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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Rubem Valentim: artista afro-brasileiro - Semana do Patrimônio Histórico e Artístico no Itamaraty

Semana do Patrimônio Histórico e Artístico no Itamaraty

Rubem Valentim


(Salvador/BA, 1922 – São Paulo/SP, 1991) 

 

Escultor, pintor e gravador. Nasceu em 1922 em Salvador, numa família de poucos recursos, e foi o primeiro de 6 filhos. Cresceu tendo contato íntimo com a religiosidade sincrética afro-brasileira: sua família era católica, e Rubem Valentim fez primeira comunhão, e também frequentava terreiros de candomblé. Com o pai, participava de cerimônias em diversos terreiros de candomblé, tanto da tradição nagô-jeje quanto candomblés de caboclo: o de Tia Maci, no Engenho Velho, o de Mãe Menininha, no Gantois, o de Júlio Branco, no Bate-Folha, e o da Sabina. O artista relatou seu duplo deslumbramento e seu envolvimento estético tanto com o rito afro-brasileiro quanto com a imaginária católica das igrejas, das quais ele se lembrava especialmente dos santos barrocos. 

Suas primeira experiências artísticas se deram ainda na infância, quando ele fabricava balões e pipas, algumas das quais vendia para obter dinheiro. Também auxiliava a mãe na preparação de presépios de natal e de altares de Santo Antônio, São Cosme e Damião e do Senhor do Bonfim. Foi nessa época que começou a praticar a pintura, compondo os fundos dos presépios. Com um pintor chamado Artur "Come Só", amigo da família que fazia periodicamente a decoração da casa, aprendeu técnicas de pintura e produziu sua primeira têmpera: cola de marceneiro, água de cola e pigmento xadrez. Começou a pintar em papel, de forma mais espontânea, e só tomou contato com uma instrução artística mais formal e acadêmica durante o ginásio, quando começou a frequentar a Escola de Belas Artes. 

Vendeu agulhas e óleo de costura, trabalhou em um cartório e prestou serviço militar durante a II Guerra Mundial, estudando na escola militar. Tomou contato com ideias do marxismo e travou amizade com diversos integrantes do Partido Comunista. Pensando em conciliar a produção artística, à qual começou a se dedicar ainda de forma amadora, com outra profissão, Estudou Odontologia entre 1940 e 1944 (período em que trabalhou na Ordem dos Advogados organizando a biblioteca) e exerceu a profissão por dois anos, com o intuito de subvencionar sua pintura. Chegou a participar de um consultório odontológico, mas optou por abandonar a profissão para se dedicar à arte, mesmo com o desapontamento da família. 

Em 1948, aproximou-se de um grupo de artistas agrupados em torno da revista Caderno da Bahia, incluindo Mário Cravo Jr., Carlos Bastos, Raymundo de Oliveira, Jenner Augusto e Lygia Sampaio, além dos escritores Wilson Rocha, Cláudio Tavares e Vasconcelos Maia. Juntos, deram início a um movimento de renovação modernista nas artes plásticas na Bahia. Foi também nesse ano que teve seu primeiro contato importante com a arte moderna, por ocasião de uma exposição na Biblioteca Pública de Salvador. Passou a praticar a pintura, elaborando composições próprias e realizando cópias de obras europeias - o artista ressaltou como as cópias de Cézanne o ajudaram a compor. 

Matriculou-se em 1949 um curso de Jornalismo na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia. Não visava a seguir carreira jornalística, mas procurava uma formação humanista mais abrangente. Formou-se em 1953. Começou a realizar experimentações com o abstracionismo, no que foi criticado por alguns amigos ligados ao Partido Comunista na Bahia, que afirmavam que o abstracionismo seria um estilo "burguês" e "decadente". O artista contou ter passado ao abstracionismo a partir de exercícios de desenho sobre veios da madeira. Em 1949, participou de sua primeira exposição no I Salão Baiano de Belas Artes, inclusive com uma tela abstracionista que foi selecionada por um membro do júri. Chegou a destruir completamente o ateliê em 1951, mas logo voltou a pintar. 

