, na última semana, a política de vistos humanitários para afegãos. A portaria entrou em vigor nesta segunda-feira (2). Ainda não há, porém, detalhamento de como as mudanças serão colocadas em prática. E é neste limbo informacional que uma confusão se instaurou entre a diáspora afegã que já está no Brasil e a que deseja emigrar fugindo do Talibã.
A desinformação está em todo lugar. A Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (Arro, na sigla em inglês), uma das ONGs que atuam com afegãos, viu saltar o número de mensagens recebidas, algumas delas com oferta de propina, desde o anúncio da nova portaria. Em nota, a Arro diz que o pouco que se sabe até aqui mostra "brechas regulatórias que, se não observadas, poderão gerar tentativas de fraudes e corrupção de todo o terceiro setor envolvido na causa".
Também critica o fato de nem as próprias ONGs terem sido procuradas para que entendam o papel a cumprir daqui para a frente. O principal ponto de dúvida está no trecho que diz que a concessão de vistos estará sujeita à existência de vagas para abrigo por organizações que tenham firmado acordos com o Estado. A informação deu margem para a interpretação de que, para vir, o migrante deve ser "convidado" por alguma ONG ou receber algum tipo de "carta de patrocínio".
À Folha o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, corresponsável pelo tema junto com o Itamaraty, afirmou que as ONGs não terão nenhuma interferência no processo de aprovação dos vistos e que nenhuma carta ou documento do tipo é necessário. Segundo a pasta, as organizações firmarão acordos com o Estado para que se tenha conhecimento de quantas vagas há para acolher afegãos e qual o plano de acolhimento —o objetivo é facilitar oportunidades econômicas e aulas de português para os imigrantes, por exemplo.
A seleção de quem receberá o visto seguirá sendo feita pelo governo com apoio da duas agências da ONU, a OIM (Organização Internacional para as Migrações) e o Acnur (Agência da ONU para Refugiados). Um edital com os detalhes, ainda segundo o ministério chefiado por Flávio Dino, deve sair em breve. Enquanto isso, afegãos no Brasil relatam preocupação e incerteza.
Não apenas com essa alteração como também com o fim da concessão de vistos em algumas embaixadas, como a da Turquia, onde há vasta comunidade afegã que, ao ver seu visto temporário expirar, busca o Brasil como opção. Wahidullah Seerat, 27, formado em administração de empresas na Índia, é um dos tantos afegãos que se dizem confusos e temerosos sobre os efeitos das mudanças. Há uma semana ele mora do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, onde espera vaga em um abrigo ao lado de dezenas de famílias que têm acesso limitado a chuveiros e reclamam das condições de higiene. Ele compartilhou com a reportagem vídeos que circulam em redes sociais com as informações que, segundo o governo afirmou, estão incorretas.
No TikTok, o vídeo de um repórter independente diz que, agora, "qualquer cidadão afegão que planeje obter um visto no Brasil precisará de apoio prévio da sociedade civil". O conteúdo teve mais de 145 mil visualizações em apenas quatro dias. Seerat viu-se forçado a se exilar do Afeganistão após organizar um evento sobre marketing em uma universidade de sua província, Badakhshan, com homens e mulheres —o regime repele eventos mistos e tem retirado os direitos das mulheres.
Funcionários talibãs o procuraram e o ameaçaram. Até que ele fugiu para a Turquia. No país do Oriente Médio Seerat ainda tem amigos afegãos cujos vistos temporários vencerão em breve. O sonho deles, assim, era vir para o Brasil. Mas o fim da possibilidade de solicitar o visto na embaixada de Ancara frustrou essa possibilidade e, relata Seerat, os deixou em desespero. "Agora vão migrar para algum país da Europa em rotas ilegais, com risco de morrerem no trajeto." Para a Conectas Direitos Humanos, as novas medidas geram uma restrição do acesso ao território brasileiro para afegãos e terceiriza um dever do Estado. "As ONGs têm capacidade limitada e não deveriam ter responsabilidade primordial por esse serviço.
A acolhida humanitária deveria ser uma tarefa principalmente do Estado", diz Marina Rongo, assessora da organização. "Tudo isso aumenta o tempo de espera para essas pessoas que estão numa situação extremamente grave, tentando salvar as próprias vidas. E também aumenta os riscos de tráfico de pessoas e contrabando." Já o governo afirma que um dos objetivos da mudança é justamente "evitar a exposição de migrantes ao aliciamento por criminosos". Como a Folha mostrou, um argumento-chave da decisão foi tentar conter a rota perigosa que muitos afegãos empreendem depois de chegar ao Brasil rumo aos EUA. No Terminal 2 do aeroporto de Guarulhos, não é difícil encontrar relatos de afegãos que começam a cruzar as Américas em trechos por vezes mortais, como a selva de Darién, no Panamá. Desde que iniciou a política de vistos humanitários para afegãos em 2021, pouco após o retorno do regime fundamentalista do Talibã ao poder, o Brasil emitiu ao menos 9.392 documentos.
No país da Ásia Central, o perigo é não apenas a repressão política, mas também o colapso econômico. Dados da ONU mostram que pelo menos 15,3 milhões de afegãos vivem em insegurança alimentar aguda. Ou seja: passam fome. Das 34 províncias afegãs, 25 convivem com desnutrição. Metade das crianças de menos de 5 anos de idade e 25% das mulheres grávidas e puérperas precisam de apoio nutricional para sobreviver. O Brasil, enquanto isso, segue sendo descrito como um destino "amigável", de portas abertas. Para a veterinária Razia Rastgar, 26, foi a única oportunidade vista para buscar trabalho.
Na província de Herat, ela atuava com organizações humanitárias que prestavam apoio a fazendeiros. Chegou a prestar serviço à FAO, organização da ONU para alimentação e agricultura. Mas há um ano o Talibã a proibiu de trabalhar quando cerceou a participação de mulheres em ONGs. Rastgar está com o marido, com quem é casada há um ano, no aeroporto, enquanto aguarda uma vaga em um abrigo —e uma oportunidade de voltar a trabalhar.
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