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terça-feira, 13 de agosto de 2019

Ciência: fuga de cérebros é uma realidade no Brasil - presidente da ABC

Fuga de cérebros é realidade, diz chefe da Academia Brasileira de Ciências
Valor Econômico, 13/08/2019

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o físico Luiz Davidovich tem assinado cada vez mais cartas de recomendação para pesquisadores que deixam o Brasil. Aves raras na academia, esses doutores não querem salários altos. Procuram, na verdade, insumos e equipamentos para os quais o governo brasileiro tem empenhado cada vez menos recursos nos últimos anos. O êxodo de cientistas, para Davidovich, é a ferida mais exposta do sistema de ciência e tecnologia (C&T) do país, que se agravou no governo Jair Bolsonaro e seus contingenciamentos, ausência de projeto tecnológico e negação da ciência. "A fuga de cérebros é muito concreta e dolorosa para mim", diz Davidovich. Recentemente ele viu quatro colegas concursados abandonarem seus cargos para tocar trabalhos em Austrália, Holanda, Portugal e Chile. "Três vão para universidades estrangeiras, outro vai para uma empresa australiana de computação quântica, mas aprendeu tudo aqui", diz apontando para o chão da Escola de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde leciona há 25 anos. Ele comanda os estudos da casa em computação e ótica quânticas, sendo colaborador do francês Serge Haroche, laureado com o Nobel de Física em 2012.
"Não nego as recomendações. Essas pessoas têm o direito de se preocupar com suas pesquisas, mas escrevo nas cartas que lamento o fato de estarem nos deixando", diz. A debandada, afirma, está diretamente ligada à queda nos repasses a universidades federais. Segundo Davidovich, as verbas têm caído todos os anos desde 2010. A exceção foi 2013, quando houve um pico que ele atribui ao programa Ciência sem Fronteiras. Em 2019, o golpe mais duro da década: contingenciamento de 30% no Ministério da Educação e 42% na pasta de Ciência e Tecnologia (MCTIC). O principal afetado é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que provê a maior parte dos recurso à pesquisa científica. "Com o corte, as bolsas de pesquisa só chegariam a junho, mas uma suplementação de R$ 300 milhões permitiu pagar até setembro. Ainda falta para o resto do ano", afirma Davidovich. De acordo com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ainda faltam R$ 340 milhões para o CNPq honrar as bolsas de 84 mil pesquisadores neste ano. 
Os cortes surpreenderam o chefe da Academia de Ciências. Ainda em campanha, Jair Bolsonaro respondera a um questionamento da entidade com a promessa de elevar o investimento em ciência a 3% do PIB até o fim do mandato, enquanto a entidade recomendava a reserva de 2% da riqueza nacional para a área. Segundo Davidovich, hoje em queda, o investimento total em ciência e tecnologia está um pouco acima de 1% do PIB, sendo igualmente dividido entre União e setor privado. Inicialmente encarado como auspicioso pelo cientista e seus pares, o compromisso de campanha do presidente se mostra cada vez mais distante. "O apagão de investimentos pode quebrar o sistema de C&T. Tudo que temos hoje começou a ser institucionalizado na década de 1950, mas vem de antes. A construção é um processo longo, mas a destruição pode ser muito rápida, menos de uma década". Questionado se o "Future-se", programa do governo para estimular a entrada de recursos privados nas universidades, pode solucionar o problema, Davidovich é claro: "Só funcionará se os repasses públicos forem restabelecidos".
Em sua leitura, as universidades só vão interagir mais com empresas na medida em que se modernizarem primeiro via recurso público. "A maior parte do orçamento universitário sempre virá do governo, como acontece no mundo todo. O ministro [Abraham Weintraub, do MEC] precisa de um choque de realidade", diz. O pesquisador, no entanto, vê com bons olhos aspectos da proposta como desvinculação de verbas privadas do orçamento e previsão de incentivos fiscais para quem investir. Caso o governo ainda queira honrar a promessa de investir duas vezes mais em ciência, Davidovich afirma que, além de rever os cortes, será preciso incentivar investimento direto do setor privado. Ele cita as experiências dos Estados Unidos e da Coreia do Sul. Doutor pela Universidade de Rochester (EUA) e membro estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados Unidos (NAC), lembra que na Coreia do Sul três quartos do investimento em P&D vêm de empresas, e um quarto, das universidades. "Não precisamos reinventar a roda. Basta olhar para o lado. Os EUA sempre usaram encomendas de Estado para grandes projetos nacionais", diz, citando como exemplos o programa espacial e a criação de bancos de dados para órgãos de governo. "Isso é muito melhor que subvenção, pois permite orientar os resultados."
Como um caminho natural, Davidovich aponta a biotecnologia baseada na pouco explorada biodiversidade nacional. "Conhecemos apenas 5% do potencial de nossos biomas", diz. Animado, ele fala de uma substância chamada bergenina, originalmente encontrada no caule de uma planta amazônica. Sua molécula anti-inflamatória foi sintetizada por um laboratório privado que hoje comercializa o miligrama por mais de R$ 1.000. "Existem várias outras substâncias que poderiam ser produzidas no Brasil." Soluções de saúde, afirma, são mais que recomendadas para um país com um comprador natural do tamanho do Sistema Único de Saúde (SUS). "Prioridades óbvias como a biotecnologia têm sido prejudicadas por uma política de desmatamento que nega evidências científicas", diz. Davidovich se mostra especialmente irritado com os ataques do governo ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em cuja defesa saiu mais de uma vez por meio de carta aberta da ABC. "Há uma ironia no fato de não perceberem que isso pode prejudicar a própria agroindústria, por causa dos rios voadores que garantem chuvas no Centro-Oeste e Sudeste. Isso para não citar o acordo comercial com os europeus, que terão um Parlamento com cada vez mais [deputados] verdes." Em seu entender, as ações do governo até aqui refletem uma "total ausência de agenda para o desenvolvimento científico" que abre espaço para voluntarismos, expressos por exemplo na retórica sobre nióbio ou dessalinização, que têm o seu valor, mas estariam longe da escala necessária para alavancar a ciência no país.