Juntamente com os demais artistas do grupo em torno do Caderno da Bahia, começou a questionar a tradição brasileira de copiar os modelos e estilos europeus, e então passou a extrair da cultura popular e do candomblé um fundamento para uma linguagem artística nacional. Começou a incorporar os signos do candomblé em sua pintura por volta de 1953/1954. Seu primeiro prêmio foi obtido no VII Salão Baiano de Belas Artes. A transferência para o Rio de Janeiro, em 1957, consolidou o amadurecimento de sua obra. Sua obra abstrata e geométrica e seus escritos sobre arte no jornal não tinham muita aceitação na Bahia, sendo condenados pelos marxistas baianos. Porém, foi bem recebida no Rio de Janeiro, pelo crítico marxista Mário Pedrosa e por outros. 

Casou-se em 1961 com Lúcia Alencastro, artista plástica pioneira em arte-ecudação e fundadora da Escolinha de Arte do Brasil. Em 1962, recebeu dois importantes prêmios: o prêmio de Melhor Exposição do Ano da Associação Brasileira de Críticos de Arte, e o prêmio de Viagem ao Exterior do XI Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Viajou à Europa no ano seguinte e, antes de se fixar em Roma, viveu em Bristol (Inglaterra) acompanhando a mulher, bolsista da Bath Academy of Art de Londres. Viajou ainda pela França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Áustria, Espanha e Portugal antes de se fixar em Roma, onde participou das bienais de Veneza entre 1964 e 1966. Em visitas aos museus europeus, interessou-se especialmente pela arte africana, e participou em 1966 do I Festival Mundial de Arte Negra de Dacar (Senegal). 

Retornou ao Brasil em 1966 e fixou-se em 1967 Brasília, aceitando o convite do Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília para lecionar pintura. Não se adaptando à burocracia da função docente, desligou-se da Universidade mas permaneceu na cidade, onde sua arte sofreu um grande desenvolvimento que levou à elaboração de suas esculturas. Sua carreira ganhou grande projeção nacional e internacional. Em 1972, realizou sua primeira obra pública, um mural de mármore no edifício-sede da Novacap, em Brasília. 

Em 1977, criou o Centro Cultural Rubem Valentim em Brasília. O objetivo da instituição era constituir um espaço para a produção, a divulgação, a exposição e a discussão de uma visualidade brasileira nas artes plásticas. O própri artista afirmou: "o Centro Cultural dará enfase às manifestações artísticas e culturais ligadas às nossas tradições, encaradas dinamicamente. Será um centro de cultura resistente, aglutinador dos fluxos e influxos vindos de todo o Brasil. Debateremos a arte brasileira sem dogmatismos ou sectarismos, mas vamos ver se é viável uma teoria da arte brasileira." Contudo, problemas burocráticos dificultaram a realização desse projeto. Em 1982, sentindo-se distante dos grandes centros culturais do Brasil e desiludido com as dificuldades relativas ao seu centro cultural, passou a dividir residência entre a capital federal e São Paulo. Continuou produzindo até sua morte, ocorrida em São Paulo em 1991.

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MANIFESTO AINDA QUE TARDIO


Depoimentos redundantes, oportunos e necessários.
Pensamentos do artista expressos ao longo de sua vida de trabalho, em entrevistas, depoimentos, textos e falas.

LIBERTAS QUAE SERA TAMEM


- Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim - a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias - o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo - a contemporaneidade; criando seus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim. O substrato vem da terra, sendo eu tão ligado ao complexo cultural da Bahia: cidade produto de uma grande síntese coletiva que se traduz na fusão de elementos étnicos e culturais de origem européia, africana e ameríndia. Partindo desses dados pessoais e regionais, busco uma linguagem poética, contemporânea, universal, para expressar-me plasticamente. Um caminho voltado para a realidade cultural profunda do Brasil - para suas raízes - mas sem desconhecer ou ignorar tudo o que se faz no mundo, sendo isso por certo impossível com os meios de comunicação de que dispomos, é o caminho, a difícil via para a criação de uma autêntica linguagem brasileira de arte. Linguagem plástico-sensorial: O Sentir Brasileiro.

