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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Mais um pouco de Pikettysmo, mas serio e bem feito - Carlos Goes (Mercado Popular)

O Piketty é pop

Entenda o livro de economia mais badalado do século, seus acertos e seus erros.
"Capital in the Twenty-First Century", de Thomas Piketty. (Harvard University Press, 2014, 685 páginas)
“Capital in the Twenty-First Century”, de Thomas Piketty. (Harvard University Press, 2014, 685 páginas)
É estranho pensar que um livro de teoria econômica de 700 páginas está entre os dez livros mais vendidos da Amazon. Capital no Século XXI, o novo livro do francês Thomas Piketty, colocou os centros intelectuais dos Estados Unidos de pernas para o ar. Ao capitalizar sobre um tema central da política americana no momento – o aumento da desigualdade econômica – o livro foi alçado para o topo das listas de mais vendidos. Essa excêntrica popularidade tornou Piketty um rockstar da noite para o dia e faz do seu Capital o livro mais importante de economia do século – ao menos até agora.

As contribuições e a tese de Piketty

Não acredite em quem diz que Piketty (ou seu livro) não é sério. O catálogo empírico que relata tendências de (des)igualdade social nos últimos 300 anos é uma contribuição importantíssima para a história econômica. O autor organizou dados dos fiscos nacionais de diversos países para estimar qual porcentagem da renda nacional (ou seja, de tudo aquilo que é produzido por uma sociedade durante um ano) é retida pelos diversos estratos sócio-econômicos.
De fato, o Capital é muito mais um compêndio estatístico e um relato de história econômica que um livro de teoria. Sua parte teórica é, contudo, intrigante.
Para lançar as bases de sua teoria, Piketty analisa como a renda nacional é divida entre dois insumos essenciais ao processo produtivo: capital e trabalho (chamados em economês de “fatores de produção”). Essa divisão entre capital e trabalho não é, como pode soar, algo tipicamente marxista. É uma tradição que se estende desde os economistas clássicos como Smith e Ricardo e, com tons e perspectivas diferentes, passa por Marx, Mises, Friedman e Keynes. É também algo comum em qualquer curso de graduação em economia (para os curiosos, veraqui).
É importante entender que a remuneração, tanto do capital quanto do trabalho, está ligada à produtividade de cada um desses “fatores”. Quanto maior a produtividade de um trabalhador (ou seja, quanto mais ele produz e quão maior a qualidade de seu produto ou serviço por cada hora de trabalho), maior tende a ser seu salário. Igualmente, quanto maior for o valor do produto (ou serviço) que cada unidade de capital (uma máquina, um computador, um prédio) produz, maior vai ser a remuneração de quem é o dono daquele capital.
Sobre essa base, que é consenso na economia, Piketty constrói uma tese polêmica. O argumento, de forma bem simplificada, é: como os rendimentos [r] do capital (imóveis, ações, máquinas, títulos de dívida, conta de poupança no banco, etc.) tendem a ser maiores do que o crescimento da produtividade dos trabalhadores [g], os donos dos bens de capital vão ver sua riqueza aumentar mais rapidamente que o resto da população. (Na verdade, g inclui o crescimento populacional e o crescimento da produtividade, mas o crescimento populacional futuro vai se aproximar a zero, tornando essa variável menos relevante).
E como a renda do capital é muito mais concentrada do que a renda do trabalho, se r > g, a consequência seria um aumento da desigualdade de renda. Outra consequência dessa premissa (r > g) seria que a quantidade total de riqueza acumulada (nas mãos de poucos) aumentaria. Com essa dupla desigualdade (de renda e de riqueza), a mobilidade social seria restringida, uma vez que a renda presente passaria a ser menos relevante frente à riqueza herdada.
O autor relata que uma classe não-meritocrática de herdeiros que não trabalharam por suas fortunas era comum no século XIX. Piketty vai além, ao afirmar que esse movimento de concentração (impulsionada pelo suposição de que r > g) é uma tendência inerente à economia capitalista. Ela teria sido revertida no século XX por situações extraordinárias (guerras mundiais, crescimento populacional alto e “impostos confiscatórios”, nas palavras do autor), mas voltará a ser uma realidade no século XXI.

O principal problema da tese de Piketty

Existe um problema muito grande na tese de Piketty. Ele (quase) desafia uma das relações mais constantes na economia: a lei dos retornos marginais decrescentes. Essa relação não é muito difícil de ser compreendida.
A lógica é simples: do mesmo modo que aquele bem mais escasso em relação a outros bens tende a ter um preço mais alto no mercado, quanto mais escasso o fator de produção (capital ou trabalho), maior tende a ser a sua produtividade (e, por consequência, sua remuneração).
Pense da seguinte maneira.
Você tem uma empresa de jardinagem e corta gramados por aí. Você tem dois funcionários e uma máquina de cortar grama. Os funcionários trabalham de oito da manhã até seis da tarde, revezando-se em turnos de uma hora. Eles recebem uma comissão por cada casa que tem sua grama cortada. Nesse cenário, a máquina vai ser utilizada por 10 horas sem parar e cada trabalhador vai ter 5 horas de produtividade.
O que acontece se você comprar uma outra máquina de cortar grama (um unidade extra de capital)? Seus trabalhadores vão continuar trabalhando de oito às seis. Mas agora eles não precisam se revezar na máquina. Vão tirar suas necessárias duas horas de almoço e trabalhar de oito ao meio dia e de duas às seis.
Nesse novo cenário (com o aumento de capital), a produtividade média dos trabalhadores aumenta de 5 para 8 horas por dia. Você vai poder atender mais casas, aumentar a comissão de seus funcionários e ainda assim ganhar mais dinheiro.
Mas se antes a máquina funcionava dez horas sem parar, agora cada uma delas fica ociosa durante duas horas. A produtividade média por cada máquina caiu de 10 para 8 horas por dia. Embora você e seus funcionários ganhem mais dinheiro no total, o seu retorno pelo investimento feito em cada máquina (a “remuneração do capital”) vai ser menor.
Se a quantidade de capital acumulado aumentar, como Piketty prevê, a produtividade dos trabalhadores (g) deve aumentar e os retornos ao capital (r) devem diminuir. Com o estoque de capital aumentando, em algum momento [r] vai ser igual a [g]. E se a quantidade de capital crescer demais, a relação se inverte de tal modo que r < g! Parece difícil justificar as previsões de baixo crescimento da produtividade dos trabalhadores em um mundo com uma disponibilidade de capital tão grande quanto Piketty argumenta que o século XXI terá – em especial em um mundo em que o crescimento populacional, como o autor ressalta, deve estagnar.
O francês reconhece, em bom economês, que “é natural esperar que a produtividade marginal do capital diminua à medida que o estoque de capital aumenta” (p. 215). Mas acha que o ritmo dessa diminuição vai ser bem lenta. Se os capitalistas tiverem muita facilidade em substituir trabalhadores por bens de capital (como Piketty acha que eles têm), o aumento da quantidade de capital vai ser mais rápido que a diminuição da sua rentabilidade, o que implicaria que uma parcela maior da renda nacional ficaria com os proprietários e uma parcela menor com os trabalhadores.
Na lógica de Piketty, segue-se o ciclo: mais capital, mais renda para os mais ricos, mais desigualdade, menos mobilidade social. QED (dito latino para “como foi demonstrado”). Mas…ele demonstrou isso mesmo?
Qual o problema nessa lógica? Apesar de trazer um compêndio estatístico muito amplo, as evidências que ele apresenta em apoio à sua tese são bem escassas. Elas não passam de uma correlação aparente. Tão importante quanto isso, uma boa parte dos economistas que estuda essa velocidade de substituição entende que ela era até hoje superestimada, e não subestimada como afirma Piketty. (Para quem gosta de economês, o jargão para se referir a essa relação é “elasticidade de substituição entre o capital e o trabalho”.)
Quando se testa uma teoria, ela precisa passar por um duplo teste da razão. O primeiro testa a coerência interna de uma teoria – e nesse teste a tese central de Piketty passa, pois o francês trabalha sobre um quadro de análise já bem familiar à economia. O segundo é o de consistência externa, isto é, provar que as premissas teóricas são de fato verdadeiras – e nesse teste o novo popstar da economia não chega a passar.