sexta-feira, 8 de março de 2019

A crise na (e da) macroeconomia - Andre Lara Resende

André Lara Resende escreve sobre a crise da macroeconomia

Por André Lara Resende | Para o Valor, 7/03/2019
A crise da macroeconomia

A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.
A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?
Em artigo recente, "Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência", que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças (http://iepecdg.com.br/wp-content/uploads/2019/02/Consensoecontrasenso.docx...pdf), procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.
Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.
Pilares de um novo paradigma
O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro "Juros, Moeda e Ortodoxia", de 2017.
Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.
O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.
O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados "agregados monetários", mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.
O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário - aquele que exclui os juros da dívida - for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.
Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.
Novas ideias, antigas raízes
Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico-financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro "The State Theory of Money". Ficou conhecida como "cartalismo" e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.
Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio "Functional Finance and the Federal Debt", Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.
A primeira prescrição de Lerner, a sua "primeira lei das finanças funcionais", é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda "lei das finanças funcionais", é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.
Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.
Já o fato de que o governo - que emite a sua própria moeda - não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.
Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.
A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, "O Valor da Ciência", o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.
Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.
É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo "o seu, o meu, o nosso dinheiro", para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.
Uma armadilha brasileira
Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.
O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.
A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.
Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.
Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.
Reformas voltadas para o futuro
Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das "reformas" deve ser estimular o investimento e a produtividade.
Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.
A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.
Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.
Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.
Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los. No primeiro ensaio de "Juros, Moeda e Ortodoxia", sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.
André Lara Resende é economista

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Gustavo Franco vs Roberto Gianetti: debate sobre politicas económicas

Creio que Gustavo Franco, como sempre, foi primoroso: elegante, sem deixar de ser impiedoso, explícito, sem deixar de ser irônico.
Cada parágrafo de seu artigo vale por uma aula de história econômica, de economia política, aliás de puro bom senso e adesão à realidade...
Paulo Roberto de Almeida 
(cliquem para ler melhor)

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Distribuição de renda no Brasil: historicamente desigual

Sociologia 

Tese sobre história da desigualdade no Brasil é premiada pela Capes

Por Ligia Guimarães
Valor Econômico, 10/10/2017

SÃO PAULO  -  O trabalho "A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013", publicado em 2016 pelo pesquisador Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, venceu o prêmio Capes 2017 de melhor tese de doutorado em sociologia.
Souza é  doutor em Sociologia e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em desigualdade e pobreza. No trabalho, orientado por Marcelo Medeiros, também do Ipea, Souza elaborou a série mais longa disponível até hoje sobre qual é a fatia da renda nacional apropriada pelo topo mais rico ao longo da história. 
"É um prêmio muito importante. E o trabalho também. A pesquisa do Pedro é mais do que um estudo sobre desigualdade, ela conta a história da economia brasileira sob uma perspectiva nova, a da concentração da renda ao longo do tempo", afirmou Marcelo Medeiros.
Os cálculos de Souza já indicavam, no ano passado, que em 2013, da renda total do país, 51,5% ficavam nas mãos dos 10% mais ricos, ante 49,4% em 2000. A fatia do 1% mais rico (com renda média de R$ 635 mil por ano, ou R$ 53 mil por mês) também permaneceu elevada, nos cálculos de Souza: era de 22,2% e passou a 22,9% em 2013. "Houve mais uma redistribuição, digamos assim, entre os 80% mais pobres, e não dos mais ricos para os mais pobres", diz Souza.
Souza, junto com seus colegas de Ipea Fábio Castro e Marcelo Medeiros, foi autor dos trabalhos pioneiros, no Brasil, com uso de dados do Imposto de Renda para calcular desigualdade social. Informações sobre o IR começaram a ser divulgadas regularmente e em detalhes pela Receita Federal em 2014.
A metodologia, que ganhou visibilidade nos trabalhos do francês Thomas Piketty, ameniza um problema observado nas pesquisas domiciliares de renda no mundo todo, baseadas em entrevistas de uma amostra de famílias, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE: elas captam mal as rendas mais altas, que acabam subestimadas. No IR, a obrigação legal da declaração torna a amostra mais abrangente e realista.

Leia as reportagens que o Valor já publicou a respeito do trabalho acadêmico de Souza:

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Livros, livrarias, leituras: suplemento do jornal Valor - Joao Luiz Rosa (2/06/2017)

Um enredo de suspense
Por João Luiz Rosa | De São Paulo
Valor Econômico, 2 junho 2017

  

 Equipe da Todavia: de baixo para cima, Flavio Moura (editor), Ana Paula Hisayama (diretora de direitos autorais), Andre Conti (editor), Alfredo Setubal (editor), Leandro Sarmatz (editor) e Marcelo Levy (diretor comercial)