- Uma linguagem universal, mas de caráter brasileiro com elementos de diferenciação das várias, complexas e criadoras tendências artísticas estrangeiras. Favorável ao intercâmbio cultural intensivo entre todos os povos e nações do mundo; consciente de que as influências são inevitáveis, necessárias, benéficas quando elas são vivas, criadoras, sou entretanto contra o colonialismo cultural sistemático e o servilismo ou subserviência incondicional aos padrões ou moldes vindos de fora.

- A arte é um produto poético cuja existência desafia o tempo e por isso liberta o homem. Isso me afeta de uma maneira total porque sou um indivíduo tremendamente inquieto e substancialmente emotivo. Talvez precisamente por isso busco, ávido, na linguagem plástica visual que uso, uma ordem sensível, contida, estruturada. A geometria é um meio. Procuro a claridade, a luz da luz. A arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade.

- O tempo é a minha grande preocupação - uma das minhas angústias é ver chegar o tempo final sem poder realizar tudo o que imaginei. Se nasce em conflito com o mundo e ou o enfrentamos e o deglutimos ou perecemos. Creio que os artistas Sensitivos, obviamente resultam disso e da maneira específica como reagem, criam essa coisa que se convencionou chamar arte - ou como querem atualmente, antiarte, resulta o mesmo - e desafiam o tempo, este sua maior preocupação, já que vê fluir, ir-se embora, aproximar-se a morte. Sentindo na carne uma triste solidão, fiz do fazer minha salvação. Artista liberto, libertador, faço meus exercícios plástico-visuais, lutando com todas as minhas forças para ser mais humano, mais tolerante neste época de insólita violência.

- Tudo que foi dito acima é o meu pensamento há cerca de 20 anos. Hoje vejo com satisfação que artistas criadores maduros e jovens inquietos voltam-se, buscam, tomam consciência mais profunda da cultura de base, das raízes culturais da Nação Brasileira. Esse mundo mítico e místico, poético, às vezes ingênuo, puro e profundo porque entranhado nas origens do ser brasileiro. Transpor criando, no plano da linguagem e dar o salto para o universal, para a contemporaneidade de toda essa Poética, sem se recorrer a intelectualismo estéreis, é que é o X do Problema.

- A iconologia afro-ameríndia-nordestina-brasileira está viva. É uma imensa fonte - tão grande quanto o Brasil - e devemos nela beber com lucidez e grande amor. Porque os perigos existem: como o modismo; as atitudes inconsequentes, inautênticas; os diluidores com mais ou menos talento, mais ou menos honestidade, pouca ou muita habilidade, sendo que os mais habilidosos e vazios são os mais danosos porque são geradores de equívocos; as violentações caricatas do folclore e do genuíno; as famigeradas "estilizações" provincianas e o fácil pitoresco que levam a um sub-kitsch tropicalizado e ao enfeitismo subdesenvolvido.

- Atualmente a minha arte busca o Espaço: a rua, a estrada, a Praça - os conjuntos arquitetônico-urbanísticos. Ainda sou pela síntese das artes: caminho para a humanização das comunidades. Integração arte-ecologia-urbano-arquitetural. Como poderei realizar isso? Deixo a pergunta, cuja resposta poderá ficar somente em protótipos.

- Intuindo meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento - e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos -, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxês, um tipo de "fala", uma poética visual brasileira capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um design (RISCADURA BRASILEIRA), uma estrutura apta a revelar a nossa realidade - a minha, pelo menos - em termos de ordem sensível. Isso se tornou claro por volta de 1955-56, quando pintei os primeiros trabalhos da sequência que até hoje, com todos os novos segmentos, continua se desdobrando.