Problemas adicionais da análise de Piketty

Uma das análises recorrentes no Capital é o argumento de que um aumento na desigualdade tende a criar uma aristocracia que vive de rendas e não de seu próprio trabalho – ou seja, que é rica por ter herdado uma fortuna e não por ter construído sua própria fortuna. A lógica faz algum sentido. Quanto maior parte da renda nacional fica com o donos do capital e quanto maior o estoque de riqueza acumulado, mais difícil é alguém se alçar à condição de rico e a riqueza herdada passa a ter mais relevância. Assim era o mundo no século XIX. E, traçando um paralelo com o século XIX, Piketty conclui que o atual aumento da desigualdade necessariamente levará a uma falta de mobilidade social.
Mas isso é sempre verdade? Ainda que o 1% mais rico de 2014 tenha uma parcela maior da renda do que o 1% de 1980, isso não significa que as pessoas que eram o 1% mais rico em 1980 (ou seus descendentes) continuem a ser os mais ricos em 2014.
Na verdade, existe uma volatilidade grande quanto a quem faz parte de cada uma das camadas de renda na sociedade. Os economistas Mark Rank e Thomas Hirschl, após acompanharem dados de renda das mesmas pessoas durante 40 anos, chegaram a uma impressionante conclusão: 73% dos americanos passaram ao menos um ano dentre os 20% mais ricos; 56% dentre os 10% mais ricos; 39% dentre os 5% mais ricos; e 12% entre o 1% mais rico. As pessoas experimentam tanto riqueza quanto pobreza no curso suas vidas, o que indica não uma elite estática, mas uma significativa mudança quanto a quem ocupa o vértice (e a base) da pirâmide de renda em momentos distintos.
Outro método de verificar essa mesma volatilidade é olhando a lista dos mais ricos do mundo publicada pela revista Forbes. O banco Credit Suisse analisou essa persistência e verificou que, à medida que o tempo passa, a maioria dos ricaços é substituída por novos ricaços (veja o gráfico abaixo), o que enfraquece a tese de Piketty de uma aristocracia estática controlando a sociedade do topo. A desigualdade pode estar aumentando, mas não necessariamente a mobilidade social está acabando.
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Um segundo ponto que Piketty acaba ignorando é que, segundo seus próprios dados, quase a totalidade do aumento do capital a partir dos anos 1980 decorre do aumento do valor total das habitações. Como o autor reconhece, esse processo ocorreu simultaneamente ao surgimento do que ele chama de “classe média patrimonial” (p. 186). Se no século XIX a classe média (os 40% do meio da distribuição de renda) quase não tinha riqueza alguma, atualmente ela detém quase um terço do capital nacional nos países desenvolvidos.
À medida que as cidades cresceram e as pessoas enriqueceram, o valor total dos imóveis subiu muito, já que é impossível criar novas habitações nas rígidas cidades europeias. Sendo parisiense, Piketty deveria saber disso muito bem.
Se excluirmos a habitação do capital total, praticamente não houve mudança alguma (como você pode ver no gráfico abaixo, feito com os dados de Piketty) no estoque total de capital. Fazendo essa distinção, ao invés do infactível imposto global sobre a riqueza que Piketty propõe, talvez faça mais sentido buscar políticas que facilitem a construção de novos imóveis,desregulamentando os códigos urbanos e facilitando a verticalização – como argumenta Tyler Cowen.
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O julgamento fundamental: pobreza ou desigualdade?

Essa discussão deságua em um ponto fundamental. O que é mais importante: combater a pobreza ou a desigualdade? O Nobel de economia Robert Solow levanta essa bola em suabrilhante resenha sobre o livro de Piketty:
Você preferiria viver em uma sociedade em que o salário real está aumentando rapidamente mas a parcela do trabalho [na renda nacional] está diminuindo … ou uma em que o salário real é estagnado … e a parcela do trabalho não se altera? A primeira é certamente preferível em termos estritamente econômicos: você come seu salário, não sua parcela na renda nacional. Mas pode ser que haja vantagens sociais e políticas decorrentes da segunda opção.
Por que o livro de Piketty fez tanto sucesso? Uma resposta possível é que, hoje, os EUA vêem um aumento na desigualdade que não se observava há muito tempo – e isso cria conflitos sociais. Outra resposta – que para mim parece mais razoável – é entender que a renda mediana e os níveis de pobreza nos EUA pararam de melhorar. Na década de 1990, enquanto a renda aumentava e a pobreza diminuía, não havia percepção de conflito social – a despeito do aumento da desigualdade.
Nos países desenvolvidos, os seis anos de baixo crescimento econômico deixaram sequelas que levam a conflitos sociais – pois o aumento dos salários estagnou. O foco talvez deva se dar mais no “g” do que no “r” de Piketty. O crescimento econômico é inclusivo desde que os pobres estejam vendo suas vidas melhorarem. Afinal, os pobres comem mais e vivem melhor quando sua renda aumenta, e não quando uma estatística nas tabelas dos economistas muda.
A despeito do tom apocalíptico de muitos dos entusiastas do livro de Piketty, numa perspectiva global as coisas estão melhorando significativamente: esteja você interessando na pobreza ou na desigualdade. A pobreza cai ininterruptamente desde a década de 1980 (veja gráficos abaixo) e temos tudo para testemunhar o virtual fim da pobreza absoluta no mundo no decurso de nossas vidas.
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Por causa do forte crescimento na Índia e na China, mais de um bilhão de pessoas foram alçadas ao mercado de consumo e, acredite, a realidade é que a desigualdade mundial está caindo. Taxas altas de poupança e acumulação de capital levaram a um maior crescimento econômico e à inclusão social através da eliminação da pobreza. E, ao contrário de alguns conceitos obscuros de macroeconomistas, a pobreza não é uma estatística nas tabelas de burocratas. Ela ainda mata gente de fome todos os dias.
Apesar das críticas acima, o livro de Piketty é uma grande obra e merece ser lido por todo estudante de economia. Mas ele só conta um lado do problema. Ele confirma que maior poupança e menor consumo presente leva à maior acumulação de riqueza futura. Mas tem uminsight posterior: para que os pobres se beneficiem mais dessa acumulação, eles também precisam poupar – caso contrário os efeitos distributivos do crescimento econômico não vão ser equitativos. Sua maior lição é que precisamos dar acesso aos trabalhadores à renda do capital. E eu adiciono: devemos fazê-lo sem sacrificar o crescimento e a redução da pobreza.
A maior lição não-explícita que há no livro de Piketty é: precisamos aburguesar o proletariado.
texto publicado inicialmente no Mercado Popular.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Desmantelando o "pikettyanismo" falsamente economico - Donald J. Boudreaux