Para muita gente, ir à livraria tornou-se um programa recorrente nas grandes capitais. As pessoas caminham por entre as estantes, folheiam os livros, se deixam encantar pelas capas coloridas. Às vezes, aproveitam para tomar um café ou fazer um lanche rápido. Amigos conversam, casais se encontram, pais distraem os filhos. Parece o pano de fundo ideal para o negócio de qualquer editor ou livreiro, não fosse por um detalhe: boa parte desses consumidores sai sem comprar nada.
O fenômeno explica, pelo menos em parte, por que tantas lojas de livros continuam cheias, embora as vendas estejam em queda. Existem mais leitores que compradores de livros no Brasil. Em 2015, 56% da população se declarava leitora - ou seja, havia lido pelo menos um livro nos últimos três meses -, mas só 26% dissera ter comprado algum livro nesse período, segundo a pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil". O descompasso se explica pelo fato de que, para ler, há quem procure bibliotecas ou peça livros emprestados. Também é preciso levar em conta o papel da Bíblia. Lida por 42% da base de leitores (o que a torna o gênero favorito no país), ela não exige compras frequentes.
A falta de consumidores preocupa, claro, a cadeia editorial. No ano passado, o faturamento das editoras brasileiras caiu 5,2% em relação a 2015, levando em conta a inflação do período, de 6,3%, segundo levantamento da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Em termos nominais, sem considerar a inflação, ocorreu um aumento de 0,74%. Houve uma melhora em relação ao resultado anterior, que apresentara retração de 12,6% em termos reais, mas esse alívio não foi sentido por todo o setor. Isso porque o crescimento veio praticamente de uma única área - as vendas ao governo, que aumentaram 13,8%. "As compras governamentais ajudaram a equilibrar o desempenho geral, mas são capturadas por um número pequeno de editoras [aquelas que produzem livros didáticos e de referência]. Além disso, não passam pelas livrarias", diz Marcos da Veiga Pereira, dono da editora Sextante e presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel).
As livrarias, aliás, são o nervo mais exposto do mercado em queda. Desde que o comércio eletrônico começou a ganhar força, anos atrás, muitas redes passaram a investir no conceito das superlojas - espaços imensos e bem localizados capazes de abrigar cafés, restaurantes, auditórios, minilojas de eletrônicos etc. A princípio, a tendência parecia irreversível. O filme "Mensagem para Você" já brincava com o tema em 1998. Na história, Meg Ryan é a dona de uma pequena livraria em Nova York que se sente ameaçada pela chegada de uma grande rede comandada por Tom Hanks - uma referência clara à rápida expansão de grupos como Borders e Barnes & Noble.
Agora, os tempos são outros. A Borders faliu em 2011 e a Barnes & Noble reduziu de 798 para 640 o número de suas lojas entre 2008 e 2016. Em contrapartida, o número de livrarias independentes, fora das grandes redes, aumentou de 1.401 para 1.775 nos Estados Unidos de 2009 até o ano passado. Será que o modelo da superloja está perto do esgotamento?
No Brasil, algumas redes estão diminuindo o tamanho de suas lojas. A Livraria da Vila, com dez unidades no país, recentemente reduziu o espaço de duas delas em São Paulo - as dos luxuosos shoppings Cidade Jardim e JK Iguatemi. A primeira tinha 2,5 mil m2. A segunda, 1,7 mil m2. As lojas ficaram com pouco mais de 400 m2 cada uma. A Livraria Saraiva, com 110 lojas no país, está fazendo ajustes nas que estão com mais de 1,2 mil m2. Em São Paulo, uma loja de 1,4 mil m2 foi reduzida para 600 m2.
Mas é cedo para dizer que Meg Ryan tinha razão. Para os executivos das livrarias, cada rede tem seus próprios motivos para reduzir o tamanho das lojas - e seria um erro interpretá-los como uma tendência de mercado.
Na Saraiva, a redução tem atingido principalmente as seções de filmes e música, que foram muito afetadas pela concorrência dos meios digitais, como os serviços de streaming, diz Marcelo Ubriaco, vice-presidente da livraria. "Ainda somos relevantes nas duas áreas e não vamos tomar nenhuma atitude drástica, mas precisamos nos adaptar. Não dá mais para abrir espaços de 500 m2 para CDs e filmes."
   

Para Sergio Herz, presidente da Livraria Cultura, o que resta à loja física é proporcionar experiência ao consumidor


A situação é diferente na Livraria da Vila. "No nosso caso, foi uma decisão de voltar às origens, com lojas menores, mais aconchegantes", diz Samuel Seibel, proprietário da companhia, cuja primeira unidade, no bairro paulistano de Pinheiros, tem cerca de 700 m2. "Percebemos que as duas lojas [Cidade Jardim e JK] eram grandes demais, o que não fazia parte do nosso conceito. É preciso ser coerente com seu modelo [de negócio]. Saber de quanto espaço precisa para caber o que você quer oferecer."
Esse é, exatamente, o dilema das superlivrarias. Grandes lojas requerem gastos maciços com estoque, mão de obra, treinamento, aluguel, energia elétrica e uma longa lista de custos. Reduzir o tamanho pode ajudar a economizar no curto prazo, mas não no fim das contas não vai desestimular a frequência do consumidor? Por outro lado, vale a pena manter uma superestrutura apreciada pelos frequentadores, mas que não se traduz em vendas à altura?
A internet tem muito a ver com isso. "O cliente não precisa mais da loja física. O futuro das vendas está no comércio eletrônico", diz Sergio Herz, presidente da Livraria Cultura, com 18 unidades no país. "O nível de inteligência do mundo digital é tão alto que deixou o ponto físico praticamente acéfalo. O que resta à loja física é [proporcionar] experiência [ao consumidor]."
   

Para Otávio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras, o hábito de leitura mudou, mas não é um processo consolidado

Por experiência, explica o empresário, está a prestação de serviços. É o caso do Teatro Eva Herz, na loja da avenida Paulista, ou do restaurante Manioca, cujo acesso, no shopping Iguatemi, é feito por meio de uma loja da rede. Ambas as unidades estão em São Paulo. A estratégia da Cultura é dobrar as vendas de livros no site - dos atuais 30% da receita para cerca de 60% -, deixando aos pontos físicos a tarefa de fortalecer os vínculos do consumidor com a marca e proporcionar fontes adicionais de receita.
A dificuldade para o setor é como, em meio a uma das crises mais severas da história, aumentar o número de leitores em um país onde 30% das pessoas confessam não gostar de ler e outros 43% dizem "gostar um pouco", quase como uma concessão à literatura. Há consenso de que a crise é do varejo em geral, não só dos livros, embora o setor seja mais duramente atingido porque tem comportamento de mercado maduro - com evolução lenta ou retração - mas público pequeno, típico de mercados jovens.
Formar público não é fácil, nem rápido. Depende da adoção de políticas educacionais e de incentivo à leitura, que são responsabilidade do governo em suas várias esferas. Também é, em grande medida, uma questão de família. A mãe, ou a responsável do sexo feminino, é apontada como a principal influência no gosto pelo ato de ler, seguida pelo professor.
   