- Não pertencendo ou me filiando a nenhum dos movimentos ou correntes artísticas das muitas que surgiram e surgem no estrangeiro e aqui chegavam e chegam e são mais ou menos diluídas - tenho a impressão de que criei uma estrutura totêmica, um ritmo, uma simetria, uma emblemática, uma heráldica, um hieratismo, uma SEMIÓTICA/SEMIOLOGIA NÃO VERBAL, VISÍVEL. Isso tudo partindo das formas vivas da "fala" não verbal do nosso povo, de uima poética visual brasileira, da iconologia afro-ameríndia-nordestina. Enquanto muitos dos nossos artistas criadores se voltavam para os Ismos internacionais, cosmopolitas, eu defendia (nem sempre compreendido ou ouvido) uma tomada de consciência cultural da Nação Brasileira, do Povo Brasileiro. Eu defendia e falava sobre a Cultura do Nordeste, sobre a Cultura do Índio, a Cultura Negra (e mulata, mestiça e cabocla), eu defendia o barroco como um produto da nossa criatividade mulata, eu defendia um sentir brasileiro manifestado nas carrancas do Rio São Francisco, nos ex-votos, na cerâmica popular, nos signos litúrgicos dos rituais afro-brasileiros, na xilogravura de cordel, nos humildes e inventivos brinquedos populares. Achava e continuo achando que o Brasil tem de fazer uma arte mestiça como a do Aleijadinho, como a dos santeiros e ferreiros da Bahia. Reconheço que sou um obcecado por uma cultura genuinamente brasileira, apesar da famigerada aldeia Global. Eu não nasci na Europa (óbvio), não tive educação europeia. Não sou punhos de renda, não nasci para ser diplomata. Não sou bem nascido, pelo contrário, sou homem áspero, agressivo, sou um homem desesperado que procura a Divindade, o Ser dos Seres. Assim, o que eu tinha para me apegar era o Brasil.

- Minha arte tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reecontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos, arquitetônicos, paisagísticos.

Meu pensamento sempre foi resultado da uma consciência de terra, de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nenhuma análise crítica, das fórmulas que nos vêm dos exterior - em revistas, bienais etc. E a favor de um caminho voltado para as profundezas do ser brasileiro, suas raízes, seu sentir. A arte não é um apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital.

Eu acho que a nação brasileira continua, por isso trato sempre em termos de povo brasileiro. Estou consciente de que os sistemas políticos passam, os problemas econômicos são substituídos por outros, a dialética da existência é um fato. Portanto, essas coisas são efêmeras se nós as encaramos em termos de perenidade de povo, de continuidade de Nação, de continuidade histórica, no tempo e no espaço. Como dizia Rui Barbosa (a citação não é literal), um povo pode ser dominado economicamente, o seu território pode até ser ocupado e conquistado pelas armas. Mas o que ele não pode fazer é entregar a sua alma, seu sentir, sua poética, sua razão de ser. Se isto acontecer, ele deixará de existir historicamente como Nação, como povo. Assim eu acho que no Brasil, hoje, temos de defender nossa alma. É o que faço, transpondo todo este sentir, esta poética, para uma linguagem contemporânea, evitando cair nas coisas caricatas, nos "tropicalismos", no nefando kitsch, como tantos outros artistas brasileiros.

- Concluindo, gostaria de citar um trecho escrito pelo crítico Mário Pedrosa para o catálogo da minha exposição individual na Galeria Bonino, realizada em julho de 1967, no Rio: "Há algo de antropofágico na sua arte no sentido oswaldiano - ser produto de deglutições culturais. Ao transmudar fetiches em imagens e signos litúrgicos em signos abstratos plásticos, Valentim os desenraíza de seu terreiro e, carregando-os de mais a mais de uma semântica própria, os leva ao campo da representação por assim dizer emblemática, ou numa heráldica, como disse o professor Giulio Carlo Argan. Nessa representação, os signos ganham em universalidade significativa o que perdem em carga original mágico-mítica. O artista projeta mesmo, abandonando também a fatalidade da tela, organiza seus signos no espaço, talhados como emblemas, brasões, broquéis, estandartes, barandões de ma insólita procissão, procissão talvez de um misticismo religioso sem igreja, sem dogmas, a não ser a eterna crenças das raças e povos oprimidos no advento do milênio, na fraternidade das raças, na ascensão do homem".


Rubem Valentim  
Bahia, Rio, São Paulo e Brasília 
Janeiro 1976

In: FONTELES, Bené; BARJA, Wagner, Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001, p. 27-31 (catálogo de exposição).