Piketty: Um tesouro de conceitos errados

Donald J. Boudreaux
Portal Libertarianismo, 17/06/2014
Capital no Século XXI (ainda sem tradução para o português), de Thomas Piketty, pode figurar em breve, junto com O Capital, de Karl Marx, como uma das obras primas mais influentes da economia dos últimos 150 anos. Mas, infelizmente, o tomo de 696 páginas, habilmente traduzido por Arthur Goldhammer para o inglês não é mais esclarecedor sobre o capitalismo do século XXI do que O Capital de Marx era sobre o capitalismo do século XIX.
Apenas como um fenômeno de vendas, o tratado do professor da Escola de Economia de Paris, que foi saudado por três laureados pelo prêmio Nobel – Paul Krugman, Joseph Stiglitz e Robert Solow – demanda a nossa atenção.  Também é digno de nota como o sintoma de uma ideologia perversa que parece dominar o pensamento progressista, incluindo o dos presidentes Barack Obama e François Hollande, e um método falho de análise econômica.
Muitos de nós nos importamos se, e em que medida, a massa de pessoas melhorou absolutamente as condições materiais de vida. Enquanto Piketty não ignora inteiramente a questão, ele se foca na causa e na cura das disparidades relativas em renda monetária e de riqueza entre grupos de pessoas e através dos séculos. Algumas maneiras de diminuir essas disparidades, como taxas punitivas de impostos, correm o risco de prejudicar a todos, tanto pobres quanto ricos. Mas para Piketty, a importância de diminuir as desigualdades monetárias é tão monumental que ele quase totalmente ignora esses riscos.
O método de Piketty de fazer economia envolve, frequentemente, grandes proclamações de “justiça social” e “evoluções” econômicas, mas ele não oferece nenhuma análise da dinâmica de como as decisões individuais são feitas, o que comumente se chama de “microeconomia”, que deveria ser um ponto central da questão que ele levanta.
Ao contrário, o autor paira na estratosfera econômica, e vê somente o único fenômeno visível a essa distância: grandes estatísticas como o crescimento da população ou a parte da renda nacional “reivindicada” pelos muito ricos. De maneira reveladora, Piketty escreve sobre a renda e a riqueza como sendo reivindicada ou “distribuída”, nunca sendo merecida ou produzida. As estatísticas resultantes são muito agregadas para revelar o que acontece com os indivíduos na terra.
Ao invés de olhar para o comportamento por trás das estatísticas, o autor usa ad hoc e, em última instância, teorias pouco persuasivas sobre o “comportamento” das próprias estatísticas agregadas, incluindo pesados agregados impessoais como o retorno de capital e a razão da riqueza nacional para a renda nacional. Ele imagina que estes agregados interagem de uma maneira robótica, com uma lógica própria, intocáveis pela inciativa, criatividade ou escolhas de seres humanos.
CONSIDERE A TEORIA CENTRAL DE PIKETTY, de que a taxa de retorno do capital, que ele chama de “r”, tende a ser maior do que a taxa de crescimento da economia, ou “g”. Para o autor, o fato de que r é mais rápido do que g – em vários pontos percentuais, segundo a conta dele – é suficiente para selar o destino do capitalismo, porque isto implica que os donos do capital necessariamente ficam mais ricos do que aqueles que não são donos. Como a propriedade sobre o capital é “distribuída” de maneira desigual na sociedade, as diferenças de renda e riqueza devem, por sua vez, piorar, “empobrecendo” tanto a classe média quanto os pobres, enquanto elites ricas relativamente pequena vão ter tanto vastos recursos quanto influência desproporcional sobre as decisões políticas do governo.
Apesar da implicação lógica do retorno de capital ser maior do que o crescimento econômico, Piketty não pensa que a plutocratização da sociedade é inevitável. Primeiro, ela pode ser detida e até mesmo revertida por calamidades como guerras mundiais ou o comunismo ao estilo soviético, já que os efeitos destrutivos desses eventos recaem desproporcionalmente sobre os ricos. Pior, ele opina que as consequências bem vindas dessas ações corretivas são somente temporárias.
Mas outro remédio, mais duradouro, está à mão: tributação contundente. Piketty pede por impostos maiores e mais progressivos, não somente sobre a renda – de pelo menos 80% na fatia superior de renda – mas também na riqueza, de preferencia a ser imposta globalmente, para evitar com que diferentes regimes de tributação façam com que os plutocratas saiam de uma jurisdição com altos impostos e se mudem para uma jurisdição com impostos mais baixos. Enquanto ele não é otimista sobre possibilidade de ocorrer à cooperação necessária entre os governos, ele está disposto a aceitar quaisquer medidas que governos mais iluminados possam tomar para impor altos impostos sobre os ricos – e especialmente medidas que podem ser acompanhadas de um compartilhamento de informações maior entre os países em relação a contas em bancos e outros investimentos de propriedade de estrangeiros.
A grande quantidade de falhas arruínam a saga capitalista contada por Piketty, falhas que surgem, principalmente, do desprezo dele aos princípios econômicos básicos. Nenhuma aparece mais claramente do que a noção errada dele sobre riqueza.
Todo semestre, eu pergunto aos meus calouros o quão rico eles seriam se cada um deles valesse tanto quanto Bill Gates, mas estivessem com todas as ações, títulos de propriedade e sacos de dinheiro em uma ilha deserta, sozinhos. Eles imediatamente veem que o que importa não é a quantidade de dinheiro que eles têm, mas, ao invés, o que o dinheiro pode comprar. Nenhum princípio econômico é mais essencial que perceber que, em última instância, riqueza não é dinheiro ou ativos financeiros, mas sim, acesso imediato a bens e serviços reais.
Piketty mal parece perceber essa realidade, e se foca nas diferenças dos portfólios monetários das pessoas. Ele, portanto, ignora o importantíssimo lado da oferta: o que as pessoas – ricos, classe média e pobres – podem comprar com o dinheiro que tem. Ainda mais: na medida em que as desigualdades são absolutamente relevantes, as únicas que realmente importam são as desigualdades de acesso a bens e serviços reais a serem consumidos. Os aposentos de Bill Gates são maiores e mais elegantes que os meus e, eu arrisco dizer, que os seus também. Mas até mesmo aqueles que são os mais pobres dentro de uma economia de mercado viram a capacidade de consumir decolar com o tempo. E quanto mais pobres eles já foram, maior foi a melhoria na capacidade de consumir.
Se nós seguirmos o conselho de Adam Smith e examinar a capacidade das pessoas consumirem, nós descobrimos que quase todo mundo em economias de mercado está ficando mais rico. Nós também descobrimos que as diferenças econômicas reais separando ricos da classe média e dos pobres está diminuindo. Avaliando o padrão de vida – em capacidade de consumir – o capitalismo está criando uma sociedade cada vez mais igualitária.
OS EUA SÃO a bête noire (N do T.: Besta Negra, em francês no original) de Piketty e de outros progressistas obcecados com a desigualdade monetária. Mas a classe média americana dá como certa as casas com ar condicionado, carros e locais de trabalho – junto com os smartphones, viagens aéreas seguras e remédios que tratam de hipertensão até disfunção erétil. No final da Segunda Guerra Mundial, quando as desigualdades de riqueza e renda em termos de moeda eram menores do que tinham sido em qualquer momento do século anterior, esses bens e serviços ou não estavam disponíveis para ninguém ou somente aqueles muito ricos poderiam usufruir deles. Então, independentemente de quantos dólares os plutocratas de hoje acumularam e tem acumulado no portfólio, a acumulação de riqueza das elites não impediu que o padrão de vida das pessoas comuns melhorasse de maneira espetacular.
Além disso, essas melhorias em padrão de vida foram, inegavelmente, muito maiores para as pessoas comuns do que para os ricos. Em 1950, Howard Hughes e Frank Sinatra poderiam, facilmente, pagar por coisas como entregas de pacotes no dia seguinte, conversas telefônicas internacionais de horas de duração e casas com ar condicionado. Para os americanos comuns, entretanto, essas coisas estavam apenas na imaginação. Agora, mesmo que os magnatas e celebridades de hoje ainda tenham acesso a essas amenidades, os americanos de classe média e até mesmo pobres tem acesso a elas também. A redução da diferença entre a riqueza real dos ricos e dos pobres devem acalmar as preocupações em relação aos perigos políticos da expansão da desigualdade no terreno da riqueza monetária.
Falhas no ponto de vista macro do autor também estão a vista quando tentamos pensar em termos humanos sobre a inevitabilidade do retorno sobre capital, de 4% a 5%, que é maior que a taxa de crescimento da economia, que vai de 1% a 1,5%. De acordo com o autor, esta diferença de alguns pontos percentuais, quando acumulada através dos anos, pode fazer com que a desigualdade econômica seja “potencialmente aterrorizante”. Mas dois fatores chaves fazem com que esta tendência dificilmente persista por muito tempo na vida da maioria dos indivíduos.
Para começar, idas e vindas, ao invés de permanência, tendem a caracterizar o padrão da maior parte dos empreendimentos bem sucedidos. Mais cedo ou mais tarde, a entrada de competidores e as mudanças nos gostos dos consumidores freiam o crescimento da empresa, quando não reduz absolutamente o tamanho delas ou as leva a falência. Somente em 2013, 33 mil empresas nos EUA declararam moratória, um número típico em anos de expansão econômica. Em segundo lugar, e mais importante, capitalistas bem sucedidos raramente criam filhos e netos que igualam o sucesso dos ancestrais. Existe uma regressão de volta à média. Note que o aterrorizante, bem sucedido capitalista Bill Gates dificilmente irá ser sucedido por Gates mais jovens preparados para se capitalizarem sobre o sucesso dele.
Podemos até mesmo deixar de lado os planos por parte de pessoas como os Gates e Warren Buffet de doar uma grande parte da própria fortuna, ou o papel redistributivo da filantropia. Os dados empíricos sugerem que a rotatividade é a norma entre os capitalistas ricos, ao invés da construção de uma plutocracia permanente. A lista do “Top 400 declarações de imposto de renda” do I.R.S. (N. do T.: Receita Federal americana) nos dá evidências da instabilidade no topo. Ao longo dos 18 anos, desde 1992 até o fim de 2009, 73% dos indivíduos que apareciam nesta lista, apareceram apenas por um ano. Somente um punhado de indivíduos apareceu na lista em dez ou mais anos. A riqueza se dilui com o tempo, quando deixada para diferentes herdeiros, e se dilui ainda mais graças aos impostos, filantropia e mudanças nas condições de mercado.
AS FALAS DE PIKETTY sobre a estabilidade da riqueza dos capitalistas negam esta realidade. Por exemplo, ele escreve que “[O] Capital nunca é quieto: ele é sempre empreendedor e orientado para o risco, pelo menos na origem, e ainda assim ele sempre tende a se transformar em rendas a medida que ele se acumula em quantias grandes o bastante. Essa é a vocação do capital, o destino lógico”. Leia-se: O elemento de risco, empreendedor na formação de negócios, eventualmente regride em importância até o negócio naturalmente evoluir em direção ao “destino lógico” – o de eterna máquina de dinheiro que regularmente cospe “renda”.
Em um caminho similar, Piketty observa, “O que poderia ser mais natural de pedir a um bem de capital do que pedir para produzir ume renda fixa e certa: este é, de fato, o objetivo de um mercado de capital ‘perfeito’, como os economistas definem”. Pode ser “natural” pedir isto de um bem de capital. Mas somente economistas que tratam sobre mercados “perfeitos” de capital são inocentes o bastante para esperar um “sim” como resposta.
Se Piketty realmente acredita em um mercado “perfeito” de capital, dando aos capitalistas uma renda fixa e certa, ele pode se perguntar porque a gigante e falida rede de livrarias Borders não está vendendo mais livros, enquanto a Amazon  cresceu e desafiou toda a rede de varejistas não-virtuais. No mundo de Piketty, o capitalismo é um sistema de lucros. No mundo real, é um sistema de lucros e prejuízos.
O desprezo de Piketty pelo raciocínio econômico básico cega ele de todas as forças importantes do mercado que trabalham no mundo real – forças essas que, se deixadas livres pelo governo, produzem uma prosperidade crescente para todos. Ainda assim, ele alegremente restringiria essas forças com impostos absurdos.
Louvavelmente, apesar de tudo, ele expressa preocupação sobre o potencial do regime de impostos proposto para expandir o tamanho do governo: “Antes de podermos aprender a organizar eficientemente as finanças públicas equivalentes de dois terços a três quartos da renda nacional”, ele diz,  “seria bom melhorar a organização e operação do setor público existente”. De fato, seria “bom” fazer essas melhorias. Eu gostaria de imaginar que, se Karl Marx fosse vivo hoje, ele iria informar ao colega menos experiente que, infelizmente a 150 anos atrás, socialistas tiveram a mesmíssima ideia. Não funcionou da maneira que eles esperavam.
// Tradução de Daniel Coutinho. Revisão de Ivanildo Terceiro. | Artigo Original