Seibel, da Livraria da Vila: de volta às origens

No dia a dia, o preço é frequentemente apontado como principal vilão das vendas. Nas rodas de amigos, alguém sempre comenta que livro custa caro no Brasil. Essa percepção, porém, é desmentida pelos números. Em uma década, entre 2006 e o ano passado, o preço médio do livro caiu de R$ 25,97 para R$ 17,09, em valores corrigidos pela inflação. Os dados se referem aos preços pagos pelas livrarias às editoras, não ao que sai do bolso do consumidor. Mas nesse caso também houve queda nos preços, até mais pronunciada dependendo do caso. Em 2004, um best-seller como "O Código Da Vinci" era vendido a R$ 39,90, diz Pereira, da Sextante. Com a inflação, um livro com características e tiragem semelhantes teria de custar, hoje, R$ 79,80, mas sai por cerca de R$ 50, uma perda de 40%, compara o empresário.
Fixar o preço de um livro é uma tarefa complexa. Há diversos custos incluídos - do papel ao pagamento dos direitos autorais, o que, dependendo do caso, requer fazer adiantamentos de três ou quatro anos para o escritor. Em geral, o preço é definido pela editora e vale para todo o território nacional, independentemente do custo do frete para o produto chegar às regiões mais distantes.
Com a estabilização econômica, anos atrás, o mercado passou a fazer correções discretas de preço ou, simplesmente, não repassar os custos para o leitor, diz Luís Antônio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). A expectativa era aproveitar o bom momento para ampliar a base de leitores. Nas livrarias, o acirramento da competição levou muitas redes a conceder descontos cada vez maiores. Quando a crise chegou, os preços estavam reprimidos e o espaço para aumentá-los desaparecera. "Foi uma armadilha", afirma Torelli.
Uma das possibilidades para aliviar a situação é a chamada lei do preço fixo. De autoria da senadora Fátima Bezerra (PT/RN), o projeto de Lei nº 49/2015, em tramitação no Senado, estabelece que, durante um ano, os preços de capa não podem receber descontos superiores a 10%. Com o PL, o objetivo é criar condições de competição mais parecidas entre livrarias independentes, com poder de negociação menor, e as grandes redes. "Em vários países onde foi aplicada, [esse tipo de lei] alcançou resultados muito positivos, com redução do preço médio, aumento do número de livrarias e da diversidade cultural", diz Rui Campos, fundador e sócio da Livraria da Travessa, rede com oito unidades, sete no Rio e uma no interior de São Paulo. Muitos profissionais do setor veem a legislação com simpatia, mas ainda não há consenso sobre sua aplicação no país.



Outra questão é o modelo de consignação. Enquanto na maior parte dos setores os varejistas compram os produtos dos fabricantes para revendê-los ao consumidor, no mercado editorial prevalece a consignação - as livrarias recebem os livros, mas só pagam as editoras quando os vende. O restante é devolvido à editora. "É um modelo de posse, mas não de propriedade", diz Eugênio Foganholo, diretor da Mixxer Consultoria, especializada em varejo. Sob essas regras, o risco diminui, mas também a margem. A ameaça é que a administração das empresas não seja tão inovadora ou agressiva quanto poderia, porque o risco envolvido é menor. "Não se pode generalizar, mas esse é um gene da cadeia que acabou se voltando contra toda ela", diz o especialista.
Esse risco de acomodação é especialmente perigoso diante das novas gerações, marcadas pelo uso contínuo da tecnologia. Com a disseminação da internet, especialmente dos acessos móveis via smartphone, o público passou a ter muito mais opções de lazer e comunicação, o que abriu uma guerra pelo tempo das pessoas, especialmente dos mais jovens, que se acostumaram a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Serviços de música e vídeo, jornais, revistas, redes sociais - todos disputam a atenção do usuário. O livro enfrenta um agravante: sua leitura exige dedicação exclusiva, um hábito contrário à tendência predominante de fragmentação.
  

 Em São Paulo, a Saraiva reduziu uma loja de 1,4 mil para 600 metros

"A cada época, cada geração, é preciso entender quem são seus leitores, quem vai comprar o livro", diz Jorge Oakim, dono da editora Intrínseca. A posição contrasta com uma corrente de pensamento mais pessimista, quase apocalíptica, segundo a qual o livro e o leitor estariam com os dias contados. "Hoje, uma criança de 13 anos assiste a séries de TV com inúmeras tramas paralelas, personagens secundários importantes, uma complexidade que não existia antes. É o tipo de coisa que pode ajudar a desenvolver uma forma de inteligência que não era estimulada até então", afirma Oakim.
A mudança de hábitos não significa, necessariamente, que haverá menos leitores. "As pessoas, hoje, estão mais aparelhadas para lidar com a dispersão. Elas leem mais, mesmo que de maneira fragmentada, entrecortada, nos intervalos", diz Otávio Marques da Costa, publisher da editora Companhia das Letras. "Não é um processo consolidado, mas o hábito de leitura mudou."
No exterior, muitas empresas têm investido em alternativas como o audiobook, na tentativa de criar espaços de introspecção em um mundo que estimula a dispersão. "[O audiobook] pode ser um complemento. Enquanto faz outra coisa, a pessoa 'escuta' um livro", afirma Costa. Só no ano passado, as vendas de audiobooks somaram US$ 2 bilhões nos EUA, com mais de cem editoras disputando o público.
   

