BEM ANTES DE JAMES BOND
Cecilia Prada
revista PROBLEMAS BRASILEIROS ( SESC-SP), 2004
A Crônica de uma guerra secreta (Record - 2004), escrita pelo diplomata e historiador Sergio Corrêa da Costa, é obra de importância maior da nossa historiografia e capaz de provocar uma leitura apaixonada, um amor à primeira vista, uma funda impressão, no leitor. O autor já começara a realizar em livro anterior, Brasil- segredo de Estado (Record - 2001), um projeto pessoal: embaixador aposentado, empreendera então a tarefa de desvestir-se em público de sua personalidade mais convencional e conhecida durante todo sua carreira ativa na diplomacia. Durante a qual vira-se sem dúvida privilegiado, mas certamente limitado desde sua juventude pela circunstância de ser genro do Chanceler Oswaldo Aranha. Oficialmente encaixado, portanto, no setor mais integralista do Governo Vargas, para assumir - qual moderno Zorro - a outra “profissão”, mais interessante, à qual sempre se dedicara e que mantivera em sigilo absoluto, desconhecida até de sua mulher e de seus filhos. Ou seja: a de investigador e descobridor de alguns dos mais instigantes segredos da história do Brasil.
Em 1940, recém-admitido ao Itamaraty, descobrira em seu arquivo documentos secretos sobre a revolta dos mercenários alemães e ingleses que serviam na guarnição do Rio de Janeiro, em 1828 - realizada com o apoio secreto do governo argentino e inclusive com a possível participação dos então-exilados Andradas. Se no livro anterior contava como no período de 1944/46 - já no posto de terceiro-secretário, na embaixada em Buenos Aires - conseguira fotografar, “com a perícia de um James Bond, documentos ultra-secretos, altamente comprometedores do governo argentino” (hoje expostos na Academia Brasileira de Letras), é somente no livro de 2004 que conta com detalhes essa proeza. Vencendo “meio século de discrição absoluta”, desvenda seu disfarce de então, a falsa personalidade de “Juan Gutiérrez” que assumiu, inclusive com documentos de identidade falsos, para poder penetrar e agir livremente no Archivo General de la Nación, na repressora Argentina de Perón.
Mas esse episódio, que em si já valeria um romance de capa e espada, é apenas a ouverture, o aperitivo de uma obra realmente estonteante: a revolta de 1828 foi apenas o estopim da curiosidade do jovem diplomata dos anos 40. O estímulo de que necessitava para se lançar, corpo e alma, numa autônoma e sutil atividade de agente de espionagem, disposto a desvendar todos os segredos diplomáticos que pairavam, abundantes, no relacionamento entre o Brasil e a germanófila Argentina, naquele final da Segunda Guerra Mundial.
O livro resultante, que leva como sub-título Nazismo na América: A conexão Argentina, é o mais completo e detalhado mapeamento da extensão, da gravidade da infiltração nazista na América do Sul, e seu público-alvo é “sobretudo a mocidade estudiosa, para que conheça a extensão dos riscos que rondaram o nosso país na década de 1940”. Declara Corrêa da Costa que nunca se contentou em acompanhar os acontecimentos à distância: “Passou a ser quase uma ideia fixa participar, de algum modo, da ação que se desenrolava à minha volta. Posso assegurar que muita coisa se passava, tanto na superfície como nos bastidores”. Quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, em 1942, o jovem diplomata não hesitou em alistar-se nas Forças Armadas - onde, no Curso de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), encontrou um capitão que teria a maior influência sobre a orientação posterior de toda a sua carreira. Esse oficial mostrou-lhe documentos que provavam a infiltração nazista no Brasil, ressaltando “o número significativo de militares germanófilos no nosso exército” e “os riscos que oferecia a infiltração integralista, notadamente na marinha”. E contribuiu para que a escolha do primeiro posto de Corrêa da Costa fosse inteiramente consciente - Buenos Aires, tida como sede da irradiação fascista no continente. “Se eu pudesse ir”, diz, “as informações seriam de primeira mão”.