Sobre o autor

Donald J. Boudreaux
Donald J. Boudreaux é professor de economia na George Mason University, e ex-presidente da Foundation for Economic Education (FEE). Autor do livro "Globalization (Greenwood Guides to Business and Economics)", escreve com frequência no seu blog "Cafe Hayek".

terça-feira, 17 de junho de 2014

Ainda Pikettyando: analise de Samuel Pessoa (FGV-Rio)

Nota Técnica preparada por Samuel Pessoa, da FGV/Rio (faltam as equações do apêndice, não reproduzidas por incapacidade do blog de reproduzir caracteres diferenciados usados em matemática).
Excelente resenha e contraposição.
Ele só não tratou, extensivamente, da solução confiscatória idealizada por Piketty para reduzir a desigualdade, mas depreendemos, pela sua análise, que seria uma maneira ineficiente, no sentido paretiano, de continuar o crescimento.
Sem ter a capacidade do Samuel, concordo inteiramente com sua análise objetiva do livro de Piketty.
Eu diria que esse debate em torno dos superricos é uma falsa questão.

A sociedade tem de se preocupar em capacitar TODOS para atividades bem remuneradas, não em arrancar riqueza privada de alguns poucos.
Paulo Roberto de Almeida 

O CAPITAL NO SÉCULO XXI 
Acertos e Omissões de Piketty em seu Rumoroso Volume
Samuel de Abreu Pessôa
Economia Aplicada, Junho de  2014, n. 1, 2014