“Criar um catálogo adequado é parte essencial do trabalho”, diz Palermo

No Brasil, muitos editores dizem que vêm encontrando, em bienais e feiras, um público jovem até mais interessado em literatura que as gerações anteriores. O setor tenta captar esse interesse. Nos últimos meses, vários livros escritos por "youtubers" chegaram aos primeiros lugares nas listas dos mais lidos. Há muitas dúvidas sobre se esse tipo de leitura serve de condutor para obras mais densas, mas a influência tem sido considerada um saldo positivo, tanto do ponto de vista comercial como de atração do público.
A Saraiva começou a testar, em algumas lojas, espaços destinados aos jovens. "Em vez de poltrona para leitura, estamos instalando mesas com tomadas", diz Ubriaco. A ideia é que eles se sintam à vontade em um ambiente onde seja fácil compartilhar informações e conectar seus dispositivos. A rede também não quer brigar com o comércio eletrônico. "Nossa visão é que são canais complementares. A ciência é acertar a complementariedade", afirma o executivo. A companhia percebeu, por exemplo, que muitos consumidores que faziam compras em seu site moravam na zona leste de São Paulo, o que a levou à decisão de abrir uma loja no Shopping Itaquera, que fica na região.
Transferir conceitos da web para as lojas físicas está no coração da estratégia da Livraria Cultura. A rede começou a aplicar um sistema de preço dinâmico no horário do almoço, quando muitas pessoas passeiam pelas lojas sem, necessariamente, comprar alguma coisa. Quando o cliente se identifica a um atendente, o sistema verifica seu perfil de compra e oferece preços promocionais. Com isso, o preço pode variar de loja para loja, de horário para horário e até de cliente para cliente. Os testes incluem 70 mil clientes por mês e vem rendendo bons resultados - a conversão média, ou seja, o número de pessoas que concretiza a compra, é de 3,5% e o valor médio da compra aumentou 40%. Além disso, a Cultura testa um site de livros usados (os valores se transformam em créditos para a compra de novos livros) e começou a negociar dados captados sobre o comportamento dos clientes - sem revelar, claro, quem são as pessoas - para outras empresas, como fazem as grandes companhias de internet.
  

 Pereira diz que compras do governo ajudaram a equilibrar o desempenho

A mudança nos hábitos do público tem levado a uma diversificação editorial, diz Daniel Mazini, diretor de livros impressos da Amazon no Brasil. "Trata-se de um reflexo da sociedade e não se aplica apenas aos livros. Hoje, as pessoas têm muito mais opções sobre o que querem consumir."
A Amazon lançou seu marketplace - um site no qual pessoas físicas e companhias podem vender livros novos ou usados - no início de abril. Desde então, mais de mil vendedores ingressaram na plataforma. "Há muitos livros de editoras que não conhecíamos e obras mais antigas", diz Mazini. O estoque da Amazon deu um salto. Em 2014, quando a companhia chegou ao Brasil, havia 90 mil livros em depósito. Mais recentemente, esse número aumentou para 150 mil. Com a criação do marketplace, o total aumentou para 250 mil quase da noite para o dia.
Criar um catálogo adequado é parte essencial do trabalho. "No caso de autores internacionais, você precisa avaliar se ele é adequado ao seu mercado. Em caso positivo, pode comprar [o título] antes ou depois de o autor fazer sucesso em seu país de origem", diz Mauro Palermo, diretor-geral da Globo Livros. A editora publica a obra da italiana Elena Ferrante, uma das autoras mais comentadas dos últimos tempos. "Compramos a Elena no meio do caminho, quando começava a ganhar importância na Itália e na Europa." Os livros se tornaram best-sellers, mas se isso não tivesse ocorrido, entraria no catálogo de qualquer jeito, diz Palermo. "A primeira avaliação é se o texto é bom." 
   

"A cada geração, é preciso entender quem são seus leitores", diz Oakin

Nos últimos meses, algumas notícias deixaram o mercado alarmado. A Livraria Cultura abriu negociações com fornecedores para estender os prazos de pagamento, o que deu origem a notícias de que a rede poderia ser comprada pela Saraiva. Ambas as empresas vieram a público na época negar que o assunto estivesse em discussão. Depois, a Fnac Darty publicou um relatório no qual os negócios no Brasil apareciam como "operação descontinuada", o que foi interpretado como uma saída iminente da rede. Dias depois, a companhia informou que procura sócios no país.
A despeito dos problemas do setor, profissionais da área estão otimistas com a retomada do negócio tão logo a economia se recupere um pouco. Novas iniciativas mostram que existe espaço para ocupar. Uma revista dedicada exclusivamente a livros - a "Quatro Cinco Um" - foi lançada, e a Livraria da Travessa vai abrir uma unidade na nova sede do Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista, sua primeira unidade na capital paulista.
A maior novidade é a fundação da Editora Todavia. Criada por um grupo de profissionais experientes, vindos da Companhia das Letras, a empresa tem o apoio de três investidores de peso: Alfredo Setubal, presidente da holding Itaúsa; Guilherme Affonso Ferreira, do fundo Teorema; e Luiz Henrique Guerra, do fundo Indie. Os investimentos são pessoais, não das empresas.
"Sabemos dos percalços do mercado, mas a Todavia é um projeto de longo prazo", diz Flávio Moura, um dos sócios. "Não se pode olhar só para a conjuntura." Os primeiros quatro títulos da editora, mantidos em segredo, estão previstos para sair em agosto. Depois, o plano é lançar mais dois livros por mês até o fim do ano. Na segunda leva está previsto o lançamento de uma biografia do cantor Belchior, que morreu em abril.
Dado como morto várias vezes, não parece que o réquiem do livro vá ser tocado agora, seja por conta da crise ou de mudanças de comportamento do consumidor. O futuro, talvez, até convide mais gente à leitura. "Quem sabe com o carro autônomo, sem motorista, as pessoas usem o tempo das viagens para ler um livro", brinca Seibel.

