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segunda-feira, 3 de julho de 2023

Augusto de Franco sobre as democracias e as autocracias

Uma canja. Capítulo 33 do meu novo livro Como as democracias nascem

Augusto de Franco : 

Como Nascem as Democracias

A RAIZ DO REALISMO POLÍTICO

“A teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal”.

O realista Kissinger (1994), em Diplomacy, interpretando o pensamento de Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” (1).

O realismo político acabou virando uma vertente de política externa ou internacional. Não nasceu assim, porém. Nasceu como um pensamento antipolítico, para efeitos, na verdade, internos.

Há uma tradição autocrática no pensamento político. É essa tradição que constitui o chamado realismo político. Começa com Platão, passa por Maquiavel, Hobbes, pelo Cardeal Richelieu, por Clausewitz, pelos chamados “políticos do poder”, como Metternich e Bismarck e vários outros até chegar aos realistas modernos como Schmitt, Morgenthau e Carr e aos contemporâneos, como, para citar apenas alguns exemplos, Brzezinski, Genscher, Ross, Kissinger e o novo crush dos autocratas de direita e de esquerda chamado John Mearsheimer. Este capítulo é sobre isso. Mas não vai comentar exaustivamente as ideologias desses autocratas e sim apenas chamar a atenção para alguns padrões antidemocráticos que estão presentes nos seus pensamentos.

Platão

Podemos dizer – sem medo de errar – que o realismo político nasceu com Platão, quer dizer, tem a ver com os fundamentos dos regimes de Esparta, Creta e Siracusa, não com os fundamentos do regime que vigorou em Atenas nos séculos 5 e 4 a.C. Sua raiz é dória, não jônia. E as tentativas de atribuí-lo originalmente a Tucídides são inconsistências inventadas por acadêmicos americanos.

Platão, nas Leis (626a), escreveu que “na realidade, por questões de natureza (φύσις), todas as póleis vivem envolvidas em um estado de guerra velada”. Bem… aí com certeza começou, no plano teórico, o chamado realismo político. O primeiro problema dessa afirmação platônica não é constatar que as póleis (entendidas erroneamente como cidades-Estado) vivem em estado de guerra e sim achar que isso ocorre por algum tipo de deteminação natural, da phýsis, como qualidade ou propriedade constitutiva de todas as coisas ou sua maneira de ser. O segundo problema é não ver que a pólis, numa democracia (onde Platão vivia, embora a ela se contrapusesse), não é a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como percebeu Hannah Arendt (1958), em A condição humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses” (2).

Avancemos agora pouco mais de dois milênios para constatar como os padrões autocráticos se replicam em outras regiões do tempo. Hans Morgenthau (1948), um dos principais teóricos do realismo político, acreditava que “a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na natureza humana”. Eis aí, desnudado, o pressuposto ideológico platônico antipolítico. Natureza humana é uma natureza (não, com perdão do neologismo, uma “socialeza”). Natureza, Deus ou História (tudo assim com maiúsculas) dá no mesmo. É uma instância extra-política determinando a política a despeito da interação propriamente política entre as pessoas. Se há algo infenso à política, determinando a política, não pode haver democracia.

Bastaria dizer isso. Mas partamos de uma definição, quase escolar, de realismo político antes de examinar os pensamentos de alguns realistas políticos.


Realismo político é guerra

Em poucas palavras e simplificando ao máximo (o que não é tão inadequado, pois suas construções intelectuais são simplórias), o realismo político parte da constatação de que, não havendo uma instância normativa no plano internacional (uma autoridade máxima à qual os Estados devam se submeter), cada Estado – sim, todo realismo é um estatismo: o sujeito é sempre o Estado, a sociedade é um dominium do Estado – deve garantir a sua própria segurança, agindo em nome de um interesse nacional.

Em nome desse interesse nacional, definido pelo próprio Estado, cada ator deve lutar para aumentar o seu poder (em geral traduzido como capacidade militar, mas não só), para impor sua vontade a Estados mais fracos. Cada Estado deve então decidir por si mesmo se e quando vai usar sua força para alcançar seus objetivos (ou realizar seus interesses).

A colaboração entre Estados, no limite, leva a abrir flancos perigosos, pois o aliado de hoje pode se tornar o inimigo de amanhã (o que é bem resumido na máxima autocrática: “os aliados lhe enfraquecem, os inimigos lhe fortalecem”).