"O Capital no Século 21" consolida década e meia de trabalho do pesquisador francês Thomas Piketty ao lado de uma equipe de colaboradores, cujos achados foram publicados em outros dois volumes e em diversos artigos acadêmicos nas melhores revistas internacionais.
A maior contribuição desse esforço coletivo de pesquisa é um exaustivo trabalho historiográfico que resultou na construção de bases de dados de desigualdade de renda e de riqueza, para diversos países e ao longo de décadas.
É difícil fazer uma avaliação criteriosa do ainda recente volume de Piketty, que, lançado originalmente em francês, em 2013, pela Seuil, explodiu em nível global a partir de sua tradução para o inglês, neste ano, pela Harvard University Press. A obra chegou às listas de mais vendidos e gerou tal comoção que a editora Intrínseca, que deve lança-lo no Brasil em novembro, já colocou o título em pré-venda em sites de livrarias.
Se o resultado cristalizado na publicação ainda é passível de controvérsias, e elas têm aparecido, provavelmente o esforço coletivo de pesquisa justificaria um prêmio Nobel para a equipe capitaneada pelo docente francês. Piketty, 43, leciona na Escola de Economia de Paris desde 2007 e na Ehess (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais) desde 2000.
Em artigo publicado no início de junho de 2014, o jornal britânico "Financial Times" questionou a credibilidade dos dados usados na pesquisa, e em sua edição de junho a revista conservadora "The American Spectator" afirmou que Piketty propõe um "confisco" de fortunas. Mas é difícil imaginar que haja erros de fato grosseiros que desqualifiquem os achados do grupo e que tenham escapado aos pareceristas dos conceituados "Journal of Political Economy", "Quarterly Journal of Economics" ou "American Economic Review" –publicações em que Piketty e colaboradores publicaram várias das conclusões do livro.
A publicação de "O Capital no Século 21" parece atender a dois objetivos de seu autor. Primeiro, defender uma posição política muito clara. O texto é um manifesto de defesa da social-democracia europeia continental com Estado grande e provedor dos serviços e seguros sociais básicos – saúde, educação, previdência e assistência social – e de instrumentos tributários que impeçam a concentração excessiva de renda e riqueza.
O volume cumpre muito bem esse objetivo normativo. Os autores liberais e libertários terão trabalho e gastarão muito tutano respondendo ao libelo de Piketty. Trata-se de contribuição importantíssima ao debate público.
O segundo objetivo foi construir uma narrativa do desenvolvimento do capitalismo desde meados do século 19 até os dias de hoje e, possivelmente, para o resto do século 21. Uma narrativa que permita organizar e dar coerência ao conjunto de evidências empíricas desvendadas ao longo do trabalho de levantamento, coleta e tabulação dos dados dos pesquisadores nos arquivos.
Trata-se de uma obra de sistematização. É neste sentido que o volume assume a grandiloquência de clássicos como "A Riqueza das Nações", de Adam Smith, "Princípios de Economia Política e Tributação", de David Ricardo, ou "O Capital", de Karl Marx. Embora, claro, somente a passagem do tempo dirá se o livro é o clássico que promete ser.
Por ora é possível dizer que a narrativa que Piketty nos oferece para organizar os inúmeros achados e fatos empíricos descobertos por ele e pelos seus colaboradores é, na melhor das hipóteses, muito incompleta.
Do ponto de vista teórico, Piketty parte da rejeição da teoria padrão que os economistas construíram para explicar a poupança, que é a forma de transmissão intertemporal de renda, e, portanto, a acumulação de capital.
Segundo a teoria padrão, a principal motivação para a acumulação de capital é a transferência de renda de um indivíduo para si mesmo, de sua idade ativa para a velhice. A teoria de poupança ao longo do ciclo de vida – que rendeu o Prêmio Nobel de 1985 ao economista ítalo-americano Franco Modigliani – sustenta que as pessoas poupam enquanto trabalham para consumir na velhice.
Entre muitas outras, a teoria de ciclo de vida prevê que a parcela da riqueza transmitida por meio de herança tem que ser relativamente pequena. A herança seria riqueza deixada pelos pais aos filhos não intencionalmente em função de incerteza com relação à data da morte. Como não sabemos o momento exato da morte, ao morrer sempre sobra algo que os filhos herdam.
Adicionalmente, a teoria do ciclo de vida prevê que a parcela da riqueza herdade deve ser decrescente com a elevação da eficiência de funcionamento dos mercados financeiros. Quanto melhor for o funcionamento dos mercados financeiros mais barato será a aquisição de seguro contra a incerteza com relação à data da morte. Ao se aposentar o indivíduo assina um contrato de seguro e entrega toda a sua riqueza acumulada à seguradora em troca de receber até a morte uma renda fixa. O fato de os mercados de annuities não terem crescido muito nas últimas décadas é outra evidência indireta contrária à teoria do ciclo de vida.
Para Piketty, a partir de certo nível de riqueza, a renda gerada pelo capital é tão elevada que é possível sustentar com ela níveis elevadíssimos de consumo e simultaneamente acumular e legar para seus herdeiros mais do que se recebeu. O capital se acumula de forma automática. Aqui Piketty ecoa Marx.
Adicionalmente, para os que muito têm, é relativamente barato gerir o patrimônio e conseguir retornos elevados, fato não possível para os pequenos poupadores. O elevado retorno à escala da indústria de gestão de riqueza exerce pressão concentradora adicional. Está criado o capitalismo rentista e patrimonialista no qual o acesso à riqueza depende cada vez mais da sorte de nascer na família certa do que de seu esforço e mérito.
Evidentemente Piketty se preocupa com o início do patrimônio. Argumenta que a acumulação inicial deve-se a sorte, acaso e, muitas vezes, a mérito – esforço, trabalho diligente e inovador, talento. Mas diz que a riqueza, meritória ou do acaso (e, muitas vezes é impossível distinguir entre elas), transforma-se rapidamente em riqueza sem risco e de rendimento perpétuo.
Uma vez constituído o patrimônio, a descendência proprietária passa a pertencer ao invejado clube dos indivíduos que, pelo nascimento ou casamento, não precisam se preocupar pelo resto de seus dias em como pagarão suas contas.
Apesar das diferenças – a acumulação primitiva de Marx resultava de roubo, pirataria e expropriação (aparentemente o capitalismo melhorou) –, para ambos o capital acumula-se automaticamente. O paralelismo com Marx termina aqui. Piketty considera que a economia de mercado com propriedade privada dos meios de produção é a forma mais eficiente de organização da atividade econômica.
Neste aspecto a quarta e final parte do livro tem paralelismo com a Teoria Geral de Keynes. Mensagem reformista, que reconhece os méritos, mas identifica falhas no funcionamento da economia de mercado e sugere políticas para "consertar" a máquina. No caso de Keynes a política fiscal com vistas a reduzir a amplitude do ciclo econômico e, com ela, o desemprego médio ao longo do ciclo. No caso de Piketty a política tributária com vistas a compensar a tendência natural à concentração excessiva de riqueza nas mãos dos muito ricos.
Os economistas trabalham com dois conceitos de distribuição de renda. A distribuição interpessoal da renda descreve como a renda gerada, de capital e de trabalho, é distribuída entre as famílias. A distribuição funcional da renda descreve a divisão da renda entre capital e trabalho.