Tatiana Salem Levy busca resistência ao pessimismo

Por Jacilio Saraiva | Para o Valor, de São Paulo
   

"Acreditar num mundo melhor é uma questão vital", diz a escritora Tatiana Salem Levy

Um mundo melhor passa pela leitura, literatura e pelo pensamento, segundo a escritora Tatiana Salem Levy, que lança "O Mundo Não Vai Acabar" (José Olympio, 182 págs. R$ 34,90), coletânea com mais de 30 crônicas. Colunista do Valor no caderno "EU&Fim de Semana" há três anos, a autora reúne no livro textos publicados no jornal entre maio de 2014 e janeiro de 2017, revistos e modificados, além de trabalhos inéditos. "Como a situação política no Brasil e no mundo está particularmente alarmante, achei importante selecionar escritos que relacionassem a literatura, a filosofia ou a antropologia com a política", afirma a escritora.
A obra é dividida em três partes. A primeira, "Tudo Nos Leva a Crer que Sim", trata de questões atuais, como o Brexit, a eleição do presidente americano Donald Trump, os atentados terroristas e o cenário nacional. A segunda parte, "Sem Memória, Não Há Presente", fala do tempo e do resgate de lembranças. Uma das maiores incapacidades do nosso país é conseguir ler e interpretar o passado, diz.
"Nunca conseguimos fazer um balanço do que foi a escravidão. Ao mesmo tempo, a ditadura aconteceu há pouco tempo, mas parece que nunca existiu", afirma. "A Argentina e o Chile souberam nomear e condenar suas ditaduras de uma forma que a gente nunca sonhou em fazer. Então, acho que o Brasil só vai melhorar o presente, apostar em ser de fato o país do futuro quando conseguir, antes, olhar para trás e ler o próprio passado."
A terceira parte do livro é centrada na literatura e na utopia. "Ouvimos cada vez mais que o mundo está acabando. Ou porque volta dois séculos na moral e fecha suas fronteiras, ou porque destruímos a natureza a tal ponto que acabaremos vítimas da nossa própria ambição", afirma Tatiana. "Mas, da mesma forma que a destruição faz parte da natureza humana, o sonho também faz. A capacidade de imaginar um mundo melhor e lutar por ele. Esse livro é uma resposta ao pessimismo que vem tomando conta de todos nós."
Autora dos romances "A Chave da Casa" (2007), "Dois Rios" (2011) e "Paraíso" (2014), além dos livros infantis "Curupira Pirapora" (2012) e "Tanto Mar" (2013), Tatiana tem obras traduzidas em mais de dez países, inclusive na Índia, Croácia e Suécia. Também é dela o ensaio "A Experiência do Fora: Blanchot, Foucault e Deleuze", fruto do mestrado em estudos de literatura na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Nascida em Portugal, onde os pais se exilaram durante a ditadura militar brasileira, ela retornou ao país aos nove meses de idade. Há quatro anos, mora entre Lisboa e o Rio de Janeiro. "Mas, agora, do jeito que a coisa anda por aqui, provavelmente ficarei mais tempo em Portugal. Nunca tinha visto o Rio num estado tão calamitoso e Lisboa tão efervescente."
Para a ganhadora do Prêmio São Paulo de Literatura 2008, morar longe não influencia tanto no resultado do seu trabalho. "O que trago em mim do Brasil dá para muitos livros e é sempre a ele que volto quando escrevo", diz. "A diferença entre estar numa cidade ou em outra é que em Lisboa a vida é menos estressante, o tempo é mais qualitativo, rende mais. E isso é muito importante para a escrita. O tempo alargado de lá me ajuda a escrever."
Tatiana diz que tem outros projetos no cinema e na literatura, como um novo romance. "Mas está tudo ainda no começo", diz. "Segui carreira acadêmica durante anos, mas decidi largá-la. A coluna [no Valor ] foi uma forma de voltar ao que mais gostava de fazer na universidade: ler, pesquisar e escrever sobre o que leio", diz a autora, que estudou na Brown University, nos Estados Unidos, e na Universidade Paris III, na França. As experiências no exterior também a levaram a traduzir grandes obras. É dela e de Marcelo Jacques a elogiada versão para o português de "Nos Passos de Hannah Arendt", biografia de uma das mais importantes pensadoras do século XX, escrita pela francesa Laure Adler.
Na folga do trabalho de colunista e escritora, diz que tenta ler o terceiro volume da tetralogia de Elena Ferrante, "História de Quem Foge e de Quem Fica" (2016). "Falei tão bem sobre os dois primeiros livros, mas não estou conseguindo engrenar nesse terceiro", comenta. Também descobre mais sobre o autor carioca Victor Heringer. É com um texto que fala de um romance dele, "O Amor dos Homens Avulsos" (2016), que ela encerra a nova coletânea. "Além de escrever com muito domínio, Heringer propõe uma literatura do afeto, da ternura. Acredita que, onde há apocalipse, só o amor salva."
Sobre o título imperativo do livro, "O Mundo Não Vai Acabar", Tatiana defende que se trata de um grito de indignação com o presente, mas também com o derrotismo. "Acreditar num mundo melhor é uma questão vital", diz. "Talvez eu seja uma náufraga em pleno oceano, que fica falando de literatura enquanto o mundo agoniza. Mas fazer o quê, se acredito na capacidade da literatura de nos levar a imaginar, pensar e, a partir desse impulso, não deixar o mundo morrer?"