Como não há democracia no plano internacional, não há lei (quer dizer, império da lei) ou critério ético-político a que um Estado deva se submeter. Logo, a única maneira de garantir a sobrevivência do Estado como entidade é organizar-se para se defender de um possível ataque de outros Estados.

Para garantir a paz (entendida como manutenção da integridade do Estado) é necessário se preparar para a guerra por meio da defesa (e por isso toda defesa é guerra preemptiva). E como o sistema é competitivo, a única maneira de evitar a guerra é alcançar um equilíbrio de forças que desestimule, por medo da retaliação, que um Estado faça guerra contra outro e o destrua.

Bem, trata-se de uma definição quase escolar, mas nem por isso incorreta. Pelo menos deixa claro que falar do realismo é falar de guerra. Não, não é falar de outra coisa. É o óbvio. Mas agora vem uma inferência não tão óbvia: toda guerra é interna. Este é o primeiro ponto a ser entendido. Para entendê-lo, porém, é preciso balançar algumas certezas.

Para começar, guerra não é o conflito. É um modo de regular o conflito. E guerra não é o conflito violento. Pode ser praticada sem violência (física), como guerra fria e como política adversarial (a política como continuação da guerra por outros meios).

Depois é preciso ver que guerra não é destruição de inimigos e sim, pelo contrário, construção e manutenção de inimigos (tanto faz se for a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de Orwell).

Em seguida é necessário entender que a guerra não tem como objetivo principal derrotar um país estrangeiro a não ser na medida em que isso puder ser usado para instalar internamente um ‘estado de guerra’ (não adianta derrotar um inimigo externo se não se derrotar os inimigos internos, quer dizer, se a força política que está no poder de Estado não continuar estabelecendo sua supremacia). O objetivo da guerra – para quem a faz (e como dizia Maturana, “a guerra não acontece, nós a fazemos”) – é instalar um estado de guerra que enseje, permita e justifique a ereção de estruturas hierárquicas regidas por modos autocráticos. Ou seja, a guerra é um engendramento para possibilitar uma reorganização do cosmo social. Em outras palavras, para impor uma ordem preconcebida em vez de deixar que diversas ordens emerjam da interação, o que acontece toda vez que tomamos a liberdade como sentido da política (e não a ordem). Este ponto é fundamental, porque a democracia é apenas a política que não tem uma ordem pronta (preconcebida) para colocar no lugar de outra, mesmo que essa ordem seja avaliada como a mais perfeita e justa do universo.

Aqui é preciso entender, para resumir, que não é apenas que autocracias façam guerras: a guerra já é a autocracia. E toda autocracia é sempre uma guerra contra um inimigo interno (ainda que um inimigo externo possa existir objetivamente).

Voltemos agora aos pensadores realistas para corroborar essas primeiras impressões.


Schmitt

O jurista e estudioso político alemão Carl Schmitt, publicou, em 1932, um famoso livro intitulado O conceito do político, que provocou grande controvérsia sobre um suposto militarismo ou belicismo presente nas suas concepções. Sua posição foi encarada como realista, pelo fato de ele admitir (mesmo sem desejar, ou propor) que a guerra é o pressuposto sempre presente como possibilidade real em qualquer relação política. De qualquer modo, não há como negar que, para conceituar o político, Schmitt insiste demais nas noções de guerra e de inimigo, deixando de tratar, com a mesma atenção – e isso não pode ser por acaso –, dos conceitos de paz e de amigo.

Não cabe aqui entrar na controvérsia nos termos em que ela foi colocada. Talvez seja necessário dizer apenas que, para Carl Schmitt, “a diferença especificamente política… é a diferença entre amigo e inimigo”. Ainda que ele tente fazer uma distinção entre inimicus em seu sentido lato (o concorrente comercial, “o adversário particular que odiamos por sentimentos de antipatia”) e hostis (o inimigo público, o combatente que usa armas para destruir meu contexto vital, enfim, o inimigo político), parece claro que Schmitt não via diferença de natureza entre guerra e política. Tanto é assim que ele afirma que “a guerra, enquanto o meio político mais extremo, revela a possibilidade subjacente a toda concepção política, desta distinção entre amigo e inimigo” (3). Quer dizer que, para ele, conquanto seja um “meio extremo”, a guerra é um meio político. Do contrário ele deveria ter afirmado que a política pode levar à guerra, deixando de ser o que é (mudando, portanto, sua natureza) e não que a guerra é um meio político, pois que, assim, ao fazer guerra, ainda estamos fazendo política.