A distribuição funcional da renda é um conceito simples. Um único número – a parcela do capital na renda, ou seu complemento, a parcela do trabalho na renda – descreve-a integralmente. A distribuição interpessoal da renda é um conceito matemático muito mais complexo do que um número. Para facilitar a análise, os estatísticos inventaram números que sintetizam a desigualdade. Os mais conhecidos são os índices de desigualdade de Gini e de Theil.
Piketty prefere outros indicadores. Para descrever a desigualdade interpessoal de renda, acompanha particularmente a parcela da renda apropriada pelos 50% mais pobres, pelos que estão entre os 50% e 90% mais ricos, os 10% mais ricos, o 1%, ou seja os ricos, o 0,1%, ou muito ricos, e até, os 0,01% ou super ricos.
Piketty assevera que o capitalismo tende à concentração de ambas as distribuições, interpessoal e funcional. Ao longo das três primeiras partes do livro, apresenta para os países europeus e para os EUA a evolução do produto per capita; a evolução da riqueza da economia e da sua natureza, se pública ou privada, da terra, do capital físico ou dívida pública; a evolução da renda do capital; da relação capital-produto; da participação do capital na renda; e, finalmente, a evolução da distribuição interpessoal da renda e da riqueza.
Piketty e seus colaboradores encontraram um ciclo de concentração de renda que termina com a Primeira Guerra. Entre 1914 e 1974 toda a dinâmica se inverte. Há redução da relação capital-produto, reduz-se a participação do capital na renda, e a distribuição interpessoal da renda e da riqueza melhora para os diversos indicadores de desigualdade interpessoal de renda que Piketty emprega, além da parcela da riqueza existente derivada de herança ter se reduzido expressivamente. A partir de 1974 a dinâmica do capitalismo retorna ao seu curso normal. Há novo ciclo concentrador.
Segundo Piketty, a melhora distributiva nas seis décadas entre 1914 e 1974 deveu-se à sucessão de tragédias – duas guerras mundiais e, entre elas, a Grande Depressão – que destruíram muito capital. Adicionalmente, no pós- Guerra houve em diversos países a imposição de impostos confiscatórios sobre a riqueza, além de apoio a instituições que aumentaram o poder de barganha do trabalho frente ao capital e a criação do Estado de bem-estar social. Finalmente, a repressão financeira das décadas de 50, 60 e 70 promoveu redução forçada do endividamento público e houve a estatização de diversos setores.
Essa dinâmica foi quebrada pelo neoliberalismo de Reagan e Thatcher. O pacote de políticas que inclui a desregulamentação dos diversos mercados, forte redução das barreiras comerciais nos anos 80, e, nos anos 90, das barreiras à mobilidade internacionais de capitais, além da privatização de diversos setores produtivos, alterou o poder de barganha do trabalho nos países centrais. Sem a regulação estatal, o capitalismo retomou seu rumo concentrador. Voltamos à dinâmica da "belle époque".
Se nada for feito, segundo Piketty, retornaremos ao mundo de Jane Austen ou Balzac, no qual a melhor forma de se ter uma vida confortável é casar com a pessoa certa. O livro documenta em detalhes a familiaridade que os escritores do século 19 tinham com o funcionamento do capitalismo patrimonialista.
O elemento final de preocupação de Piketty é a manutenção das instituições democráticas. Para ele, a dinâmica normal de uma economia de mercado que resulta necessariamente no capitalismo patrimonialista coloca em risco a democracia como a conhecemos. Ele afirma que a democracia seria incompatível com excessiva concentração de riqueza.
O primeiro reparo que se pode opor à narrativa de Piketty se refere à tendência de elevação da participação do capital na renda conforme a quantidade de capital cresce. 
Evidentemente, quando a quantidade de capital se eleva, sua taxa de retorno cai. Toda a questão é a intensidade desta queda. Se a taxa de retorno cair proporcionalmente menos do que a quantidade de capital, a participação do capital na renda se eleva. Se a queda da taxa de retorno for proporcionalmente maior do que a elevação da quantidade de capital, a participação dele na renda se reduzirá "pari passu" à elevação da relação capital-produto.
Em qual mundo vivemos? Segundo Piketty, em um mundo no qual a acumulação de capital eleva a participação do capital na renda. Ele considera que a forte flexibilidade tecnológica permite que a queda do retorno do capital, diante do aumento de sua quantidade, seja pequena. A flexibilidade tecnológica significa que é relativamente simples substituir trabalho por capital. Ou seja, quando a quantidade de capital se eleva, o retorno não se reduz muito, pois seria relativamente fácil transferir atribuições do trabalho ao capital. Tecnicamente Piketty considera que as tecnologias apresentam elevada elasticidade de substituição capital-trabalho.
Diversas estimativas sugerem, no entanto, o oposto. Não seria tão fácil assim substituir trabalho por capital. Portanto, conforme o estoque de capital cresce, seu retorno cai mais do que proporcionalmente.
Por que motivo Piketty obteve resultado oposto? A maior falha analítica de uma narrativa tão abrangente do desenvolvimento do capitalismo desde o século 19 até hoje é não ter incorporado a questão do comércio internacional de bens e serviços e da mobilidade internacional de capital.
Um dos períodos de plena prevalência do capitalismo patrimonialista é, segundo Piketty, a "belle époque", final de um período que os historiadores econômicos conhecem por Pax Britannica.
A Pax Britannica se inicia com o fim das guerras napoleônicas, seguido pelo fim das leis que impediam a importação de alimentos pela Inglaterra (chamadas de "Corn Laws") e pelo desenvolvimento do navio a vapor e de casco de metal, além do telégrafo. Essas inovações tecnológicas, em associação com o domínio britânico sobre os mares, geraram a primeira grande globalização, inaugurando o comércio de longo curso de commodities agrícolas e minerais, além de forte mobilidade de capital. Havia investimentos britânicos em ferrovias mundo afora. É desse período o expressivo desenvolvimento econômico do Cone Sul latino-americano, São Paulo incluída, dos EUA, e do Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A Pax Britannica terminou tragicamente com a eclosão da Primeira Guerra.
É impossível entender o que ocorria com a remuneração do capital e do trabalho nos países centrais sem considerar o comércio e o seu impacto sobre a remuneração dos fatores de produção. Certamente a menor queda do retorno do capital nos países centrais resultava não de maior flexibilidade tecnológica, mas sim da possibilidade de vender bens manufaturados a mercados que ofertavam bens primários. É surpreendente que Piketty não considere com cuidado os estudos de diversos historiadores sobre o tema. Para tratar a evolução da renda dos fatores de produção na "belle époque" é necessário um diálogo minucioso com os trabalhos de John Williamson, John O’Rourke, Ronald Findlay e Alan Taylor, entre outros, frutos de pesquisas que se estenderem pelas últimas duas décadas.
Analogamente, o período de 1914 até o pós-Guerra é conhecido pelo forte fechamento das economias ao comércio e à mobilidade de fatores. Parte da queda do retorno do capital nas economias centrais resultou dessa dinâmica.
O grau de abertura do mundo só veio a ultrapassar os níveis observados até 1914 na virada dos anos 1980 para os anos 1990 – a segunda grande globalização teve início na década de 1970, e a ela se deve boa parcela da moderação na queda do retorno do capital e da tendência recente à elevação da participação do capital na renda nos países centrais.