Paixão que chega ao fim

Por Cadão Volpato | Para o Valor, de São Paulo
   

O cenário da Nápoles do pós-Segunda Guerra Mundial, nos anos 50 e 60, é o pano de fundo da história de Lenu e Lila nos primeiros livros da "Série Napolitana", de Elena Ferrante

Para uma autora reclusa como Elena Ferrante, tem sido uma exposição e tanto. Quase ao mesmo tempo em que se conclui a publicação no Brasil de sua tetralogia napolitana, um repórter mais abusado resolveu desvendar o mistério que cerca a autora, cuja identidade real estava escondida até agora.
O repórter seguiu o clássico caminho do dinheiro, checou para onde iam os pagamentos da editora e aparentemente matou a charada, chegando ao nome de uma antiga tradutora da casa, cujos ganhos elevados seriam incompatíveis com a profissão. O nome real por trás de Elena Ferrante seria Anita Raja, mulher do escritor napolitano Domenico Starnone -acusado de ser Elena Ferrante ao longo dos anos.
O curioso é que isso acabou despertando a fúria dos fanáticos "ferrantistas", não muito interessados em deixar de acreditar na própria imagem mental que construíram da escritora tão amada. Na cabeça dos leitores fiéis mora mais do que uma figura, mora uma voz poderosa que se impõe sem remédio.
Uma vez, dizem por aí, submetidos ao feitiço da autora, os leitores caem no vício extremo, do qual não conseguem mais se recuperar. Ler Elena Ferrante acaba virando um vício que não tem cura. Os desavisados, aqueles que tentam se aproximar com cautela da mitológica escritora napolitana, apelam para um de seus romances mais fininhos, "Dias de Abandono" (Biblioteca Azul). Descobrem que cometeram um erro, pois o livro de 2002 é tão potente quanto os piores venenos, aqueles que costumam vir em pequenos frascos.
"Dias de Abandono" promove um mergulho abissal na alma de uma mulher ferida. Não dá para sair incólume da sua leitura. E aí será tarde demais. Aqueles que começaram por "A Amiga Genial" (também da Biblioteca Azul, como os demais volumes), já perderam as esperanças logo de cara: tiveram que aguardar a publicação de cada um dos outros livros, mesmo porque o conjunto se transforma em algo indivisível, e não resta outra saída a não ser esperar.
A coisa toda tem características de uma novela à moda antiga, em que um capítulo aponta para o outro e dele não se separa. Quem acompanhou desde o princípio essa história de amizade entre duas mulheres italianas - ou napolitanas, para ser mais preciso, já que Nápoles, assim como outras cidades da Itália, parece um outro país - foi capturado por uma voz de sereia incomum, a voz de um escritor de primeira grandeza, da espécie que se conecta com as nossas almas.
A amizade entre essas mulheres é feita de mel e fel, é humana como poucas vezes o leitor já encontrou na literatura, até mesmo aquela que pretende ser mais realista do que o rei. Ainda que seja tudo mentira, o que acontece entre Lenu, a narradora, e Lila, a personagem que de certa forma a espelha, é de uma honestidade brutal. Elas se amam e se odeiam, ficam juntas e separadas, e ainda assim mantêm-se próximas como um corpo único.
São mulheres em situações-limite. São personagens femininas num país corroído pelo machismo e dominado pelo crime dos homens. São mães devotas, mas também desnaturadas (mais desnaturadas que devotas). São invejosas e raivosas, egoístas e generosas, tudo isso reunido em parágrafos aliciantes, dos quais é impossível se desvencilhar.
Há quanto tempo não líamos histórias tão bem contadas e tão bem conduzidas, num ritmo elástico, ágil ou lento, reflexivo, introspectivo e ao mesmo tempo cheio de movimento e crueza? Talvez sejam esses alguns dos segredos desse romance dividido em quatro livros compridos, nos quais a palavra Camorra nunca aparece escrita com todas as letras, apenas o seu sombrio e poderoso significado de máfia napolitana. Neles, não há esquemas narrativos, mas figuras humanas, personagens com os quais é possível estabelecer conexões multifacetadas, sem as platitudes do "bem" e do "mal".
É um banho narrativo. Ninguém esperava, nessa altura do século XXI, que um Balzac desse as caras. Isso levando em conta a mais óbvia das constatações de quem se deixa expor ao universo belo e espinhoso de Elena Ferrante, seja ela quem for: não há a menor chance de a autora ser um homem. A Elena desse romance em quatro tomos é uma pessoa do sexo feminino que aprendemos a conhecer muito bem.
Seguindo pela ordem, a série começou a sair em 2011, com "A Amiga Genial", e prossegue com "História do Novo Sobrenome" (2012), seguida de "História de Quem Foge e de Quem Fica" (2013). As duas crescem juntas e seguem caminhos diferentes. Lenu sai de Nápoles, conhece outra vida e vira escritora, enquanto Lila permanece na cidade natal. Em "História da Menina Perdida" (Biblioteca Azul; trad. Mauricio Santana Dias; 476 págs.; R$ 49,90), o último volume, um fio de afeto e amor verdadeiro une e afasta as duas vidas.
Chegar às últimas linhas costuma ser um processo adiado, e a sensação final é a de que nos separamos de pessoas que aprendemos a amar. Pode-se, então, voltar ao começo desse quarto e último volume: "A partir de outubro de 1976 até 1979, quando voltei a morar em Nápoles, evitei restabelecer uma relação estável com Lila. Mas não foi fácil. Ela procurou quase imediatamente entrar mais uma vez à força em minha vida, e eu a ignorei, a tolerei, a suportei". Vão-se os maridos, os filhos e os amantes, uma vai embora e volta, a outra nunca sai do lugar, e mesmo assim a amizade permanece, disfarçada em desconforto e desprezo.
Lenu deixa Nápoles, mas Nápoles, a cidade da Camorra, da devastação do pós-guerra, do machismo indomável, da bagunça que remete ao caos do universo, não sai de dentro dela. Temos aqui o final de seis décadas de história da filha de um funcionário público e da filha de um sapateiro, um romance de formação de mais de 1,5 mil páginas que bate em diversas teclas, uma delas, talvez uma das principais, a da identidade.
Eis aí uma viagem surpreendente para os leitores de nosso tempo, desacostumados a grandes cargas de concentração. E aí nos vemos, de repente, imersos num "romanção" como já não se esperava mais: profundo, movido por ideias desafiadoras e imensos contrastes narrativos. Tarde demais. A voz misteriosa e familiar de Elena Ferrante já nos arrastou para dentro do céu e do inferno de Nápoles, sem perdão.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Acordos de investimento: balanco do modelo brasileiro - Carlos Cozendey e Abrao Arabe Neto


Um balanço até aqui dos acordos de investimentosCarlos Cozendey e Abrão Árabe Neto

Valor Econômico, 29/05/2017

Carlos Márcio Cozendey é Subsecretário-Geral de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores.
Abrão Miguel Árabe Neto é Secretário de Comércio Exterior do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.