O que nos dá agora é o mais completo levantamento dos bastidores diplomáticos, da extensa rede de espionagem internacional, com uma riqueza tal de casos e detalhes que a nossa atenção não se desvia do texto um minuto - é um livro este que se devora como se fosse um romance. Ao mesmo tempo em que vamos formando uma ideia exata das circunstâncias do ambivalente Brasil de Vargas, enredado nos conflitos ideológicos da época - cujos caminhos o autor percorre, do alinhamento totalitário do Estado Novo, do levante comunista de 1935 e do integralista de 37, à formação da grande comunidade alemã nos estados do Sul. Uma população que figurava nos planos de Hitler (secundados por Perón) como um verdadeiro exército de Volksdeutsche, força de combate a ser empregada no momento oportuno para subjugação de um país considerado “inferior, racialmente híbrido”, que seria forçosamente desmembrado e dominado. Segundo o censo de 1940, mais de 600 mil brasileiros natos nessa região utilizavam exclusivamente a língua alemã na família; frequentavam escolas alemãs e chegavam a ser treinados militarmente por agentes nazistas infiltrados.
Em Buenos Aires, nos anos finais da Guerra e no imediato pós-guerra, nosso “James Bond” prosseguiu suas pesquisas históricas, integrando-as com sua vivência do momento - o propósito do governo argentino de assumir a todo custo a hegemonia do continente era exatamente o mesmo, em 1828 como na década de 1940. E se o caudilho Dorrego não hesitara então em tramar até um sequestro do Imperador D.Pedro I para realizá-lo, seu herdeiro Juan Perón não deixava por menos. Corrêa da Costa estuda com minúcias o personagem Perón (e depois também Evita), e deixa expostas todas as tramas da camarilha de oficiais do Grupo de Oficiales Unidos (GOU) que o levou ao poder. Reproduz o manifesto-programa desse grupo, documento classificado como ultra-secreto durante muitos anos, no qual afirmavam : “A luta de Hitler na paz e na guerra, nos servirá de guia”. Definiam a necessidade do estabelecimento de uma política de alianças com outros países sul-americanos, com o objetivo explícito de atrair “facilmente o Brasil, graças à sua forma de governo e aos grandes núcleos de alemães. Caído o Brasil, o continente sul-americano será nosso”.
Com sua enorme erudição, o historiador interrompe a narração dos acontecimentos do período para remontar às fontes mais antigas do pan-germanismo de final do século XIX-início do século XX, cuja rationale não deixava dúvidas: “Como dispomos da força, podemos dispensar o direito”. E que tinha o propósito, já em 1916, de tomada “da parte meridional do Brasil, onde reina a cultura alemã”.
Embora Perón declarasse que o destino da Argentina estava intimamente ligado ao da Alemanha de Hitler, não esmoreceu com o término da guerra e a derrota alemã. Prosseguiu implacavelmente nos seus propósitos e investiu maciçamente em uma consciente, constante e explícita transferência de líderes nazistas e criminosos de guerra para seu país, tentando inclusive apropriar-se da tecnologia nuclear acumulada por Hitler. O fracasso da sua “bomba atômica” caseira, “fabricada” em 1952 por um cientista louco e de segunda, Ronald Richter, tornou-se assunto de galhofa e representou o começo do fim de sua pantomima trágica.
Mas o legado da sua “nazificação” persistiu, como provam a documentação e as estatísticas fornecidas por Corrêa da Costa. Diz ele que antes mesmo do suicídio de Hitler expoentes do fascismo italiano e do nazismo já estavam com suas bagagens em território argentino, no qual deveria renascer, das cinzas do Terceiro Reich, o Quarto Reich, ainda mais apto e mais bem equipado para o domínio da Europa e do mundo. Um relatório de 1947 estimaria em 90 mil o número dos nazistas alemães que se encontravam convenientemente instalados no país. Entre eles alguns dos piores e mais procurados carrascos nazistas.
O mais estarrecedor, como não hesita em denunciar o respeitado diplomata, é o envolvimento comprovado do Vaticano durante o pontificado de Pio XII, nessa operação maciça de ocultamento e evasão que desde 1945 trilhou a “rota dos conventos”(também conhecida como “caminho dos ratos”) -–abarrotando os conventos italianos de fugitivos, alguns dos quais escondidos durante anos a fio, e fazendo funcionários do alto escalão do Reich atravessarem em segurança postos de controle aliados, envergando hábitos religiosos.
Como o próprio vice-Führer Martin Bormann, que, disfarçado de jesuíta e munido de passaporte falso (fornecido pelo Vaticano), chegou à Argentina em 17/5/1948, sendo acolhido pelo Ministro da Guerra Sosa Molina, representante de Perón.
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