Por outro lado, a nova globalização explica boa parte da queda de pobreza que tem ocorrido na Ásia nas últimas décadas, provavelmente a maior da história. É difícil imaginar que a incorporação de 1/3 da humanidade ao mercado internacional de trabalho não afetaria a evolução da renda do capital e da renda do trabalho nos países centrais.
Ou seja, a dinâmica que Piketty enxerga como uma realidade tecnológica e regulatória interna às nações possivelmente sofreu forte influência do comércio internacional.
É preciso lembrar que, se considerarmos indicadores sintéticos de desigualdade, como Gini ou Theil, ela vem se reduzindo nas últimas décadas. Apesar de a desigualdade ter se elevado nos países centrais e na Ásia, ela tem se reduzido no mundo. O motivo é que a queda da desigualdade entre os países, em função do crescimento da Ásia, tem mais do que compensado a elevação da desigualdade no interior de cada país. Ou seja, a desigualdade em um país hipotético fruto da união de EUA com China, por exemplo, tem caído.
As conclusões de Piketty com relação à evolução futura da taxa de retorno do capital e da relação capital-produto não são imunes à dinâmica global. A continuidade do forte processo de acumulação de capital na Ásia provavelmente produzirá, após o esgotamento do crescimento do volume de comércio, redução bem mais acentuada do que ele imagina nas taxas de retorno do capital. Parece, aliás, que já estamos atingindo este ponto.
Além de deixar de fora de sua análise a dinâmica do comércio internacional e da mobilidade internacional de capital Piketty não trata em sua análise da dinâmica populacional e de seus efeitos sobre a renda do capital. Na segunda metade do século XIX a Europa passa pela sua transição demográfica. A taxa de crescimento populacional se acelerou, o que explica em parte, retornos mais elevados do capital. Da primeira guerra até o final da segunda guerra houve, em função das perdas de vida, redução na taxa de crescimento da população em idade ativa, o que deve explicar as menores taxas de desemprego e as maiores taxas de crescimento do salário e menores rendas do capital no período do pós guerra até meados dos anos 70.
Ou seja, de maneira geral Piketty falha em apresentar um análise completa de equilíbrio geral que é necessário para tratar da evolução da renda do capital nas economias centrais.
O volume apresenta outras deficiências e imprecisões técnicas que têm motivado intenso debate entre acadêmicos. (Para os leitores interessados, um apêndice em folha.com/ilustríssima trata sobre esses temas.)
No capítulo dedicado à descrição da fortíssima elevação da concentração que houve na economia americana nas últimas quatro décadas, Piketty se mostra ciente de que o processo do lado de cá do Atlântico é diverso do que ocorre na outra margem. Enquanto na Europa já há sinais de aumento da desigualdade liderada pela desigualdade do capital, nos EUA aumentou fortemente a desigualdade da renda do trabalho.
Sabe-se que a fortíssima elevação da desigualdade de renda do trabalho está associada à elevação da remuneração do talento.
Certamente o diferencial de salário que há entre Neymar e qualquer jogador de futebol da terceira divisão não resulta do esforço e do empenho de Neymar ao longo dos treinamentos em toda a sua vida. O diferencial resulta do maior talento de Neymar, incluindo aí a sorte de ter particular capacidade de recuperar-se muito rapidamente de contusões. Basta lembrarmos das enormes dificuldades do supercraque Pedrinho, ex-jogador do Vasco e Palmeiras, em progredir no esporte. Argumentos análogos aplicam-se a artistas, esportistas, inovadores e inventores, presidentes de grandes empresas, operadores do mercado financeiro, os melhores médicos e advogados em suas especialidades etc.
A fortíssima concentração da renda do trabalho na porção de 1% mais ricos está associada principalmente aos elevados salários dos presidentes de empresas e operadores do mercado financeiro. Como documentado no volume de Piketty, os elevados rendimentos dessas duas categorias profissionais explica aproximadamente 90% do fenômeno. O resto do fenômeno resulta da elevação da renda dos profissionais mais destacados em outras carreiras que dependam do talento pessoal, como argumentei no parágrafo anterior.
Com relação aos CEOs, Piketty defende que os ganhos não são fruto direto da produtividade, mas resultantes da cooptação dos conselhos de administração das empresas pela diretoria. As diretorias das empresas conseguem impor à assembleia de acionista a sua própria escala de remuneração.
A explicação de Piketty é muito pouco convincente. Há evidência de que a remuneração dos CEOs das empresas não listadas em bolsa, cujo capital é controlado por poucos (e nas quais, portanto, a cooptação não deveria ocorrer) aumentou da mesma forma. Além disso, outras atividades tiveram forte elevação de ganhos.
De fato, Piketty consegue documentar que há forte correlação positiva entre a extensão da piora da distribuição de renda e a redução da alíquota de imposto dos mais ricos. No entanto, falha em mostrar de que seu mecanismo de cooptação é o causador do fenômeno. Parece-me que outras explicações são mais plausíveis.
Existem pesquisas que apontam exatamente a globalização das empresas americanas e sua capacidade para acessar grandes mercados como explicação para as elevadas remunerações. Analogamente, há trabalhos que mostram que a capacidade das empresas americanas de transplantar parte da produção para economias emergentes explica o menor crescimento dos salários nos EUA nas últimas décadas. Como Piketty desconsidera em seu livro o comércio e a mobilidade internacional de capitais, não pode dialogar com esta leitura alternativa.
Não obstante, é verdade que a desigualdade do trabalho de hoje pode transformar-se em desigualdade do capital amanhã e em desigualdade de heranças depois de amanhã. E os EUA caminhariam céleres em direção ao capitalismo patrimonial da "belle époque".
Rejeitada a grande história a que se propõe Piketty, resta de seu volume a mensagem normativa, a defesa intransigente da social-democracia, mas principalmente as características associados à evolução da desigualdade interpessoal de renda e de riqueza e ao crescimento do peso da riqueza herdada na riqueza total.
Com relação à defesa da social-democracia, a maior limitação do texto parece ser a análise estreita dos motivos que justificaram a revolução neoliberal dos anos 80. Parece que não havia excessos no Estado de bem-estar social, que a inflação não grassava e que a carga tributária não caminhava para limites insustentáveis.
Piketty vê a revolução neoliberal como se motivada exclusivamente pela vaidade de ingleses e americanos que não entendiam que o maior crescimento da Europa continental no pós guerra era simplesmente recuperação do espaço perdido em consequência dos tumultos da primeira metade do século 20.
Apesar de o livro terminar menor do que iniciou, deixa três lições fundamentais.
Primeiro, que o estudo da desigualdade interpessoal requer o emprego de diversos conceitos. O uso indiscriminado do coeficiente de Gini ou de Theil pode obscurecer dinâmicas importantes, principalmente na ponta superior da renda.
Segundo, é impossível investigar a evolução da desigualdade de renda com bases de dados que não coletam com precisão a desigualdade de capital. E, para esta, é necessário recorrer ao registro tributário.
Terceiro, há tendência recente de forte concentração de renda nas economias centrais e, em particular, há um processo de elevação do peso da riqueza herdada na riqueza total.
A despeito das deficiências da narrativa histórica que o autor se propõe fazer, esses aprendizados justificam plenamente o impacto que o livro vem causando no debate público internacional.