Pode-se perceber em Carl Schmitt um viés realista da chamada realpolitik. Contrapondo-se ao idealismo, o realismo político é uma política baseada no “equilíbrio do poder”, na linha do pensamento e da prática do Cardeal Richelieu – com sua “razão de Estado” (“raison d’état”) colocada acima de qualquer princípio moral – e dos chamados “políticos do poder”, como os já citados Metternich, Bismarck e, mais recentemente, Kissinger (1994), segundo a qual – e ele escreveu isso interpretando o pensamento do presidente Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” – “a teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal” (4).

O ponto da discussão é o seguinte: se pode haver guerra como meio político, então devemos ser realistas o suficiente para praticar a política como quem conta com tal possibilidade (e se prepara para isso, o que acaba, quase sempre, sendo a mesma coisa que praticar a política como “arte da guerra”). Ao proceder desse modo, separando os amigos políticos dos inimigos políticos (os que podem nos combater), cristalizamos aquela relação de inimizade que pode levar à guerra (e que, de qualquer modo, leva à prática da política como uma “arte da guerra”).

O problema é que isso não vale apenas para a relação entre Estados soberanos, mas acaba deslizando – inevitavelmente – para todas as relações políticas (Richelieu usava a “lógica” da tal “razão de Estado” para manter o seu poder internamente e não apenas nas relações internacionais da França). Amigo, então, passa a ser todo aquele que está de acordo com nosso projeto e inimigo todo aquele que discorda do nosso projeto. Ora, se quero afirmar o meu projeto, então devo derrotar ou destruir (na verdade, incapacitar) aqueles que podem inviabilizar a sua realização e isso deve ser feito, inclusive, preventivamente, antes que eles (os outros, os inimigos) consigam inviabilizar meu projeto ou substituí-lo pelos projetos deles. Preempção.

Há uma linha divisória muito fina entre derrotar e destruir o projeto do outro e derrotar e destruir o outro como ator político, quer dizer, como alguém que pode apresentar um projeto diferente (que não é o meu). Assim, basta alguém não estar de acordo com meu projeto (político), para poder ser classificado como inimigo (político), pelo menos em potencial.

Esse ponto de vista, portanto, não cogita muito da possibilidade de transformar o inimigo político em amigo político, convencendo-o, ganhando-o para o nosso projeto ou adotando outro projeto, um terceiro projeto, que contemple ambos os projetos (o nosso e o dele). O realismo indica que isso não ocorrerá, pelo simples fato de ele (o outro), para usar o pensamento de Carl Schmitt, não ser um eu-mesmo – o que significa, paradoxalmente, convenhamos, uma construção ideal do inimigo, aquele que deve ser desconstituído como ser político enquanto ameaçar a realização do meu projeto. Não podendo ser destruído de pronto, tal inimigo, pelo menos, deverá ficar em seu canto, respeitando meu espaço, caso contrário será destruído mais tarde ou a qualquer momento: a isso se chama “equilíbrio de poder”. Configura-se assim uma situação de luta permanente, levando a uma política adversarial ou geradora de inimizade. Porque o outro, em vez de ser considerado como um possível parceiro, um aliado ou colaborador, é visto, antes de qualquer coisa, como um potencial inimigo.

Na verdade, o inimigo como construção ideal passa a ser uma peça funcional do nosso esquema de poder, quer dizer, da nossa política (ou antipolítica). Sem o inimigo, desconstitui-se a realpolitik e o tipo de poder que ela visa sustentar, em geral baseado na necessidade de preservação de uma determinada ordem que precisa ser mantida contra o perigo representado pelo inimigo. É para manter essa ordem que se instaura então, internamente, o “estado de guerra” que consiste em uma preparação para a guerra externa (que pode vir ou não, pouco importa) mas sempre em nome da paz (pois que só alguém preparado para a guerra pode manter a paz). E o mais grave é que esse “estado de guerra” interna pode se referir tanto ao âmbito de um país diante de outros países, como ao de uma organização em conflito real ou potencial com outras organizações, como, por exemplo, ao de um governo confrontado por partidos de oposição. O raciocínio, como se vê, é uma perversão, mas o fato de ele ser aceito tão amplamente indica que as tendências de autocratização da democracia ainda estão na ofensiva em relação às tendências de democratização da democracia.