No dia 7 de abril foi assinado o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos do Mercosul. O PCFI é o primeiro resultado expressivo da retomada do Mercosul na área econômico-comercial e um marco importante na ampliação da rede brasileira de acordos de investimentos, que já alcança 14 países.

Com o PCFI, o Brasil passa a ter acordos de investimentos com os sócios originais do Mercosul, com todos os membros da Aliança do Pacífico e com países africanos como Angola, Moçambique e Malaui. Também encontram-se em fase final de revisão para assinatura os compromissos já negociados com Índia, Jordânia, Marrocos e Etiópia. Todos eles seguem, com variações, o mesmo modelo inovador de Acordo de Cooperação e Facilitação de Investimentos (ACFI).

Tais acordos oferecem proteção jurídica a investidores e investimentos brasileiros no exterior e dos países parceiros no Brasil: igualdade de tratamento; regulação da expropriação de ativos e da compensação devida; e liberdade de transferências de ativos financeiros ao exterior, entre outras medidas.

Os ACFIs inovam ao consagrar a facilitação de investimentos como elemento-chave para estimular o fluxo de capitais e uma interação mais dinâmica e de longo prazo entre as partes. Para tanto, criam uma estrutura de governança institucional (Comitê Conjunto e Ombudsman) responsável por promover a cooperação entre os governos e o apoio prático e constante destes aos investidores. Estabelecem, ainda, agendas de cooperação em áreas que aprimoram o ambiente de investimentos, como vistos de negócios, remissão de divisas, regulação técnica e ambiental, logística e transportes.

Com o PCFI, a rede de ACFIs passa a alcançar sete dos dez principais destinos de internacionalização de empresas brasileiras, segundo o Ranking FDC das Multinacionais Brasileiras 2016. Abarcam, assim, parcela importante dos investimentos brasileiros no exterior, que, de acordo com dados do Banco Central, já atingem US$ 283 bilhões. Este valor aproxima-se de metade do estoque de investimento estrangeiro direto no Brasil (US$ 674,4 bilhões). Ou seja, para cada US$ 2 investidos no Brasil, empresas brasileiras já têm investido quase US$ 1 no exterior.

O próximo passo na trajetória brasileira dos acordos de investimentos é colocá-los em funcionamento. É auspicioso constatar que sua tramitação no Congresso Nacional tem avançado de modo célere. O Acordo de Ampliação Econômico-Comercial entre Brasil e Peru, que inclui um capítulo de investimentos no estilo ACFI, foi o primeiro acordo de investimentos aprovado nos últimos 60 anos. Os ACFIs com México, Chile, Angola, Moçambique e Malaui também já foram aprovados pelo Congresso.

O pioneirismo do Brasil em incorporar a facilitação de investimentos a seus acordos internacionais tem gerado frutos nos planos plurilateral e multilateral. Impulsionado pela boa aceitação do ACFI, o tema de facilitação de investimentos tem ganhado relevância na OCDE, na Unctad e no G-20. Na OMC, o assunto tem sido discutido com crescente interesse e poderá produzir resultados na Conferência Ministerial (MC11), a ser realizada na Argentina no final de 2017.

O Brasil, que vem contribuindo para essa discussão com sua experiência acumulada com as negociações do ACFI, já ofereceu ideias concretas para o debate e poderá apresentar propostas de texto para eventual instrumento multilateral sobre o assunto. Como se trata de tema novo na OMC, porém, há ainda um trabalho importante de convencimento a ser realizado junto a certos países-membros, especialmente aqueles que associam o tema investimentos a cláusulas de modelos tradicionais, com premissas que vem sendo contestadas no cenário internacional.

Em decorrência da negociação de ACFIs, também houve, recentemente, uma promissora evolução institucional no Brasil: a criação do Ombudsman de Investimentos Diretos, que funcionará no âmbito da Câmara de Comércio Exterior (Camex). Sua função essencial será assistir os investidores de países com os quais o Brasil mantenha ACFIs na realização, condução e expansão de seus investimentos, procurando auxiliá-los na solução de eventuais dificuldades concretas decorrentes da legislação e das práticas administrativas brasileiras, de forma a reforçar um ambiente de negócios favorável.

A mesma estrutura será oferecida aos investidores brasileiros nos países com os quais o país possui ACFIs. É importante, assim, que os agentes econômicos brasileiros e estrangeiros tenham conhecimento e demandem essa inovadora e embrionária estrutura governamental à sua disposição.

Outro importante desdobramento institucional recente, embora não diretamente ligado a esses acordos, foi a criação do Comitê Nacional de Investimentos (Coninv) da Camex. O órgão visa a formular propostas e recomendações voltadas ao fomento e à facilitação de investimentos estrangeiros diretos no país e de investimentos brasileiros diretos no exterior.

Esse balanço dos acontecimentos permite uma avaliação positiva do progresso já obtido em matéria de política de acordos de investimentos. Desde os primeiros acordos firmados até os mais recentes ACFIs houve um contínuo aprimoramento do modelo, focando-se mais nas garantias jurídicas aos investidores, em cláusulas modernas de responsabilidade social e corporativa e de prevenção de controvérsias. Tudo isso sem perder de vista o seu caráter pragmático e objetivo de melhoria dinâmica e efetiva do ambiente de negócios entre as partes.

Sua agenda positiva, com ampla participação do setor privado em um tema tradicionalmente hermético, além da atenção de importantes parceiros comerciais do Brasil, tem atraído o interesse também de diversos segmentos da sociedade civil tais como a academia e organizações não-governamentais.

O Brasil estará preparado para implementar os ACFIs tão logo entrem em vigor, de modo que sejam mais que uma inovação interessante, uma inovação que funcione e faça a diferença na prática.