APÊNDICE
O objetivo deste apêndice é discutir em mais detalhes alguns aspectos teóricos do livro de Piketty que têm motivado algum debate entre acadêmicos.
Como argumentei no corpo da resenha, o capitalismo patrimonial resulta da capacidade do capital de se reproduzir a velocidade suficientemente elevada, de forma a garantir vida confortável ao seu proprietário e simultaneamente permitir deixar herança ainda maior para sua descendência. Piketty argumenta que esta dinâmica resulta da tendência da taxa de retorno do capital líquida da depreciação do capital, , ser maior do que a taxa de crescimento da economia, .
Ao longo do texto a condição parece ser uma anomalia das economias de mercado. No entanto essa é uma condição básica de eficiência de uma economia. Se essa condição não for atendida, a economia encontra-se em um estado que não é eficiente no sentido de Pareto.
A eficiência no sentido de Pareto é uma situação no qual é impossível imaginar uma nova alocação de bens na economia que melhore a vida de ao menos um indivíduo sem piorar a vida de nenhum outro indivíduo. Se ocorresse seria possível pensar políticas que melhorasse a vida de alguns sem piorar para ninguém, o que em geral não é o caso.
A ineficiência dinâmica ocorre sempre que o retorno do capital for menor do que o crescimento da economia, pois gasta-se mais recursos para carregar capital do que o retorno deste capital.
Para que o estoque de capital não se reduza a cada instante, a sociedade tem que investir o equivalente à depreciação do capital. Além de investir a depreciação do capital, se a economia apresenta crescimento positivo, é necessário investir para que o estoque de capital cresça à velocidade de crescimento da economia. Caso contrário a relação capital-produto reduzir-se-á. Portanto, a longo prazo, o investimento tem que repor o capital depreciado e adicionar novo estoque à velocidade de crescimento da economia.
Assim, a cada instante a economia precisa reservar uma quantidade de bens para o investimento de forma e manter o estoque de capital, em unidades de produto, constante. A quantidade de bens que precisa ser poupada é dada por:
( ) em que representa o estoque de capital e , a taxa de depreciação física. Se a cada instante a sociedade poupar esta quantidade de bens para investimento, o capital líquido da depreciação crescerá à taxa , e, portanto, o capital em unidades do produto, que também está a crescer à taxa , será constante.
Para nos convencermos de que resulta em uma economia dinamicamente ineficiente basta imaginarmos o que ocorre se fizermos algo para reduzir o capital em . Há um ganho imediato de consumo, pois parte do capital pode ser consumido. Adicionalmente, dado que o estoque agora reduziu-se, a quantidade que precisamos poupar o tempo todo além da depreciação para manter o capital constante em unidades de produto reduziu-se em . Evidentemente, se o estoque de capital reduziu-se a produção irá reduzir-se. Em quanto? O impacto da queda do estoque de capital sobre a produção é dado pela taxa de retorno líquida da depreciação multiplicada pela redução de capital, . Se o aumento no consumo possível com a menor poupança necessária para manter o capital constante, , é maior do que a perda de produto com a redução do estoque de capital, .
Ou seja, uma economia em que é uma economia que carrega um estoque muito elevado de capital cujo benefício deste carregamento, dado por , é menor do que o custo deste mesmo carregamento, dado por . O reconhecimento de Piketty, ao longo de seu texto, de que é a situação normal das economias de mercado somente atesta a eficiência desta forma de organização da produção.
Faz parte da apresentação grandiloquente de Piketty estabelecer leis gerais do capitalismo. Como o leitor de minha resenha notou, não fiquei nem um pouco seduzido pelas duas leis gerais do capitalismo. Pareceu-me puro exercício retórico. A primeira é uma identidade contábil. Ela atesta que a participação do capital na renda, , é dada pela renda do capital bruta da depreciação, ( ) dividida pela produto, . Isto é,
( ) ( ) , (1) em que é a relação capital-produto, .
A segunda lei fundamental do capitalismo representa a situação que nos cursos de crescimento é conhecida por estado estacionário. O crescimento do estoque de capital é dado pela parcela do produto que é poupado, menos a depreciação do capital. Representado o crescimento do estoque de capital por sua derivada temporal, temos: 
Em taxas segue:
Dado que no longo prazo o estoque de capital cresce à taxa igual à taxa de crescimento do produto, é natural redefinir as unidades e trabalhar com o estoque de capital em unidades eficientes, , que é estacionária a longo prazo. Com um pouco de álgebra chega-se em: ( )
Dado que no longo prazo o capital cresce à taxa de crescimento da economia, o estoque de capital medido em unidades eficientes, , é estacionário, isto é, não varia. Consequentemente:
Esta é a segunda lei geral do capitalismo de Piketty.
O terceiro ponto teórico enfatizado por Piketty, e que ele bem poderia ter nomeado terceira lei fundamental do capitalismo, é que a redução do crescimento econômico eleva a participação do capital na renda, , e eleva a relação capital-produto, . Para apreciarmos esta proposição, temos que colocar mais estrutura em nossa análise. Peço paciência ao leitor para gastar certo tempo com um pouco de álgebra.
Vamos considerar que o produto pode ser descrito pela seguinte função de produção agregada: [ ( )( ) ]
Esta função de produção é conhecida como função que apresenta elasticidade de substituição capital-trabalho, parâmetro representado por , constante (CES). A elasticidade de substituição capital-trabalho é o parâmetro que representa a flexibilidade tecnológica. Piketty considera que há elevada flexibilidade entre capital e trabalho, e, portanto considera . Os estudos que conheço que estimaram obtiveram a desigualdade oposta, . Eu mesmo há alguns anos com colaboradores me aventurei a estimar e obtivemos .1 No meu entender, e esta foi minha maior crítica na resenha, Piketty desconsiderou completamente o comércio internacional em sua análise. Penso que a maior flexibilidade tecnológica identificada por Piketty é fruto do comércio.
Sob a hipótese de que o produto agregado é bem representado pela função de produção CES a relação capital-trabalho pode ser escrita como: [ ( )( ) ] [ ( ) ]
A remuneração do capital líquida da depreciação é dada por: [ ( )( ) ] [ ( ) ]
A partir das duas últimas equações é possível estabelecer relação entre a relação capital-produto e a remuneração do capital. Segue: [ ( ) ]
Substituindo (1) segue: ( )
Se , que é o caso que Piketty pensa ser empiricamente relevante, implica em correlação positiva entre a participação do capital na renda, , e a relação capital-produto, . A preocupação de Piketty é que fatores que elevem a relação capital-produto, como, por exemplo, a queda da taxa de crescimento da economia, induzam à elevação da participação do capital na renda.
Para investigar a preocupação de Piketty com relação à elevação da importância da renda do capital quando a taxa de crescimento da economia se reduz, temos que ter uma teoria de acumulação de capital. Piketty sugere que considera que a melhor teoria é um modelo em que somente proprietários do capital poupam. Considere que os proprietários do capital não trabalhem e poupem uma proporção de sua renda, enquanto os trabalhadores não poupam. Segue que a equação de acumulação da capital é dada por:
visto que a renda dos proprietários de capital é dada por
Lembrando que , segue que: No estado estacionário, isto é, quando o crescimento do capital for igual ao crescimento da economia, ou seja, quando , segue:
[ ( ) ] (2)
Ou ainda: [ ( ) ]
Logo, no estado estacionário a relação capital-produto é dada por:
[ ( ) ] ( ) (3)
Para terminar esta longa brincadeira com modelos, preciso de outra variável observável. A primeira lei fundamental do capitalismo de Piketty, que, como vimos, trata-se de uma identidade contábil, assevera que a participação do capital na renda, , é dada por ( ) ( )
Juntando (1) com (2) segue que:
( ) ( ) (4)
Assim temos duas condições que valem no longo prazo, isto é, quando a taxa de acumulação de capital for igual à . A relação capital-produto, , é dada por (3), e a participação do capital na renda é dada por (4).
Para uso futuro note que segue de (2) que .
No modelo que estamos considerando três parâmetros não são diretamente observados: a depreciação do capital, , o parâmetro da função de produção, , e a elasticidade de substituição capital-trabalho, . Trabalharei com , que é compatível com a leitura de Piketty de alta flexibilidade tecnológica entre capital e trabalho. Para fixar valores para os dois parâmetros adicionais considerarei como observados a relação capital-trabalho, , e a participação do capital na renda, , ambos são os valores reportados por Piketty para os EUA em 1975.
A partir de (2) e (3) e com um pouco de álgebra (e paciência!) obtêm-se que e que . Estou calibrando o modelo para descrever a economia americana em 1975. O crescimento em longo prazo da economia americana era, na época, de 3% ao ano, sendo 1,5% de crescimento populacional e 1,5% de progresso técnico. O investimento americano nos anos 70 é da ordem de 22% do produto ou 90% da renda do capital, visto que a renda do capital corresponde a 24% da renda total. Consideramos, portanto, e . Com estes valores obtive e . 
Esta taxa de depreciação para uma riqueza, que é quatro vezes a renda, significa que 9,6% do produto tem que ser poupado para compensar a depreciação física do capital. Adicionalmente, essas hipóteses resultam que a taxa de retorno líquida da depreciação será .
Estamos prontos para fazermos a simulação de Piketty. Sob a hipótese extrema de que a taxa de crescimento populacional e tecnológico vá à zero, a participação do capital na renda dada por (4) iria para 54% e a relação capital-produto, dada por (2), iria para 20! Este parece ser o inferno de Piketty. Em uma simulação menos extrema, sob a hipótese de que a taxa de crescimento reduza-se a metade, isto é, para 1,5% ao ano, a participação do capital na renda iria para 33% e a relação capital-produto para 7,6. Adicionalmente o retorno do capital reduzir-se-ia de 3,6% para 1,9%.
No entanto temos que lembrar que a hipótese de é altamente questionável. Como argumentei no corpo de minha resenha, a condição não é tecnológica. Ela ocorre porque o comércio internacional permite a maior flexibilidade tecnológica. Conforme o processo de acumulação de capital na Ásia tornar a dotação de capital do continente próxima à dotação dos países centrais, o crescimento do comércio arrefecerá e, com ele, a flexibilidade tecnológica. Passaremos a observar forte queda do retorno do capital e, com ele, a redução da participação do capital na renda.