Toda política que admite a guerra como um de seus meios acaba sendo uma política adversarial, baseada na luta constante para destruir o inimigo ou para manter o “equilíbrio de forças” (e deve-se notar que, aqui, a política já começa a se constituir sob o signo da força e não do poder – uma distinção tão cara à Johanna Arendt). Para a realpolitik, a única realidade política – inexorável – é a da interação de forças e, assim, o único critério político deve ser o da correlação de forças. Devo, sempre, fazer tudo o que for possível para alterar a correlação de forças a favor do meu projeto (ou a meu favor, quando se trata de um projeto pessoal, de uma agenda própria – como, aliás, sempre acontece). A política passa a ser uma luta constante para atingir tal objetivo, quando não deveria ser; ou seja, como escreveu Michelangelo Bovero (1988) em Ética e política: entre maquiavelismo e kantismo, a política não deveria ser luta e sim impedir a luta: não combater por si próprio, mas resolver e superar o conflito antagônico e impedir que volte a surgir (5).

Não são apenas as teorias políticas que estão, em sua maioria, contaminadas pela visão perversa do clausewitzianismo invertido (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A chamada sabedoria política tradicional também se baseia, totalmente, nas regras da luta política como “arte da guerra” ou na prática da ‘política como uma continuação da guerra por outros meios’, pois parece claro que, na maioria dos casos, essa sabedoria não se refere à guerra propriamente dita, aquela em que ocorre a violência física: aqui estamos tratando do ânimo adversarial, que tanto está por trás da guerra quanto da política adversarial ou competitiva.


De Hobbes a Clausewitz

Thomas Hobbes (1651) – que era autocrático, mas não desprovido de inteligência – já havia percebido que “a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal…” (6).

Conquanto acumule uma grande dose de sabedoria, a tradição política é autocrática, não democrática. Essa sabedoria dos grandes chefes e articuladores políticos, tão admirada pelos políticos tradicionais e pelas almas impressionáveis, tem pouco a ver com a democracia.

Sabedoria não significa democracia nem constitui um requisito para a boa prática democrática. A democracia não é uma tradição: é um acaso; é um erro no script da Matrix, uma falha no software dos sistemas autocráticos.

O conjunto dos ensinamentos oriundos da sabedoria política tradicional induz a um comportamento que gera inimizade e que, consequentemente, exige a prática da política como “arte da guerra”. Tudo está baseado, no fundo, em vencer o adversário, desarmar seu projeto político, ou seja: desorganizar suas forças e, sobretudo, impedir que se reúnam os meios necessários à sua existência como ator político.

Do ponto de vista da democracia – não há como negar – isso tudo é uma perversão. Se existe uma ética da política e essa ética é – ou só pode ser – a democratização, então o recurso da guerra (no sentido da prática da política como “arte da guerra”) deve ser visto como violador dessa ética e, assim, como o comportamento a ser evitado.

Em política, a guerra (quer dizer, a política pervertida como “arte da guerra”) não acontece em função da existência objetiva do inimigo, mas em função de nossas opções de encarar o outro como inimigo e de tentar destruí-lo (mas, na verdade, mantê-lo como impotente para nos destruir). Tais opções só são feitas se estivermos montando ou mantendo um sistema autocrático de poder, que exige o inimigo para a sua ereção ou para o seu funcionamento como tal (quer dizer, como um sistema não-democrático de organização e resolução de conflitos).

Clausewitz (1832) tinha razão, segundo certo ponto de vista, quando dizia que a guerra é uma continuação da política por outros meios: se ficar claro que essa continuação não é mais política e que a política capaz de ter tal continuação é uma política praticada como “arte da guerra”. A chamada “fórmula inversa” (a ‘política como continuação da guerra por outros meios’) é que é perversa, pois a guerra não pode levar à política a menos que queiramos estabelecer a impossibilidade da democracia. Políticas que conduzem à guerra são autocráticas. Coletividades que praticam a democracia não guerreiam entre si (na exata medida em que a praticam).

Há um fundamento hobbesiano na visão da política como continuação da guerra por outros meios. No famoso capítulo XIII do Leviatã, Hobbes (1651) decreta que “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a política. Segundo ele, “na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal explicaria por que, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz” (7).

Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (8).

O mesmo fundamento hobbesiano para a visão da política como continuação da guerra por outros meios – ao assumir que não pode haver sociedade (civil) sem Estado – conspira contra os pressupostos da democracia.

Enfim, a luta política como “arte da guerra”, cria a guerra e obstrui a democracia. Lembrando novamente do que disse certa vez Maturana, a guerra não acontece: nós a fazemos (9). E como a fazemos? Ora, praticando a “arte” de operar as relações sociais com base no critério amigo x inimigo. Toda vez que fazemos isso estamos, caso se possa falar assim, armando ou fazendo guerra. Não necessariamente a guerra tradicional, “quente” e declarada, entre países ou grupos dentro de um país, a guerra com derramamento de sangue, mas também aquelas formas de guerra “fria” e não instalada: a “guerra sem derramamento de sangue” (como Mao definia a política), a “guerra sem mortes” (como George Orwell definia o esporte competitivo), a paz dos impérios (lato sensu, quer dizer, a paz estabelecida pelo domínio) e a paz como preparação para a guerra, o “estado de guerra” (interno) instalado em função da guerra (externa) ou de sua ameaça (ou, ainda, da avaliação, subjetiva, da sua possibilidade); enfim, a prática da política como “arte da guerra” que compreende: os modos de regulação de conflitos em que a produção permanente de vencedores e vencidos gera inimizade política, os padrões de organização compatíveis com esses modos de regulação de conflitos e o clima adversarial que se instala consequentemente nos coletivos humanos que os praticam.

Para captar os conceitos (na verdade os preconceitos) fundantes é ocioso passear pelos demais realistas. Aí acima estão os principais fundamentos do realismo político e por que eles são incompatíveis com os fundamentos da democracia (um modo pazeante – não-guerreante – de regulação de conflitos). Mas é preciso dizer algo a mais para chegar à conclusões aplicáveis aos tempos que correm.

O que aprendemos sobre o realismo político

São três os principais aprendizados decorrentes da análise democrática do realismo político:

1 – O realismo político é uma ideologia.

2 – O realismo político é um culto ao Estado.

3 – O contrário do realismo político é a democracia.


Examinemos cada um desses aprendizados.

O credo realista. O realismo é uma ideologia que se escuda em uma suposta ciência (às vezes chamada de geopolítica) para não se reconhecer como tal (como uma ideologia). Da constatação de que o mundo está assim, ele passa de contrabando a ideia que o mundo é assim. Como disse John Mearsheimer, respondendo a um jornalista do New Yorker que lhe perguntava se não devemos pensar em tentar criar um mundo onde nem os EUA nem a Rússia se comportem de maneira intervencionista: “Não é assim que o mundo funciona” (10).

As crenças em que se baseia a ideologia realista são, basicamente, as seguintes: a) o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo; b) as pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus próprios interesses ou preferências (ao fim e ao cabo egotistas); c) sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva; e d) nada pode funcionar sem hierarquia. Infelizmente extravasa o escopo deste capítulo mostrar que essas crenças estão presentes no subsolo das concepções realistas da política. Mas talvez nem seja tão necessário fazer isso (para os propósitos do presente escrito): estes são fundamentos hobbesianos ou decorrentes do hobbesianismo, como o darwinismo social.

O culto ao Estado. O protótipo de qualquer hierarquia (stricto sensu, como poder sacerdotal) é o Estado (e sua forma histórica inaugural, que é o Estado-Templo mesopotâmico).

O realismo é um culto ao Estado. Poder é poder de Estado (degenerado como força). Os Estados são os únicos atores que contam. Para quem adota o realismo político (como uma espécie de religião laica, pois é isso que ele é) não faz nenhum sentido continuar defendendo a democracia. A democracia não se baseia nos interesses dos Estados e sim nos desejos das pessoas. Desejos? Pessoas? Tudo isso é irrelevante para a realpolitik, para a política do poder (como exercício ou ameaça do exercício da força – o que é, a rigor, uma antipolítica).

Não existe a sociedade como forma de agenciamento autônoma. Como já foi dito anteriormente, a sociedade é um dominium do Estado (na acepção feudal mesmo do termo).

Continua...